Após 60 anos, golpe ainda ameaça democracia brasileira

Spread the love

Os 60 anos do golpe militar que inaugurou a ditadura que durou de 1964 a 1985 nos leva a refletir se os fantasmas autoritários que assombram a história brasileira de tempos em tempos estão dissipados ou se reencarnaram em novas formas. Do positivismo autoritário embrenhado no nascimento da República sem povo, que caracterizou inclusive lideranças civis como Getúlio Vargas, temo que tenhamos transitado para um novo tipo de ameaça autocratizante, no pior estilo do autoritarismo pós-globalização: o fundamentalismo religioso.

Não são apenas pastores evangélicos e suas ovelhas que estão por trás deste projeto: há também uma proporção significativa de católicos de classe média e alta, que nunca se sentiram confortáveis com aquilo que em linhas gerais pode ser chamado de doutrinas sociais da igreja. Qualquer forma de ajuda aos pobres e marginalizados é vista como um comunismo — palavra-chave que caracteriza o inimigo no bolsonarismo, aqui entendido como a extrema direita brasileira.

No caso dos líderes evangélicos, porém, trata-se menos da ojeriza aos mais necessitados, os quais nos grandes centros urbanos formam parte significativa do rebanho que foi decisivo para a vitória de Jair Bolsonaro em 2018. Os pastores simpáticos à extrema direita buscam sobretudo vender uma pauta moralizante em troca de um mercado garantido de votos e, portanto, poder principalmente na esfera federal. Querem regular corpos e intimidades em nome de velhos vícios públicos, como o patrimonialismo do qual mesmo o positivismo republicano não foi capaz de nos livrar. Pelo contrário: tal modelo de ação política talvez tenha apenas racionalizado os vícios herdados da colonização e do Império.

Chama atenção a pesquisa Datafolha que indica que 53% não veem a ameaça de ditadura no Brasil. Isso implica que o restante dos entrevistados ou está indiferente ao assunto (eles são a minoria) ou consideram haver alguma chance de perdermos garantias democráticas. Ora, se temos a democracia, segundo parcela significativa da população, pouco consolidada é porque de alguma maneira os eleitores percebem o ambiente sócio-político-econômico como propício a um novo ciclo autoritário. Isso para não levantar a hipótese bastante lógica de que a percepção dos entrevistados está condicionada a suas preferências políticas, lembrando que para muitos à direita já vivemos uma ditadura formada pelo Poder Executivo hoje à esquerda e o Judiciário.

Nesse sentido, a derrota de Bolsonaro em 2022 para uma frente ampla capitaneada por Luiz Inácio Lula da Silva seria o último suspiro da Nova República e da ordem constitucional de 1988 antes de ela ser eventualmente sepultada pela ação de Michelles e Tarcísios que venham a herdar o espólio bolsonarista.

Sinal de um potencial autoritarismo à direita ainda ser forte no Brasil reside no fato de que o centro político está minguando, tal como demonstra o fim, na prática, do PSDB na cidade de São Paulo, talvez a localidade brasileira que melhor exemplifica os requisitos socioeconômicos para uma democracia emergir e sustentar-se. Na semana passada, todos os 8 vereadores do partido abandonaram a legenda, o que diz bastante sobre sua viabilidade política em ano de eleições municipais.

Colocar o fim do PSDB como indício de declínio democrático não significa em hipótese alguma comprar ou vender o discurso que coloca a centro-esquerda, que tem o PT como partido dominante, em situação de simetria em relação à direita bolsonarista, que é extremista, iliberal e, portanto, antidemocrática. Porém, é fato que segmentos importantes do centro não enxergam em Lula e no PT um caminho legítimo para a política brasileira, tanto que boa parte dos votos atribuídos a Simone Tebet (MDB) — uma candidata centrista por excelência e que contou com uma vice (Mara Gabrilli) então no PSDB — no 1º turno das eleições presidenciais de 2022 migrou para Bolsonaro.

As razões para o centro político no Brasil ter deixado de existir ainda precisam ser mais bem investigadas, mas podem estar relacionadas ao fato de que deixamos de ser uma sociedade em processo de industrialização e voltamos a ser agroexportadores. Nesse modelo, ou se está a favor de um polo ou contra outro: as nuances trazidas por uma sociedade moderna, urbana e industrial são mínimas e, assim, não carecem de representação política.

Um partido que poderia exercer o papel de fiel da balança e o faz em alguns momentos é o PSD, capitaneado por Gilberto Kassab e que recebeu a maioria dos vereadores paulistanos ex-tucanos. Mas, tal como os ditos eleitores centristas, Kassab já parece ter escolhido o lado de Bolsonaro ao se aliar em São Paulo a Tarcísio de Freitas, muito provável herdeiro do espólio do ex-presidente, hoje inelegível. Ironia das ironias, foi também a covardia dos membros de um outro PSD — o de Juscelino Kubitschek — que pavimentou o sucesso do penúltimo golpe militar bem-sucedido, em 1964.

O leitor mais atento deve estar se perguntando: qual foi, portanto, o último golpe capitaneado por boinas-verdes que teve sucesso? Foi o desferido em 3 de abril de 2018, quando o general Eduardo Villas Bôas publicou o infame tuíte que colocou uma faca no pescoço dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) prestes a votar o habeas corpus de Lula, então líder de intenção de votos na corrida presidencial daquele ano. Sem tanques nas ruas, os militares ainda são capazes de interferir no poder civil. Lula que o diga, pois censurou referências oficiais a 1964 neste ano. Maus sinais para os que ainda acreditam que a democracia é a pior forma de governo exceto todas as outras.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *