Avaliação quinquenal dos benefícios tributários: medida de responsabilidade fiscal ou controle de preços?

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A despeito de a ideia inicial da reforma ter sido fundada na criação de um imposto sobre valor agregado (IVA), com alíquota única incidente sobre todos os bens e serviços, sem qualquer distinção, prevaleceu outra versão do rearranjo constitucional proposto.

A promulgação da Emenda Constitucional (EC) 132/2023 encerrou a discussão em torno da possibilidade jurídica de adoção de uma alíquota única de IVA, visto que elegeu um modelo em que a tributação se dará em quatro faixas de alíquotas, quais sejam: alíquota padrão; alíquota reduzida em 30%; alíquota reduzida em 60%; e alíquota com redução de 100% – ou alíquota zero, nos termos em que dispõe o art. 9º da EC 132.

Nesse contexto se situa o tema deste artigo: a EC 132 previu, nos §§ 10 e 11 de seu art. 9º o dever de o Poder Público realizar a avaliação custo-benefício para os regimes favorecidos de tributação, devendo tal análise também examinar o impacto dos benefícios na promoção da igualdade entre homens e mulheres, critério este incluído na EC por meio da atuação do Grupo de Pesquisa Tributação e Gênero da FGV Direito SP[1].

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A avaliação e controle de benefícios tributários são mecanismos necessários e não se trata de novidade no regime nacional. Além do art. 165, § 6º da Constituição, que trata do demonstrativo de gastos tributários, que deve acompanhar o projeto de lei orçamentária anual, desde 2019, as leis de diretrizes orçamentárias prescrevem a necessidade de que a concessão e a ampliação de benefícios e incentivos tributários sejam acompanhados da indicação do órgão responsável pela supervisão, acompanhamento e avaliação da política pública fomentada[2]. Trata-se de controle justificado sobre os impactos financeiros de benefícios e incentivos, na medida em que estamos diante da figura dos gastos tributários. Sobre o tema, uma breve reflexão de uma das autoras deste artigo[3]:

O Sistema Tributário destina-se a fornecer receitas necessárias para financiar o Estado. Entre as ações estatais, encontra-se a implementação das mais diversas políticas públicas, que são financiadas por gastos diretos e indiretos. Neste último caso, o Estado deixa de arrecadar tributos ou parcelas de tributos para induzir determinado comportamento privado

Voltando-se os olhos para a EC 132, não há dúvidas de que os benefícios aqui referidos são gastos tributários: trata-se de desvios da norma padrão de incidência do IBS e da CBS, justificados tanto pela essencialidade[4] do bem ou serviço objeto da benesse tributária quanto pelos impactos positivos que podem causar no acesso de bens e serviços essenciais e, ainda, na mitigação das desigualdades entre homens e mulheres.

A caracterização desses regimes favorecidos como gasto tributário é corroborada pelo § 2º do art. 130 do ADCT, ao prescrever que, na fixação das alíquotas de referência da CBS e do IBS, deverão ser considerados os efeitos sobre a arrecadação dos regimes favorecidos e de qualquer outro regime que resulte em arrecadação menor do que a que seria obtida com a aplicação da alíquota padrão. Ou seja, a Constituição determinou a compensação dos gastos tributários via aumento da alíquota de referência.

Na mesma direção é a redação dos incisos I e II do § 9º do art. 156-A da CF e do próprio § 10 do artigo 9º da EC 132, o qual prevê o retorno à alíquota padrão caso reste demonstrado, na avaliação quinquenal, que não há justificativa, à luz do custo-benefício, para a manutenção do benefício.

Ao regulamentar tais dispositivos, o PLP 68 determinou, no art. 467, que o Poder Executivo da União e o Comitê Gestor do IBS realizem a mencionada avaliação quinquenal, considerando a eficiência, eficácia e efetividade, no que se refere a políticas sociais, ambientais e de desenvolvimento econômico de vários gastos tributários, inclusive os enumerados no art. 9º da EC 132. Tais determinações são relevantes, mas lhes falta robustez para dar concretude aos objetivos constitucionais e à avaliação adequada do destino das verbas públicas.

Nessa toada, elaboramos, pelo Grupo de Pesquisa Tributação e Gênero da FGV Direito SP, sugestões para aprimorar o PLP 68, apresentadas pela senadora Zenaide Maia nas Emendas 457-U[5] e 458-U[6]. Destaca-se a proposta de estabelecer que os entes federativos implementem mecanismos de fiscalização periódica para assegurar a correta aplicação das reduções de alíquotas previstas, que deverá incluir auditorias anuais e a criação de um portal de transparência onde os resultados sejam disponibilizados a toda sociedade.

Outra sugestão é a regulamentação, pelo Comitê Gestor do IBS, em conjunto com o Ministério da Fazenda, de metodologia para aferir a eficiência das reduções de alíquotas previstas, incluindo, para esse fim, a coleta de dados junto aos contribuintes beneficiados. Além disso, é essencial incorporar medidas de participação social. Propõe-se que os órgãos de defesa do consumidor criem canais específicos para o recebimento de denúncias por parte dos consumidores.

Acerca da participação popular nesse controle, o caso da redução de tributação sobre produtos de higiene menstrual é exemplar. Estudo comparativo recente analisou diversos países que reduziram a tributação sobre absorventes, verificando o impacto que tiveram preço final[7]. A análise revelou que o repasse do benefício tributário aos consumidores ocorreu principalmente em países que adotaram medidas robustas de fiscalização e promoveram mecanismos de participação social.

Um dos exemplos é a Alemanha, onde a redução do IVA foi permanente e complementarmente repassada no preço, decorrente não apenas da mudança de legislação, mas da cobertura midiática e mobilização da sociedade civil, visto que “a maior atenção a determinados preços de produtos pode intensificar a competição de preços nesses itens específicos”.[8]

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É justamente nesse contexto que se insere o argumento de que a avaliação quinquenal conduziria a controle de preços, em ofensa ao livre mercado. A afirmação não poderia estar mais equivocada. Considerando-se que grande parte dos gastos tributários autorizados na EC 132 e regulamentados no PLP 68 justificam-se à luz da essencialidade dos bens e serviços, é evidente que o objetivo central de se estabelecer alíquotas reduzidas ou zeradas está em facilitar o acesso a eles, pela redução no preço. Caso tal avaliação não seja possível, abriremos mão, como cidadãos, de todo e qualquer controle desse tipo de política pública. Exatamente por isso, é fundamental que se estabeleçam mecanismos legais que permitam o controle social sobre os gastos tributários previstos na reforma tributária do consumo.

Reitere-se: verificar se os gastos tributários foram repassados aos preços dos bens e serviços não caracteriza controle ou tabelamento de preços ou de lucros. O raciocínio não se sustenta, pois, embora os benefícios tributários sejam processados à margem do orçamento, tal figura se assemelha às despesas públicas, constituindo uma das formas estatais de financiamento de políticas públicas. A demanda de controle do destino de verbas públicas decorre do texto constitucional e da Lei de Responsabilidade Fiscal; trata-se de investimento indireto do Estado que deve possuir contrapartida de impacto público.

Recorde-se, inclusive, o art. 2°, IV da Lei nº 8.137/1990, que tipifica como crime contra a ordem tributária “deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento”.

Assim, obrigar que os gastos tributários sejam considerados na formação dos preços dos bens e serviços beneficiados com isenção, reduções de alíquotas, créditos presumidos, em nenhuma hipótese possível configura controle de preços. A única interpretação que levaria a tal conclusão despropositada seria entender que os recursos que o Estado deixará de arrecadar com alíquotas padrão de CBS e IBS não são recursos públicos – um evidente disparate.


[1] Menezes, Luiza Machado de O. (2024). Memória, Afeto e Esperança: nossa História de Luta pela Inclusão da Perspectiva de Gênero na Reforma Tributária (Emenda Constitucional n. 132/2023). Revista Direito Tributário Atual, (56), 731–751. Disponível em: https://revista.ibdt.org.br/index.php/RDTA/article/view/2535. Acesso em: 21 nov. 2024.

[2] Nesse sentido, confira-se o art. 142 da LDO 2024, Lei nº 14.791/2023.

[3] Castilhos, Núbia Nette Alves Oliveira de. A Lei de Responsabilidade Fiscal e as Renúncias de Receitas Tributárias: uma abordagem conceitual do art. 14 da LRF, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024, pp. 12-13

[4] Cf. Piscitelli, Tathiane. A reforma tributária abandonou a essencialidade? Valor Econômico, 31 out. 2024. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/fio-da-meada/post/2024/10/a-reforma-tributaria-abandonou-a-essencialidade.ghtml. Acesso em: 21 nov. 2024.

[5] Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9782062&ts=1732208026454&disposition=inline&ts=1732208026454. Acesso em: 21 nov. 2024.

[6] Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9782066&ts=1732208026461&disposition=inline&ts=1732208026461. Acesso em: 21 nov. 2024.

[7] Jurga, I., Yates, M. & Bagel, S. What Impact Does A VAT/GST Reduction Or Removal Have On The Price Of Menstrual Products? https://periodtax.org/documents/periodtax-research-report_a.pdf (WASH United, 2020). Acesso em: 21 nov. 2024.

[8] Frey, A., Haucap, J. VAT pass-through: the case of a large and permanent reduction in the market for menstrual hygiene products. Int Tax Public Finance 31, 160–202 (2024). https://doi.org/10.1007/s10797-023-09813-w. Acesso em: 21 nov. 2024.

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