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O setor de seguros passa por uma de suas mais importantes transformações no Brasil. O Congresso Nacional acaba de aprovar, no dia 5 de novembro de 2024, o Projeto de Lei 2.597/2024 – a Lei de Contrato de Seguro, que levou mais de 20 anos de debates e ajustes, até ser finalmente aprovada e seguir agora para a sanção presidencial. Produzida sob os aplausos de especialistas de todo o mundo, a nova lei possibilitará a redenção securitária. Pesquisa solicitada à FIPECAFI (FEA-USP) aponta que o novo regime jurídico do seguro duplicará o volume de negócios no setor.
Contudo, apesar do avanço indiscutível que a lei promoverá, alguns tipos importantes de seguros – a saber: D&O, garantia e rural — correm o risco de ser inutilizados. Mas ainda há salvação.
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O primeiro passo nesse sentido, foi a aprovação da nova lei. Outro passo, mais difícil, será a comunidade jurídica cooperar uniformemente para o aproveitamento dos avanços legislativos.
A jurisprudência também terá papel decisivo. Infelizmente, sem um regime jurídico mais ajustado e previsível, os tribunais têm provocado graves danos aos seguros-garantia e de responsabilidade civil de administradores de empresas (D&O).
Durante décadas, os seguros-garantia e D&O não sofriam sinistros. Com a Operação Lava Jato, o cenário mudou. As carteiras foram afetadas catastroficamente.
Por exemplo, em 2013, a sinistralidade (prêmio arrecadado divido pelas indenizações pagas) das seguradoras no D&O era de 32%. Assim, 78% do que era arrecadado dos segurados não se revertia em indenizações – um produto bastante rentável. Em 2019, a sinistralidade geral no ramo atingiu 152%. Metade do que se efetivamente pagou no D&O não veio daquele ano.[1]
Vendo esses números, as resseguradoras – e as seguradoras ultra dependentes do resseguro – fecharam as torneiras das indenizações. Para apoiarem esse fechamento, surgiram advocacias e reguladores de sinistro. Artigos e livros correram a acudir os interesses das seguradoras e resseguradoras, dando amparo a todo tipo de tese restritiva que não se colocava na experiência anterior.
Nos últimos tempos, encerrou-se parte das demandas judiciais de seguro-garantia e de D&O da época da Lava Jato. O saldo é bastante negativo: sucessivas decisões têm maltratado esses seguros, que, como outros, convertem-se em verdadeiros “pastéis de vento”.
Comecemos pelo D&O. Todo mundo sabe que aquele que reclama de alguém começa acusando-o de ter agido ou de propósito ou com culpa grave. Isso acontece tanto na vida pessoal quanto na experiência jurídica acusatória. Desse modo, os administradores de empresas tendem a ser acusados de agir com dolo ou culpa grave.
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O Superior Tribunal vem decidindo reiteradamente que, mesmo sem condenação judicial transitada em julgado, o D&O não funciona para o acusado e seus cossegurados, ainda que estes sejam inocentes. Chega-se ao cúmulo de se decidir que, sendo acusado de agir com dolo ou culpa grave, o administrador falecido antes de sofrer condenação perde o direito ou, pior do que isso, vicia o seguro de nulidade[2]. Esquece-se que a principal utilidade do seguro D&O ao segurado é amparar o administrador quando precisa de meios para se defender e provar sua inocência.
Nessa conjuntura, acusadores públicos e privados, nacionais e estrangeiros, passam a ser donos da decisão de se pagar ou não a defesa dos seus acusados. Algumas das maiores companhias brasileiras e muitos administradores têm sido privados de suas coberturas de seguro. Hoje, os contratos de indenidade parecem mais promissores do que o seguro D&O.
Nos seguros-garantia, o processo é idêntico. A onda moralista e justiceira provocada pelas espetaculares investigações policiais erodiu a mentalidade e o discurso jurídico. Além disso, algumas seguradoras e os seus clientes tomadores do seguro unem-se contra os segurados. Muitas vezes, essa estratégia de coalizão é bem-sucedida nos tribunais.
Ao mesmo tempo, alguns insistem na lenda de que o seguro é uma operação mutualista em que não é o dinheiro da seguradora que está em jogo, mas um quimérico monte coletivo que ela apenas administra.
Assim, a pretexto de proteger a poupança coletiva, aguça-se o sentimento patrício dos juízes que, sem muita cerimônia, tendem a acolher, por exemplo, a alegação artificiosa dos devedores inadimplentes de que as eventualidades de uma obra de engenharia complexa estão sempre associadas a erros graves dos seus credores.
Mesmo os donos de obra ou investidores que fazem o pagamento direto aos fornecedores e trabalhadores do devedor, evitando que o dinheiro da obra seja desviado para outro fim, acabam sendo acusados de dolosamente “agravar o risco”[3] – por sinal, a expressão mais abusada na prática administrativa e judicial securitária. Pouco importa se agiram simplesmente aplicando previsão contratual que lhes facultam cooperarem com os devedores. Não raro brotam sentenças que retiram dos seguros-garantia a sua esperada eficácia. No final, por mais cara que seja uma fiança bancária, o prudente gestor é levado a abandonar o seguro.
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Outra ameaça iminente, mas não judicial, é o esvaziamento do seguro rural. O Parlamento brasileiro precisa olhar com muito cuidado o novo Projeto de Lei 2.951/2024, que visa a reformar o sistema de subsídio público a esse tipo de seguro, e perceber que, nas entrelinhas, há uma tentativa de afastamento do Estado da supervisão dos conteúdos mínimos das apólices.
A artimanha está no artigo 4º que propõe um novo parágrafo 7º ao artigo 1º da Lei Complementar 137/2010. O que está escrito ali é que o Brasil tomará a contramão e será o único país em que o Estado se afasta do controle direto do conteúdo do seguro rural – pago com dinheiro público – para transferi-lo aos privados ocupantes de um novo Conselho Diretor do Fundo. A redação proposta para o inciso I, do § 1º do artigo 3º daquela Lei Complementar mata a charada de quem irá conduzir esse novo órgão: o Conselho Diretor constitui-se com 4 representantes de resseguradoras e seguradoras e apenas 2 do agronegócio. O Estado, mesmo ficando com a conta, é afastado da proa e colocado para fora do barco.
É urgente o exame crítico e funcional dos seguros. A nova lei poderá contribuir muito, mas depende de uma comunidade jurídica, inclusive no Judiciário, aberta a interpretá-la e aplicá-la sem interesses e preconceitos.
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[1] Dados disponíveis em https://www2.susep.gov.br/menuestatistica/ses/premiosesinistros.aspx?id=54
[2] REsp 2.168.666, 3ª Turma, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 15.10.2024.
[3] Mais recentemente, TJSP. Apelação 1022697-23.2022.8.26.0100, 27ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Luís Roberto Reuter Torro, j. 12.12.2023. A experiência pregressa não era assim. Por exemplo, TJSP.