Câmara Superior inova entendimento sobre nulidade de decisão extra petita

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Recente acórdão da Câmara Superior do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo (TIT-SP), proferido no AIIM 4.049.125-0, inovou em relação ao posicionamento sobre a nulidade de decisão extra petita. A jurisprudência do Tribunal, até então predominante, era no sentido de ser nula a decisão que adotava motivações e argumentos jurídicos distintos daqueles aduzidos pelas partes, ainda que guardassem relação com os fatos apresentados (como exemplo, vide os acórdãos proferidos nos AIIM’s 4.082.315-5, 4.013.299-7 e 3.018.559-2, bem assim o artigo “A nulidade da decisão extra petita no âmbito do TIT-SP”, publicado por esse Observatório em 16/02/2023).

Como se sabe, diversas são as causas de nulidade das decisões proferidas no âmbito de processos administrativos e judiciais. Dentre tais, encontra-se a existência de decisão citra petita, ultra petita ou extra petita, cujos conceitos podem ser extraídos dos artigos 141 e 492 do Código de Processo Civil, os quais consagram o Princípio da Congruência ou Adstrição.

Tendo por base o comando contido nos artigos referidos, se a decisão deixar de analisar pedido suscitado pela parte, será citra petita; se conceder algo diverso do que foi pedido ou fundamentar-se em questão de fato não alegada por qualquer das partes, será extra petita; e se conceder além do quanto requerido pela parte, será ultra petita.

No que diz respeito à decisão extra petita, cerne do presente artigo, a doutrina majoritária entende que restará configurada quando a decisão conceder algo diverso do pedido ou da causa de pedir, ou seja, “do fato ou do conjunto de fatos a que o autor atribui a produção do efeito jurídico por ele visado” (MOREIRA, José Carlos Barbosa, “O Novo Processo Civil Brasileiro”, Forense, 2001, p. 15-16).

De acordo com o Superior Tribunal de Justiça, “decisão extra petita é aquela inaproveitável por conferir à parte providência diversa da almejada, como v.g., quando o acórdão confere pedido diverso ou baseia-se em causa petendi não eleita, consectariamente, não há decisão extra petita quando o juiz examina o pedido e aplica o direito com fundamentos diversos dos fornecidos na petição inicial ou mesmo na apelação, desde que baseados em fatos ligados ao fato-base” (REsp 700.206/MG. Relator Ministro Luiz Fux. DJe 19/03/2010).

Esse entendimento da Corte Superior se mantém, como se vê no Acórdão proferido no AgInt no AREsp 2.427.854/SP, pela 2ª Turma do STJ, em 28/06/2024, “consoante os arts. 141 e 492 do CPC/2015, o vício de julgamento extra petita não se vislumbra na hipótese em que o juízo de origem, adstrito às circunstâncias fáticas (causa de pedir remota) e ao pedido declarado nos autos, procede à subsunção normativa com amparo em fundamentos jurídicos diversos dos esposados pelo autor e refutados pelo réu”.

Em outras palavras, tanto a doutrina quanto a jurisprudência do STJ não consideram como decisão extra petita aquela em que o julgador se mantém adstrito aos fatos postos e aos pedidos formulados, ainda que se baseie em fundamento jurídico não suscitado pelo autor, tendo em vista que o juiz conhece o Direito e não é um mero espectador da atuação das partes.

Foi dessa forma que entendeu a Câmara Superior no acórdão proferido no AIIM 4.049.125-0, de 13 de junho de 2024, no qual, por maioria (10 x 6), não foi reconhecida a preliminar de nulidade arguida pela Fazenda Estadual, sendo mantida, portanto, a decisão da 4ª Câmara Julgadora que afastou parte da autuação em decorrência de argumento não levantado pelo contribuinte.

Na autuação, o contribuinte foi acusado de se creditar indevidamente do ICMS decorrente de escrituração de notas fiscais de entradas de mercadorias que não atendem os requisitos da legislação e/ou consideradas inidôneas (item I) e de receber mercadorias desacompanhadas de documentação fiscal hábil (item II).

A defesa apresentada pelo contribuinte foi julgada parcialmente procedente para afastar a cobrança de todo o imposto devido no item II, mantendo apenas a multa, por entender que o imposto exigido já estava abarcado pelo item I, haja vista a identidade de fatos geradores e valores.

Em seu Recurso de Ofício, a Fazenda Estadual pediu pelo restabelecimento do item II por se tratar de fato gerador diverso do item I, com o qual não se confunde. Tal argumento foi reconhecido pela 4ª Câmara Julgadora, que concluiu que as notas fiscais inidôneas que substanciaram a acusação descrita no item I da autuação são distintas daquelas que embasaram o item II da autuação.

A despeito disso, a Câmara Julgadora manteve o afastamento da cobrança do ICMS do item II por não conter no Auto de Infração a indicação dos dispositivos do RICMS ou da Lei Estadual do ICMS que atribuam a responsabilidade tributária do adquirente, visto não ser possível a decisão administrativa modificar critério jurídico adotado pela autoridade administrativa, conforme artigo 146 do Código Tributário Nacional.

Como a ausência de indicação dos dispositivos que atribuam a responsabilidade tributária do adquirente não foi suscitada pelo contribuinte em suas defesas, a Fazenda Estadual interpôs Recurso Especial pretendendo a nulidade da decisão por ser extra petita.

Ao analisar o Recurso Especial Fazendário, o relator, ilustre Juiz Marcelo Amaral Gonçalves de Mendonça, entendeu que a decisão se revelou extra petita, uma vez que trouxe fundamento não alegado pelo contribuinte no decorrer do processo. A posição foi acompanhada pelos Juízes Valério Pimenta de Morais, Maria Augusta Sanches, João Maluf Junior, Daniela Gonçalves Nogueira e Cacilda Peixoto.

Prevaleceu, no entanto, a divergência aberta pelo Juiz Edison Aurélio Corazza em seu voto-vista, no sentido de que o Juiz pode se valer de argumentos não suscitados na peça recursal ou na impugnação. No entendimento do ilustre Juiz, “a nulidade diz respeito ao pedido e os argumentos estão relacionados à causa de pedir, não estando o juiz limitado a eles, podendo (…) julgar a causa com base no seu entendimento, ainda que não trazido pelas partes”.

A linha de raciocínio adotada foi a de que dentre os fundamentos que regem o Direito e a função jurisdicional estão o “iura novit curia”, que significa “o Juiz conhece o Direito”, bem assim o brocardo clássico romano da “mihi factum, dabo tibi ius”, cuja tradução é “dá-me os fatos que lhe darei o Direito”.

Nesse sentido, o Julgador se filia à corrente de Miguel Reale, no sentido de que bastaria a descrição dos fatos para haver a prestação jurisdicional, uma vez que o juiz conhece o Direito.

Ademais, conforme exposto em seu voto-vista, a instância administrativa visa o controle de legalidade (fundamento) do ato administrativo (no caso, o lançamento tributário), para a constituição definitiva de dívida líquida e certa. Dessa forma, o objetivo do processo administrativo ficaria comprometido se restasse omisso quanto a fundamento encontrado e não apreciado, apenas por não ter sido suscitado pela parte nas defesas apresentadas.

Trata-se de posição inovadora, que dentro dos ditames previstos no Código de Processo Civil, na jurisprudência da Corte Superior e na doutrina, abarca preceitos da Teoria Geral do Direito e a finalidade do processo administrativo tributário, em verdadeira análise sistêmica do Direito.

Autores:

Erika Garcia de Cunha Melo – Pesquisadora do Projeto Repertório Analítico de Jurisprudência do TIT – NEF-FGV-SP. Mestre em Direito Tributário (FGV-SP). Pós-graduada em Petróleo e Gás (COPPE-UFRJ). Graduada em Direito (UFMG) e em Ciências Contábeis (PUC-Minas). Juíza do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo. Advogada.

Bárbara Morgana Damacena – Advogada especializada em Direito Tributário pelo IBET

Coordenação:

Eurico Marcos Diniz de Santi
Eduardo Perez Salusse
Kalinka Bravo
Lina Santin

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