As emendas impositivas ao orçamento e o originalismo à brasileira

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A busca pela intenção dos criadores das normas legais ou pelo significado que eles lhes atribuem constitui um dos métodos de interpretação jurídica. A técnica conta com alguns adeptos, notadamente nos Estados Unidos, onde constitui uma das facetas do chamado “originalismo”.[1]

Ainda que não muito prestigiada no Brasil, ela, ainda que de forma velada, viceja por aqui num campo bastante peculiar: o da execução obrigatória de programação decorrente de uma parte das emendas ao projeto de lei orçamentária anual da União (ditas impositivas, abrangendo as emendas individuais e uma parte das emendas de bancada estadual). Trata-se do “originalismo à brasileira”, prática estranha a fundamentos republicanos como o princípio da impessoalidade.

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A procura pelo sentido que os autores queiram dar às normas por eles criadas suscita algumas reflexões. O significado dado pelo autor constitui a única leitura legítima do texto normativo? Em caso afirmativo, é factível encontrar tal significado? Para ajudar na reflexão, imagine-se um decreto presidencial.

Formalmente, o presidente da República figura como o autor do documento, ainda que apenas tenha assinado uma versão preparada por um assessor. Nesse caso, seria razoável procurar este auxiliar para saber de que maneira o decreto deve ser interpretado? Possivelmente, não, uma vez que, na figura do assessor, não seria reconhecida autoridade jurídico-política para tanto.

Por conseguinte, dificilmente alguém atribuiria legitimidade à interpretação assim obtida. Por outro lado, as orientações passadas a ele pelo presidente poderiam ser de valia, mas pode ser que não haja registros delas. Deveria então o intérprete contactar diretamente o presidente? Isso seria factível? Muito provavelmente, não.

Questões similares são ainda mais intrigantes quando as normas a serem aplicadas a um caso concreto emanam do processo legislativo. Isso é assim porque esses textos resultam do esforço coletivo de vários atores com autoridade para gerá-los, como, no caso de uma lei federal, o presidente da República, os deputados e os senadores. Quem ou qual seria, então, uma fonte legítima para a tarefa de interpretação? Talvez, um parecer de uma das casas do Congresso evidenciando o ponto de vista da maioria ao tempo “da última decisão legislativa relevante”.[2]

Essa solução parece adequada, mas envolve o mesmo tipo de questionamento. Afinal, a maioria é, ela mesma, uma coletividade. Além disso, a manifestação registrada no parecer pode não revelar tudo, e, por vezes, opiniões ausentes de tal documento, como as de minorias parlamentares, podem ter influência sobre o texto final da norma.[3]

Em vista dessas constatações, uma alternativa à procura pela intenção ou significado original pode ser a aderência ao próprio texto legal (produto juridicamente legítimo como expressão de uma manifestação individual ou coletiva de vontade),[4] à luz do sistema jurídico e seus princípios.[5] Nesse caso, o recurso ao histórico legislativo (às origens da norma) figuraria, no máximo, como instrumento subsidiário de interpretação.[6]

De todo modo, ainda que se prefira atribuir ao originalismo proeminência na tarefa interpretativa, não se pode negar que um compromisso extremado com as intenções dos autores ou sentidos por eles dados às normas pode levar a soluções em desalinho com princípios republicanos. Por um lado, é bem verdade, a busca por essas intenções ou sentidos pode ser justificada segundo argumentos que ressaltam a legitimidade dos representantes eleitos para a atividade legiferante.[7]

Por outro lado, a coisa pública requer que as questões estatais submetam-se, em prol do bem comum, à impessoalidade.[8] Obviamente, essas duas colocações não são necessariamente opostas. De fato, espera-se que políticos falem e ajam em nome de seus representados, promovendo o interesse público por meio de procedimentos decisórios que viabilizem o equacionamento de pontos de vista diversos.[9] De qualquer forma, à luz dessa argumentação, é razoável adotar uma versão exagerada do originalismo segundo a qual caiba a um autor específico o poder exclusivo de dizer como um trecho de legislação deva ser aplicado?

A pergunta tem como alvo a execução obrigatória de programação orçamentária derivada de parcela das emendas parlamentares. Tome-se, por exemplo, o caso das emendas individuais. Após o envio do projeto de lei orçamentária pelo presidente da República ao Congresso Nacional,[10] todos os deputados e senadores têm a oportunidade de propor mudanças no documento inicial, por meio de emendas, segundo um abrangente conjunto de regras constitucionais, legais e regimentais.[11]

Paralelamente a iniciativas coletivas, cada legislador pode apresentar, individualmente, 25 emendas sugerindo dotações (ou aumento de dotações) para ações de governo.[12] Cada uma dessas emendas refere-se a apenas uma ação,[13] e cada um dos autores individuais conta com iguais montantes financeiros para as indicações de dotações.[14]

Assim, um parlamentar pode propor qualquer distribuição do valor individual fixado entre as 25 ações orçamentárias por ele escolhidas. Todas as emendas individuais submetem-se a sessões de votação.[15] Teoricamente, é possível rejeitar algumas (ou todas), mas isso não faz parte da tradição parlamentar. Devido a um acordo tácito entre os legisladores, as emendas ao orçamento federal (individuais ou não, impositivas ou não) gozam de uma espécie de sacralidade.

Curiosamente, a especial deferência atribuída às emendas individuais estende-se para além do processo legislativo. Tal fato soa estranho porque uma emenda constitui-se apenas de uma proposição cujo intuito é o de mudar uma outra, como um projeto de lei, no curso dos trâmites parlamentares.[16]

Em outras palavras, a emenda é apenas um instrumento de trabalho à disposição da atividade legiferante. Terminada esta, o que é válido e vinculante é o seu resultado: por exemplo, uma lei, um código ou um decreto legislativo, não a proposição original ou as muitas emendas a ela apresentadas. Nada obstante, atribui-se às emendas individuais ao orçamento uma condição especial mesmo depois que a lei orçamentária entra em vigor.

Essa condição resulta de dispositivos concernentes à fase de execução do orçamento. Segundo a Constituição, “[é] obrigatória a execução orçamentária e financeira das programações oriundas de emendas individuais”, salvo “nos casos dos impedimentos de ordem técnica”.[17] Ademais, é dada a cada autor – senador ou deputado – a prerrogativa de informar, por meio de comunicação oficial, maiores detalhes sobre como as suas intenções, em relação a tais programações, devem ser observadas pela administração pública.[18]

Finalmente, em face dos ditos impedimentos, conta cada parlamentar com a faculdade de definir como a quantia fixada numa emenda problemática de sua autoria deve ser distribuída para outras finalidades.[19] Em resumo, o status único de que se revestem as emendas individuais ao orçamento envolve uma espécie de interpretação jurídica segundo a qual a busca por intenções ou sentidos originais significa, literalmente, conferir aos autores das normas a capacidade exclusiva de dizer como elas devem ser cumpridas. Em tempo, igual conclusão vale para a parcela de emendas de bancada estadual sujeitas ao mesmo tipo de regime.[20]

É esse tipo de personalismo que não se coaduna com os princípios republicanos.[21] A bem da verdade, há argumentos que propõem justamente o contrário.[22] Alega-se, nesse caso, que o regime legal aplicável às emendas impositivas consiste numa reação ao uso das emendas ao orçamento como forma de garantir o apoio de maiorias no Congresso.[23]

Num ambiente pluripartidário, tal uso foi (ou é) uma das maneiras pelas quais o chamado “presidencialismo de coalizão”[24] poderia assegurar a governabilidade no nível federal.[25] A despeito das demandas reais do jogo político, uma crítica aponta que a prática não era (ou não é) transparente, com negociações inacessíveis ao escrutínio público.[26]

Além disso, outro contra-argumento afirma que o método afronta (ou afrontava) o princípio constitucional da impessoalidade uma vez que torna (ou tornava) parte da execução orçamentária dependente do comportamento dos parlamentares em votações de interesse do executivo.[27] Desse modo, o regime aplicável às emendas impositivas ao orçamento constituiria uma correção de rumos em relação a uma prática anterior, a qual seria, ela sim, antirrepublicana.

A crítica que levou à nova regulamentação é justificável, mas a mudança para o regime atual criou outra distorção. O emprego de uma norma não pode estar sujeito a tal compromisso com seus criadores a ponto de eles serem, obrigatoriamente, consultados a cada vez em que a lei deva ser aplicada.

Legisladores criam legislação, não são seus proprietários. Uma lei federal – e é isso o que é o orçamento federal, ainda que com características muito específicas – é uma norma da União, não do presidente da República ou de qualquer dos membros do Congresso.

A colocação vale para qualquer provisão legal, mesmo num caso tão restrito como os das emendas impositivas ao orçamento. Afinal, elas resultam de um esforço coletivo que a elas confere força normativa por meio de um processo de agregação de vontades diversas. O recurso às intenções ou acepções dos autores de normas pode até auxiliar a atividade interpretativa. Não deveria, contudo, implicar um dever de consultas diretas com eles, como ocorre com o originalismo à brasileira no contexto das emendas impositivas ao orçamento.

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O texto-base do artigo, em inglês, encontra-se em Luís Otávio Barroso da Graça, The Legal Nature of the Legislative Process 41-46 (2024) (tese de Doutorado em Direito, Universidade da Califórnia, Berkeley), <https://escholarship.org/uc/item/3xp0w140> (acesso em 9/10/2024). A tradução para o português e as adaptações feitas (como a inserção do parágrafo introdutório e a omissão de alguns trechos) são minhas. As opiniões aqui expressadas e os erros porventura existentes são de exclusiva responsabilidade do autor.

[1] Ver, no contexto da interpretação de normas constitucionais, Sotirios A. Barber & James E. Fleming, Constitutional Interpretation: The Basic Questions 64, 79 (Oxford University Press, 2007).

[2] Victoria F. Nourse, A Decision Theory of Statutory Interpretation: Legislative History by the Rules, 122 The Yale Law Journal 70, 76–77 (2012) (“the last relevant decision”; a tradução para o Português é minha).

[3] Ver Jeremy Waldron, Law and Disagreement 138, 141 (Oxford University Press, Reprinted ed. 2004).

[4] Ver id., 144-145.

[5] Ver Ronald Dworkin, Law’s Empire, 51-53, 57-59 (Harvard University Press, 1986); Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously 105-108 (Harvard University Press, 1978); Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito 328 (Bushatsky, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973).

[6] Ver William N. Eskridge Jr., James J. Brudney & Josh Chafetz, Legislation and Statutory Interpretation 205 (Foundation Press, 3d ed. 2022).

[7] Cf. id., 188 (descrevendo a busca por intenções).

[8] Ver Philip Pettit, Republicanism: A Theory of Freedom and Government 284 (Oxford University Press, 1999).

[9] “A legislature is impotent . . . unless there is a rule for aggregating or combining the votes of its members.” (“Uma legislatura é impotente . . .  a menos que haja uma regra para agregação ou combinação dos votos dos seus membros.”) Waldron, supra, 143 (a tradução para o Português é minha).

[10] Ver Constituição, art. 165; Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), art. 35, § 2o, III.

[11] Ver Constituição, art. 166. Ver também Resolução do Congresso Nacional n. 1, de 2006 (RCN 1/2006, regulando o processo legislativo orçamentário no Congresso Nacional).

[12] Ver RCN 1/2006, arts. 44, 46 e 49.

[13] Ver RCN 1/2006, art. 41, III.

[14] Ver RCN 1/2006, art. 49.

[15] Ver Constituição, art. 166; RCN 1/2006, art. 82.

[16] Ver Regimento Interno da Câmara dos Deputados, art. 118; e Regimento Interno do Senado Federal, arts. 211, VI, e 230-234.

[17] Constituição, art. 166, §§ 11 e 13.

[18] Ver Constituição, art. 166, § 14; Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) 2024 (Lei n. 14.791/2023), art. 82;e dispositivos correlatos em LDOs passadas.

[19] Ver Constituição, art. 166, § 14; LDO 2024, art. 82, IV; e dispositivos correlatos em LDOs passadas.

[20] As emendas de bancada estadual são aquelas apresentadas, em conjunto, pelos representantes (deputados e senadores) de um mesmo estado. Para a parte delas sujeitas a regime similar ao das emendas individuais, ver Constituição, art. 166, §§ 12, 13 e 14; LDO 2024, art. 84; e os dispositivos correlatos em LDOs passadas.

[21] Apesar de eu não explorar esse aspecto, o princípio da separação de poderes também está em jogo, como em Bowsher v. Synar, 478 U.S. 714 (1986), em que Suprema Corte dos Estados Unidos afasta a possibilidade de o Congresso daquele país atribuir-se a função, típica do executivo, de interpretação ou aplicação das leis. Curiosamente, o caso também dizia respeito a questões orçamentárias (particularmente, a cortes no orçamento).

[22] Cf. Supremo Tribunal Federal, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 854, Medida Cautelar, Relatora: Min. Rosa Weber (decisão monocrática), 5/11/2021, Diário da Justiça Eletrônico n. 221, 9/11/2021 (publicação), <https://www.stf.jus.br/arquivo/djEletronico/DJE_20211108_221.pdf> (acesso em 27/2/2023) (mencionando que o regime aplicável às emendas ao orçamento deve se guiar pelos princípios da transparência e da impessoalidade).

[23] Ver Congresso Nacional, Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização, Parecer n. 74, de 2013-CN, Diário do Senado Federal, Ano LXVIII, Suplemento A, n. 181, 2/11/2013, <https://legis.senado.leg.br/diarios/BuscaPaginasDiario?codDiario=18717&paginaInicial=1&paginaFinal=10> (acesso em 27/2/2023).

[24] Sérgio Henrique Hudson de Abranches, Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro, 31 Dados 5 (1988).

[25] Ver Luis Henrique Teixeira Graton, Carlos Alberto Grespan Bonacim & Sérgio Naruhiko Sakurai, Political Bargaining Practices Through Federal Budget Execution, 54 Rev. Adm. Pública 1361, 1362–1363 (2020); Carlos Pereira & Bernardo Mueller, Comportamento Estratégico em Presidencialismo de Coalizão: As Relações entre Executivo e Legislativo na Elaboração do Orçamento Brasileiro, 45 Dados 265, 300 (2002).

[26] Ver Câmara dos Deputados, Comissão Especial, Parecer, Proposta de Emenda à Constituição n. 565-C, de 2006, Diário da Câmara dos Deputados, Ano LXVIII, n. 132, 7/8/2013, <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD0020130807001320000.PDF#page=235> (acesso em 27/2/2023).

[27] Ver id.

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