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‘Ainda estou aqui’ coloca a ditadura militar no banco dos réus

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Em 2023, Argentina, 1985 ganhou o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro. O longa retrata o julgamento naquele ano das juntas militares, que colocou no banco dos réus nove generais da ditadura argentina, acusados de graves violações de direitos humanos perpetradas entre 1976 e 1983, incluindo milhares de homicídios e desaparecimentos políticos.

No filme, Ricardo Darín interpreta o promotor Strassera, responsável pela acusação que levou à condenação criminal de cinco militares de alta patente. O clímax do filme é a cena em que Strassera termina a leitura das alegações finais e diz a histórica frase: “senhores juízes, nunca mais!”.

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Nas últimas semanas, o Brasil acompanhou a divulgação dos indicados ao Oscar 2025. Após Fernanda Torres ganhar o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Filme de Drama por sua interpretação de Eunice Paiva, a expectativa dos brasileiros com o Oscar tornou-se ainda maior, com um clima de Copa do Mundo. Além das indicações nas categorias de Melhor Filme Internacional e de Melhor Atriz, a surpresa foi a indicação a Melhor Filme, a principal categoria do maior prêmio do cinema mundial, um feito inédito para uma produção brasileira.

Dirigido por Walter Salles, Ainda Estou Aqui se baseia no livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva e conta a história da sua família, devastada após o pai, o ex-deputado Rubens Paiva, ser sequestrado em casa e assassinado sob tortura pelo Estado brasileiro durante a ditadura, em janeiro de 1971. A personagem central do filme é Eunice, a mãe dessa família que passa a lutar para comprovar que o marido foi morto pelos militares.

Embora conte uma tragédia familiar, o filme é extremamente sensível e emociona a todos com a delicadeza de suas cenas. Fernanda Torres está espetacular no papel, transmitindo toda a grandeza de Eunice. Não é por acaso que a atriz tem sido tão aplaudida e premiada.

Uma das cenas mais marcantes do filme é o momento em que Eunice é submetida ao primeiro interrogatório no DOI-CODI. Após ser sequestrada em casa, junto com uma de suas filhas adolescentes, fica presa por 12 dias, período em que é interrogada acerca das ações supostamente subversivas do marido.

No interrogatório, a primeira frase da protagonista é: “eu quero o meu advogado”. Nesse momento, Eunice compreende que não está sob um Estado de justiça. Na sala escura do DOI-CODI, a lei é outra. Ali, não vige nem mesmo o direito autoritário da ditadura. É quando começa a saga de Eunice, uma luta por justiça que, hoje, tem um novo capítulo com o filme.

Após o período presa e incomunicável, ela é liberada e volta para casa. Sem saber do paradeiro do marido, contrata um advogado para impetrar um habeas corpus e, assim, tentar encontrá-lo. O remédio constitucional estava suspenso por força do AI-5. Nessa parte do filme, após decisão denegatória, Eunice pede uma cópia do HC ao advogado e coloca a peça num arquivo pessoal que, com o tempo, passará a guardar outras evidências e recortes sobre o desaparecimento de Rubens.

Com a confirmação do assassinato do marido, Eunice regressa a São Paulo com os cinco filhos. Na capital paulista, retorna aos bancos universitários para cursar Direito, pois tinha clareza de que era necessário conhecer a lei e usá-la como instrumento de luta contra a ditadura.

Formada, tornou-se advogada defensora dos direitos humanos e intensificou sua luta por justiça e verdade sobre o desaparecimento de Rubens. Mas ela foi além, destacando-se como uma grande defensora dos povos indígenas, tornando-se especialista em Direito indígena. Ailton Krenak, líder indígena e amigo de Eunice, afirmou que sem ela “é impossível contar a história do movimento indígena”.[1]

O que diferencia as produções Argentina, 1985 e Ainda estou aqui é o fato de que, diferentemente do país vizinho, o Brasil não julgou os militares que cometeram crimes de lesa-humanidade durante a ditadura. Numa decisão errada, o Estado brasileiro optou por perdoar os militares que torturaram e mataram Rubens e um sem-número de pessoas. A equivocada Lei de Anistia, de 1979, foi criticada por Eunice por forçar o país ao esquecimento dos crimes cometidos pelos militares.

O julgamento dos generais, tal como reproduzido no filme Argentina, 1985, não acontecerá no Brasil. Mas Ainda estou aqui cumpre o papel que o Estado brasileiro renunciou. O filme, com toda a sua grandeza e impacto no cinema internacional, coloca a ditadura militar no banco dos réus para ser julgada por todo o povo brasileiro.

Krenak disse que a advogada Eunice Paiva “agia como o Ministério Público antes de existir Ministério Público”.[2] Hoje, ela faz as vezes de promotora de justiça e acusa os militares pelos crimes cometidos entre 1964 e 1985. Aqui, Eunice encontra Strassera e conecta os premiados filmes.

E não se trata de abstração. Estamos falando de um filme que conta a vida de uma advogada que lutou contra a ditadura. Um filme que está arrebatando aplausos por todos os lugares, ganhando a atenção da indústria cinematográfica e nos trazendo a indicação ao Oscar de Melhor Filme. Agora, estando na seleta lista dos 10 melhores filmes de 2024, o longa brasileiro terá ainda mais atenção de espectadores do mundo inteiro que, com a performance irretocável de Torres, compreenderão o que foi a ditadura militar no Brasil. 

O sucesso de Ainda estou aqui seguirá porque consegue transmitir a violência ditatorial com intensidade e sutileza, por meio de grandes atuações, como a de Fernanda Montenegro, que, mesmo sem falar, emocionou a todos no final do filme. Fora de cena, em entrevistas, Torres encarna ainda mais Eunice, como a que concedeu a um dos programas de maior audiência nos EUA, falando em inglês que a ditadura e a tragédia da família Paiva são partes da Guerra Fria.

A ditadura militar vai ao banco dos réus quando o CNJ, sob influência do filme, edita a Resolução 601, em 13 de dezembro de 2024, data do AI-5, determinando a retificação dos atestados de óbito dos mortos e desaparecidos vítimas do período ditatorial. Com isso, em 23 de janeiro de 2025, data em que o filme ganhou três indicações ao Oscar, a certidão de óbito de Rubens Paiva foi finalmente retificada, reconhecendo a verdadeira causa de sua morte: “não natural; violenta; causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”.

A repercussão do filme fez voltar as atenções da mídia ao processo ARE 1.316.562, que tramita no STF e trata do caso Rubens Paiva. Em 2010, ao julgar a ADPF 153, o Supremo cometeu um erro ao considerar a Lei de Anistia recepcionada pela Constituição de 1988. O erro ficou mais evidente após a Corte IDH considerar a Lei de Anistia brasileira incompatível com o Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário e que possui status supralegal em nosso ordenamento, sobrepondo-se à legislação infraconstitucional.

No fim de 2024, o ministro Flávio Dino, citando o filme Ainda estou aqui, reconheceu a repercussão geral num processo que trata de denúncia do MPF contra militares responsáveis pelo desaparecimento de militantes de esquerda na Guerrilha do Araguaia. De acordo com Dino, é preciso que o STF discuta se a Lei de Anistia é aplicável a crimes permanentes, como a ocultação de cadáver.

No último dia 28 de janeiro, a PGR, no ARE 1316562, manifestou-se pela admissibilidade do Recurso Extraordinário interposto pelo MPF, no qual se pretende reformar a decisão do STJ que trancou a ação penal movida contra os militares acusados de torturar, assassinar e ocultar o cadáver de Rubens Paiva.

O argumento do MPF é o mesmo do ARE 1.501.674: ocultação de cadáver é crime permanente e, no contexto em que foi cometido – de perseguição sistemática de opositores pelo Estado –, configura crime de lesa-humanidade, o que afasta a aplicação da Lei de Anistia. O argumento vai ao encontro de decisões da Corte IDH, que entende que crimes dessa natureza não podem ser perdoados pelo Estado. 

Em seu parecer no ARE 1.316.562, a PGR cita a ADPF 320, movida pelo PSOL, na qual se defende que a Lei de Anistia não se aplica às graves violações de direitos humanos cometidas por agentes públicos contra pessoas que, de modo efetivo ou suposto, praticaram crimes políticos, especialmente porque tal lei não se aplica a crimes permanentes, tendo em vista que seus efeitos expiraram em 15 de agosto de 1979. Além de ser a possibilidade de responsabilizar criminalmente os militares que assassinaram e ocultaram o corpo de Rubens Paiva, esta pode ser a oportunidade única de corrigir o erro da ADPF 153.

Com toda a repercussão positiva do filme Ainda estou aqui, vemos um clima de “ódio e nojo à ditadura”, com as pessoas – principalmente os mais jovens – conhecendo o horror desse período. Num momento em que a extrema direita brada em defesa da “tradicional família brasileira” e rende homenagens ao que chamam eufemisticamente de “regime militar”, temos um filme que mostra como a ditadura feriu de morte uma feliz família católica e de classe média.

É uma contradição política que escancara a verdadeira face daqueles que dizem defender os valores familiares, mas, na verdade, defendem torturadores e assassinos. Um dos grandes acertos de Salles é conseguir conectar o público à família Paiva: no começo do filme, temos vontade de participar das festas dessa família; da metade do filme em diante, sentimos a dor daquela mãe e das suas filhas e filho. É impossível sair do cinema sem nos sentirmos parte da família Paiva e com absoluta ojeriza à ditadura militar.

Não veremos generais de 1964 no banco dos réus respondendo pelos crimes da ditadura militar. Talvez, em razão do tempo, nosso país também não veja a efetiva condenação dos assassinos de Rubens Paiva. No entanto, tudo o que Ainda estou aqui tem feito por memória, verdade e justiça já é um grande julgamento dos crimes da ditadura militar.

Eunice ainda está aqui, como advogada, fazendo justiça por todas as vítimas da ditadura. Sua luta não foi em vão e, hoje, o mundo inteiro aplaude não apenas um dos mais belos produtos do cinema nacional, mas, sobretudo, aplaude a força e a coragem de uma grande mulher que nos inspira. Hoje, Eunice Paiva diz em alto e bom som: “senhores juízes, nunca mais!”.


[2] Entrevista já citada.

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