Boas práticas de funcionamento para as Comissões Internas de Biossegurança

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O Brasil possui uma regulação sólida e eficiente em biossegurança, destacando-se por sua capacidade de promover a inovação enquanto protege o meio ambiente e a saúde humana.

Desde 2005, ano de aprovação da atual Lei de Biossegurança (Lei Federal 11.105), até hoje, o país foi capaz de viabilizar a pesquisa e liberação comercial de inúmeros Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) e derivados que revolucionaram campos diversos, como agricultura, energia, saúde e química, sem que se tenha notícia de qualquer incidente grave que colocasse em xeque o uso da engenharia genética.

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Um dos instrumentos fundamentais criados pela legislação para assegurar esse desejável equilíbrio entre inovação e precaução são as Comissões Internas de Biossegurança (CIBios). De acordo com a Lei 11.105/2005, para que uma instituição possa desenvolver atividades com OGMs e seus derivados, o primeiro passo é constituir uma CIBio.

Esta nada mais é do que um grupo formado por pelo menos três especialistas cuja missão é monitorar e supervisionar tais atividades, garantindo a sua conformidade com a legislação vigente e com as melhores práticas disponíveis.

São muitos os poderes da CIBio. Cabe a ela, por exemplo, autorizar diretamente atividades em regime de contenção com OGMs e derivados da classe de risco 1; investigar acidentes; editar normas internas sobre biossegurança; e avaliar as propostas de atividades com esses organismos e a qualificação e experiência das pessoas envolvidas em sua execução.

Em contrapartida, possui deveres relevantes como o de submeter detalhados relatórios anuais das atividades da instituição para a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio)[1]; investigar acidentes; realizar inspeções anuais; e manter registros das atividades com OGMs. Tamanha é a sua relevância que a escolha dos seus membros não é livre. A legislação exige que sejam apontadas apenas pessoas idôneas, com conhecimento científico e experiência comprovados, e determina que qualquer alteração em sua composição seja comunicada à CTNBio e aprovada pelo seu presidente.

Justamente pela importância da missão que desempenham, o funcionamento inadequado das CIBios pode gerar riscos operacionais e legais para a entidade que supervisionam. A legislação estabelece, por exemplo, que a não conformidade da CIBio com as suas obrigações junto à CTNBio pode resultar na suspensão do Certificado de Qualidade em Biossegurança (CQB) da entidade – que é a licença que permite o desenvolvimento de atividades com OGMs e derivados – até que as pendências sejam sanadas, sem prejuízo de sua responsabilização nas esferas cível, administrativa e criminal.

Essa suspensão também pode afetar o financiamento ou patrocínio recebidos pela entidade, uma vez que a legislação veda que organizações públicas ou privadas (inclusive instituições financeiras), nacionais ou estrangeiras, financiem ou patrocinem atividades com OGM de quem não possui CQB.

Mas não é só. Eventuais problemas no funcionamento da CIBio podem ainda gerar também riscos pessoais para os seus membros, especialmente porque a legislação brasileira é rigorosa e prevê pesadas sanções criminais por seu descumprimento que podem atingir não apenas as pessoas jurídicas, mas também as pessoas físicas envolvidas.

Há registros de casos, por exemplo, em que o presidente da CIBio e o técnico principal foram denunciados pelo crime de “liberar ou descartar OGM no meio ambiente, em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização” em razão da suposta realização de experimento com organismo diverso daquele aprovado. Também se tem notícia de investigações criminais instauradas em razão da falta de registro individualizados de projetos com OGMs e de falta de controle adequado de informações em campo. Por isso, o bom funcionamento das CIBios também resguarda seus membros de eventuais implicações jurídicas.

Não há um manual universal para o funcionamento das CIBios, até mesmo porque as realidades e as demandas de cada organização são distintas. De todo modo, algumas boas práticas consagradas durante esses quase 20 anos de vigência da Lei de Biossegurança podem ser destacadas:

Governança: é desejável que as CIBios regulem o seu funcionamento por meio da edição de um regimento interno ou documento equivalente que aborde questões como o número de membros, a definição de suas atribuições, a periodicidade e formato de suas reuniões (respeitado o mínimo legal), a forma de convocação, o processo de deliberação, os poderes e deveres do presidente e dos demais membros (ex. secretário), as substituições em caso de ausência e o formato para documentação e arquivamento das decisões. Além disso, é importante que esse regimento efetivamente seja observado na prática, não se tornando simples peça decorativa, e que seja atualizado quando necessário.

Capacitação constante dos membros: os membros da CIBio devem ser continuamente capacitados para o desempenho de suas funções. Além das competências técnicas que usualmente acompanham a formação acadêmica desses profissionais, eles também deverão conhecer em profundidade a regulamentação específica sobre OGM (leis, decretos, resoluções da CTNBio etc.) e os procedimentos internos da própria instituição relacionados ao tema. Essa capacitação técnica e jurídico-regulatória deve ser constante, dada a evolução da ciência e da regulação, e pode contar inclusive com especialistas convidados quando conveniente, documentando-se a realização de cursos, palestras e treinamentos. Vale lembrar que as instituições que operam com OGMs têm o dever legal de promover a capacitação das suas CIBios[2], aspecto que pode ser invocado para garantir o apoio interno necessário par tanto.

Treinamentos para os colaboradores: a legislação exige que as atividades e projetos com OGMs e seus derivados somente sejam realizados por pessoas com treinamento prévio em biossegurança. É importante que a CIBio não apenas garanta que este treinamento seja realizado, mas também que o seu conteúdo seja adequado e atualizado. A preocupação com a qualidade do treinamento está refletida na Resolução Normativa 37/2022 da CTNBio, a qual passou a exigir que se registre, no mínimo, o conteúdo ministrado aos participantes, o responsável pelo treinamento e a carga horária. Assim, deve-se evitar a realização de treinamentos rasos e genéricos que não forneçam as informações mínimas necessárias para o desenvolvimento de atividades com OGMs e derivados.

Procedimentalização: a criação de procedimentos operacionais padrões (POPs) é uma boa prática administrativa incorporada pela maior parte das organizações, especialmente para temas sensíveis. Os procedimentos garantem a uniformidade do comportamento, reduzindo as chances de erro e aumentando a previsibilidade do resultado. É recomendável que as CIBios trabalhem para que a organização possua procedimentos completos, adequados e compreensíveis para as atividades com OGMs e derivados.  Além disso, esses procedimentos devem ser adequadamente informados para os membros da organização, inclusive aqueles que ingressem após a sua elaboração, e estar disponíveis para consulta. Por exemplo, quando um novo profissional de laboratório que trabalhará com OGMs for contratado pela empresa, deve-se assegurar que ele seja cientificado dos procedimentos relevantes antes de dar início às suas atividades, além de passar por treinamento.

Desenvolvimento de planos de contingência: uma das principais responsabilidades das CIBios é estabelecer protocolos claros para responder a incidentes biotecnológicos, reduzindo o impacto de eventuais falhas operacionais ou de eventos não previsíveis ou controláveis. Assim, é recomendável que a CIBio aprove e dê ciência desses planos a todas as pessoas da organização que possam ser envolvidos em seu acionamento e/ou execução.

Preparação para o atendimento à fiscalização: as atividades com OGMs e derivados podem e devem ser fiscalizadas pelas autoridades competentes. Atualmente, o Ibama e o Ministério da Agricultura desempenham este papel, realizando vistorias in loco com ou sem aviso prévio. Para garantir o adequado recebimento dessas autoridades e a apresentação das instalações, atividades e informações solicitadas, é desejável que se designe um grupo de profissionais aptos a desempenhar essa tarefa em todos os locais que possam ser objeto de fiscalização. Como ela pode ocorrer inclusive sem aviso prévio, essa preparação deve ser constante e, se possível, com redundância na equipe responsável, de modo que suplentes possam suprir a ausência de determinados membros.

Inspeções internas: As CIBios devem realizar no mínimo uma inspeção anual das instalações incluídas no CQB para assegurar o cumprimento dos requisitos e níveis de biossegurança exigidos, mantendo o registro de sua realização, das recomendações feitas e das ações decorrentes. É importante que formulários padronizados sejam utilizados para a realização dessas inspeções e que haja um acompanhamento efetivo da implementação das recomendações.

Condições adequadas de funcionamento: A legislação exige que as instituições reconheçam a autoridade das suas CIBios e assegurem o suporte necessário para que elas cumpram as suas obrigações legais e tenham as suas recomendações implementadas. Assim, cabe a elas demandar formalmente aos tomadores de decisão os recursos humanos e/ou materiais necessários para tanto, a fim de demonstrar o cumprimento do seu dever de diligência.  Se necessário, pode-se também demandar a intervenção das lideranças da entidade para que a sua autoridade seja respeitada em caso de resistência ou mora injustificável no cumprimento das recomendações.

As CIBios representam uma peça fundamental no sistema regulatório brasileiro, garantindo que as organizações estejam em conformidade com a legislação de biossegurança e protegendo tanto o meio ambiente quanto a saúde humana e animal, ao mesmo tempo em que viabilizam o desenvolvimento da biotecnologia.

Contudo, para que cumpram esta missão, é necessário que esses órgãos funcionem adequadamente. Ao adotar as boas práticas aqui apresentadas e outra pertinentes para cada realidade, as CIBios não apenas promovem esses objetivos e mitigam riscos operacionais e legais para as entidades que representam, como também protegem os seus membros contra eventuais riscos de responsabilização pessoal pelo descumprimento da legislação, na medida em que demonstra a sua diligência.

[1] A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) é instância colegiada multidisciplinar, de caráter consultivo e deliberativo, integrante do Ministério da Ciência e Tecnologia, responsável pelo estabelecimento de normas técnicas de segurança e de pareceres técnicos referentes à autorização para atividades que envolvam pesquisa e uso comercial de OGM e seus derivados.

[2] Art. 4º, §1º da Resolução CTNBio no 37/2022.

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