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Assim mesmo, a complexidade dos estudos efetuados ainda não demonstrou convincentemente que vai participar na mudança dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

Cancelamento automático dos produtos de cannabis pela Anvisa

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A regulação da Anvisa para os produtos de cannabis, a RDC 327/2019, prevê que, até o fim do prazo de cinco anos de suas respectivas autorizações (art. 8º), as empresas devem buscar a aprovação como medicamento, sob pena de cancelamento automático da autorização (art. 74).

Extrai-se do voto do então diretor Fernando Mendes, quando da aprovação da RDC 327/2019[1], que o objetivo da Anvisa com o cancelamento automático foi criar um “incentivo para que os produtos detentores dessa AS migrem à categoria de medicamento”. Isso porque, para fazer tal migração, seria necessário gerar “informações e dados farmacológicos concretos, baseado em evidências científicas, que indiquem ser o uso da cannabis ou de seus canabinoides eficaz e seguro ao tratamento de doenças humanas”.

A RDC 327/2019 está em processo de revisão e, de acordo com a diretora Meiruze Freitas, serão discutidas alternativas para manter no mercado os produtos já autorizados[2]. Essa discussão é bem-vinda, já que o cancelamento automático não nos parece juridicamente válido. O termo “autorização” é utilizado no direito administrativo dentro do tema poder de polícia (ou função extroversa, como preferem uns[3]), que é exercido pela Administração Pública para conformar atividades do particular ao interesse público.

Tradicionalmente, a doutrina define autorização como “ato unilateral, discricionário, constitutivo e precário expedido[4]. Dada a sua discricionariedade e precariedade, a autorização pode ser retirada a qualquer momento, diria tal doutrina. É comum, inclusive, a distinção que a doutrina faz entre a autorização e a licença, apontando que esta não poderia ser revogada a qualquer tempo eis que seria um “ato administrativo unilateral, declaratório e vinculado que libera, a todos que preencham os requisitos legais, o desempenho de atividades em princípio vedadas pela lei[5].

Seriam as autorizações da RDC 327/2019 tais atos discricionários e precários, sendo juridicamente válido o seu cancelamento automático? Não nos parece ser esse o caso. Já faz algum tempo que a doutrina critica essa dicotomia entre atos discricionários e vinculados. Floriano de Azevedo Marques afirma que a noção de que a discricionaridade permitiria a administração rever atos autorizadores do exercício de atividade a seu bel-prazer não resistiu aos influxos trazidos pela Constituição de 1988[6].  Gustavo Binenbojm chega a sugerir o abandono da dicotomia, afirmando que “não há vinculação absoluta nem discricionariedade plena, mas apenas situações sujeitas a controles jurídicos de distinta intensidade[7].

A distinção também não faz sentido à luz da Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019), que encapsulou como “atos públicos de liberação da atividade econômica” (art. 1º, §4º e 6º) todos os atos administrativos que consentem com o exercício de atividade econômica, a exemplo da “autorização”, da “licença” e até do “registro” (termo usado pela Anvisa para se referir ao ato de aprovação de medicamentos, o qual tanto a agência quis diferenciar da “autorização” dos produtos de cannabis).

A lei optou por sujeitar todos esses “atos” aos seus princípios (como o de garantia da liberdade e da intervenção subsidiária do Estado), às suas regras (como que prevê o direito de comercializar novas modalidades de produtos a despeito da desatualização normativa) ou seus vetores de interpretação (como no sentido de que “todas as normas de ordenação pública” devem ser interpretadas “em favor da liberdade econômica”). Tudo isso para fazer valer o comando do art. 170, § único da Constituição (a regra é a liberdade econômica, devendo a intervenção ser excepcional e prevista em lei na estrita extensão necessária para atender ao interesse que a justifica).

Diante desse quadro, não parece juridicamente válida a previsão do art. 74 da RDC 327/2019, eis que incompatível com os pressupostos que regem os atos públicos de liberação da atividade econômica, quais sejam (i) prévia previsão legal; e (ii) conteúdo compatível com o parâmetro, por excelência, para controle da juridicidade do comando de atos administrativos, o princípio da proporcionalidade em suas três vertentes (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito).

Não há até o momento lei prevendo o tratamento específico dado pela Anvisa para os produtos de cannabis. A RDC 327/2019 foi editada com fundamento em dispositivos gerais que fundamentam a atuação da agência. Olhando para as leis que disciplinam a atuação da Anvisa na prática de atos públicos de liberação da atividade econômica, o cancelamento ou a revogação de tais atos nunca é tratada como medida de incentivo; aparece apenas como medida sancionatória pela prática de infrações sanitárias graves (e.g., fraude, adulteração ou falsificação de medicamentos, conforme art. 10, Lei 6.437/1977) ou, então, quando as circunstâncias de aprovação mudam de tal forma que o produto passa a ser considerado nocivo à saúde (art. 6º, Lei 6.360/1976).

Dessas previsões, vê-se que o cancelamento só se justifica quando há risco à saúde na manutenção do produto no mercado. Essa não seria a realidade do cancelamento automático dos produtos de cannabis, já que este ocorreria sem estar relacionado a nenhuma nova circunstância, inexistente à época da aprovação, geradora de risco à saúde. Pelo contrário, desde a edição da RDC 327/2019 só aumentam os dados a favor da eficácia e segurança desses produtos, ainda que não no rigor científico desejado pela Anvisa.

A título de exemplo, mais de 140 estudos clínicos já foram concluídos em diversos países com produtos de cannabis, muitos deles atestando sua segurança e eficácia para o tratamento de algumas doenças e síndromes. Para focar num único fármaco, foram identificados 16 estudos[8] já concluídos avaliando o uso de canabidiol para o tratamento de epilepsia e outras doenças envolvendo quadro convulsivo. São estudos de fases 1 a 3, realizados entre 2014 e 2022, que somam mais de 2 mil participantes, em diversas cidades de 8 países ao todo.

Em pacientes com Síndrome de Dravet ou com Síndrome de Lennox-Gastaut foram observadas reduções médias de mais de 40%[9] na frequência das crises convulsivas. Em um desses estudos uma parcela significativa (23,0%) dos pacientes chegou a ter 75% menos crises do que antes do início do tratamento e outros 4,9% simplesmente não tiveram nenhum quadro convulsivo durante o estudo. Os cuidadores — sejam profissionais ou familiares — perceberam melhora no quadro dos pacientes em mais de 60% dos casos. Em um outro estudo[10] que avaliou crianças entre 1 e 2 anos com convulsão foi registrado melhora nas habilidades de comunicação e de socialização da criança. Os dados desses estudos não podem ser ignorados.

A previsão do cancelamento automático também não é válida por ser incompatível com o princípio da proporcionalidade. Primeiro, porque a medida não parece adequada, considerando que a Anvisa pretendia com ela incentivar a condução de estudos para aumentar o nível de evidências em termos de segurança e eficácia desses produtos. O efeito mais óbvio da medida não é incentivar a realização de estudos, mas criar um ambiente de insegurança, dada a ameaça de retirada do produto do mercado. Isso é extremamente prejudicial para empresas que precisam de recursos financeiros e estabilidade dos seus produtos no mercado para financiar os estudos pretendidos.

Segundo, porque a medida não é estritamente necessária, já que o resultado pretendido (incentivo à realização de estudos) pode ser alcançado com medidas menos gravosas e mais eficientes, como a eliminação dos obstáculos burocráticos para a execução dos estudos clínicos necessários. Atualmente, são muitas as barreiras enfrentadas pelas empresas para realização dos estudos clínicos, inclusive impostas pela própria Anvisa.

Isso ficou evidente no caso da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que precisou passar por três instâncias administrativas e esperar mais de um ano para receber a autorização da Anvisa para cultivar Cannabis sativa com finalidades científicas. Por fim, não é proporcional em sentido estrito, considerando que os efeitos negativos são superiores ao baixíssimo e eventual efeito de incentivo, bastando constatar que a consequência prática da aplicação do cancelamento seria a retirada dos produtos de cannabis do mercado como um todo, diminuindo a receita de suas empresas e restringindo o acesso dos pacientes que dele precisam. Para se ter uma ideia, nos próximos três anos o cancelamento atingirá 68% dos produtos aprovados.

Assim, parece-nos que o cancelamento automático previsto no art. 74 da RDC 327/2019 não é juridicamente válido, não por algum motivo formal desimportante, mas porque não serve para o fim pensado pela Anvisa. Assim, além de mandatório, dada a sua antijuricidade, o abandono do cancelamento automático é medida que interessa à própria Anvisa, devendo a Agência aproveitar o processo de revisão da RDC 327/2019 para substituí-la por outra medida de incentivo, sob pena de essa previsão ser declarada ilegal pelo Judiciário, como vem acontecendo com outros dispositivos dessa RDC. Incentivo, leia-se, do tipo cenoura, e não chicote.

[1] Processo nº 25351.421833/2017-76, voto nº 92/2019.

[2] Notícia disponível no link.

[3] NETO, Floriano de Azevedo Marques. Atos de liberação da atividade econômica privada e poder de polícia: pressupostos e limites. In: Lei de Liberdade Econômica e seus impactos no Direito Brasileiro. 1ª Ed. São Paulo: Thompson Reuters, 2020. P. 318.

[4] MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo. 11ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2021.

[5] MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo. 11ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2021.

[6] NETO, Floriano de Azevedo Marques. Atos de liberação da atividade econômica privada e poder de polícia: pressupostos e limites. In: Lei de Liberdade Econômica e seus impactos no Direito Brasileiro. 1ª Ed. São Paulo: Thompson Reuters, 2020. P. 319.

[7] BINENBOJM, Gustavo. Atos públicos de liberação e efeitos positivos do silencia administrativo na Lei de Liberdade Econômica – Mutações do poder de polícia no domínio econômico. In: Lei de Liberdade Econômica e seus impactos no Direito Brasileiro. 1ª Ed. São Paulo: Thompson Reuters, 2020. P. 358.

[8] Dados obtidos de ClinicalTrials.gov em 5 de janeiro 2024.

[9] NCT02091375 – Antiepileptic Efficacy Study of GWP42003-P in Children and Young Adults With Dravet Syndrome (GWPCARE1). Disponível em: https://clinicaltrials.gov/study/NCT02091375. Acesso em: 5 jan. 2024.

NCT02224703 – GWPCARE2 A Study to Investigate the Efficacy and Safety of Cannabidiol (GWP42003-P) in Children and Young Adults With Dravet Syndrome. Disponível em: https://clinicaltrials.gov/study/NCT02224703. Acesso em: 5 jan. 2024.

NCT02224560 – Efficacy and Safety of GWP42003-P for Seizures Associated With Lennox-Gastaut Syndrome in Children and Adults. Disponível em: https://clinicaltrials.gov/study/NCT02224560. Acesso em: 5 jan. 2024.

NCT02224690 – A Study to Investigate the Efficacy and Safety of Cannabidiol (GWP42003-P; CBD) as Adjunctive Treatment for Seizures Associated With Lennox-Gastaut Syndrome in Children and Adults. Disponível em: https://clinicaltrials.gov/study/NCT02224690. Acesso em: 5 jan. 2024.

[10] NCT02318602 – Cannabidiol Oral Solution as an Adjunctive Treatment for Treatment-resistant Seizure Disorder. Disponível em: https://clinicaltrials.gov/study/NCT02318602. Acesso em: 5 jan. 2024.

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