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O jornal Valor Econômico relatou que o Ministério da Fazenda está preparando uma proposta de alteração da estrutura da regulação financeira em voga há décadas no país. Basicamente, essa estrutura é formada por diferentes reguladores com a missão de supervisionar e orientar o funcionamento do mercado financeiro.
O Banco Central (BC), a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e a Superintendência de Seguros Privados (Susep) dividem as funções regulatórias, cada qual voltada para um mercado respectivamente – mercado bancário, mercado de capitais e mercado de seguros.
Cada um dos reguladores toma conta do seu mercado por meio de duas abordagens regulatórias: a regulação de condutas e a regulação prudencial.
A regulação de condutas se aplica às práticas dos bancos, corretoras e seguradoras na relação com os seus clientes. A missão é protegê-los de ofertas enganosas ou discrepantes, a exemplo de regras de suitability para a adequação dos produtos ao perfil do cliente; regras de transparência, como a exigência de divulgação de riscos; e regras de prevenção contra fraudes.
A regulação prudencial desloca o olhar dos clientes para as instituições tomadas em si mesmas. O seu objetivo é garantir a solidez e estabilidade das instituições financeiras. Fazem isso através de normas de gestão de riscos e adequação de capital, por exemplo, como as regras de alavancagem que limitam a proporção entre capital próprio e os empréstimos concedidos.
Seja BC, CVM ou Susep, os três atuam na regulação – tanto de condutas, quanto prudencial – em seus respectivos mercados, ao menos em tese.
Na prática, apesar do mandato duplo, as características de cada um dos mercados especializaram BC e Susep em regulação prudencial, enquanto a CVM se voltou para a regulação de condutas.
Quando o cliente investe dinheiro numa poupança ou apólice de seguro, ele só não vê a cor do dinheiro de novo se o banco ou a seguradora quebrar. Basta então garantir que as instituições sejam capazes de honrar os depósitos e apólices firmadas, tal como almejam as regras prudenciais, sem gastar muita tinta com a forma como os produtos são oferecidos aos clientes.
Quando o cliente investe no mercado de capitais, seja em ações, debêntures ou cotas de fundos de investimento, o risco é inerente ao negócio. Se a emissora dos títulos performar, as ações e cotas se valorizam e as debêntures são quitadas. Se a companhia falir, faz parte do jogo, contanto que o investidor tenha sido informado previamente dos riscos.
A ilustração disso é que lei fundadora do Banco Central (Lei 4.595/1964) fala em “[z]elar pela liquidez e solvência das instituições financeiras” (art. 3º, VI). Já a lei que criou a CVM (Lei 6.385/1976) atribui-lhe a missão de “assegurar o acesso do publico a informações (…) [e] a observância de práticas comerciais equitativas” (art. 4º, VI e VII), a ponto de resultar naquilo bem caracterizado por Marcelo Trindade e Aline Menezes:
“A CVM não tem experiência em supervisão prudencial. E, o que é mais importante, é duvidoso que tenha a vocação para exercê-la, porque as normas de conduta sempre foram a sua expertise e a repressão ao descumprimento de tais normas é, em verdade, o que os investidores e a opinião pública esperam da autarquia”.
Isso se torna um problema à medida que inovações no mercado financeiro resultam em produtos que não se enquadram facilmente em nenhum mercado específico, já que combinam simultaneamente características típicas dos mercados bancário, de capitais e de seguros.
Em lugar da poupança, o gerente do banco passou a oferecer títulos cambiais, como os certificados de depósito bancário (CDB), então tornados extremamente populares. Só que os CDBs, embora voltados diretamente à captação de poupança popular (tal como as debêntures), são sujeitos apenas às regras do Banco Central.
Do outro lado, os Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC), permitidos no Brasil desde os anos 2000, são sujeitos às regras da CVM. Mas o colapso de um FDIC surte consequências em outros mercados, a começar pelas instituições de crédito que dependem desses fundos para financiamento. É o risco de contágio, típico do mercado bancário, atrelado a um instrumento típico do mercado de capitais.
Nesse mercado composto por produtos cada vez mais sofisticados e semelhantes, a falta de expertise dos reguladores em aplicar normas de conduta e prudenciais simultaneamente eleva o risco de que produtos – como CDBs e FIDCs, por exemplo – sejam monitorados com menos rigor.
Mas além dos produtos, as instituições financeiras também evoluíram. A unificação de organizações que atuavam em diferentes setores – bancos de investimento, bancos comerciais, corretoras, seguradoras – resultou na formação de conglomerados financeiros, a exemplo do Itaú Unibanco, que inclui o Banco Itaú, a Itaú Corretora, o Itaú Seguros.
Também aqui, a novidade eleva o risco de que as instituições financeiras sejam fiscalizadas sem precisão, já que nenhum dos reguladores tem uma visão dos conglomerados como um todo.
Isso ao menos inspirou reflexões sobre a necessária transformação da estrutura da regulação financeira. Em lugar de cada regulador responsável por um mercado particular, eles se dividiriam pela abordagem regulatória: um regulador responsável pela supervisão de condutas, e o outro pela supervisão prudencial, cada qual atuando transversalmente em todos os mercados.
Assim, as regras de suitability e de divulgação de informações, tradicionalmente aplicadas no mercado de capitais, seriam aplicadas de modo similar nos demais mercados. Igual as regras contra os riscos de liquidez e solvência, até então mais restritas aos bancos e seguradoras, espalhadas às instituições financeiras restantes.
Um modelo assim – conhecido como twin peaks – já existe em alguns países, como no Reino Unido (Prudential Regulation Authority e Financial Conduct Authority) e Austrália (Australian Prudential Regulatory Authority e Australian Securities and Investment Commission).
A tendência é que mais e mais países sigam o mesmo caminho, ao menos é nisso que aposta o autor do mais completo estudo sobre o modelo twin peaks publicado no Brasil, Augusto Coutinho Filho:
“Se, atualmente, esse modelo de regulação já mostra vantagens consideráveis em relação ao modelo setorial, a tendência é que – nos próximos anos – essas vantagens de mostrem ainda mais aparentes na medida em que as inovações financeiras tornam cada vez menos relevantes as divisões clássicas existentes entre os segmentos de mercado bancário, securitário e de capitais”.
Felizmente, uma proposta semelhante de reordenação dos reguladores financeiros está na ordem do dia no Ministério da Fazenda.
Segundo a reportagem do Valor, o BC incorporaria a Susep para realizar a regulação prudencial do mercado como um todo; e a CVM ficaria com a regulação de condutas na mesma amplitude. Dois reguladores centrais – um prudencial e um de condutas – complementares entre si e atuando em conjunto para supervisionar o risco do sistema de maneira completa.
Mas é óbvio que uma reforma dessa não é fácil, muito pelo contrário. Requer a alteração de diferentes leis ordinárias e complementares. Deve enfrentar a resistência de servidores dos órgãos atualmente existentes. E depende do empenho de agentes políticos sensíveis à relevância do tema, na esteira do pontapé dado pelo Ministério da Fazenda.
Tamanhas dificuldades podem inviabilizar a transição para a nova estrutura institucional, exceto se servir de incentivo para que as discussões evoluam até o ponto de torná-la inevitável. Foi o que aconteceu nas reformas tributária e da autonomia do Banco Central, por exemplo. É o que está a ser feito.