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O reputado jurista italiano Mauro Cappelletti (1927-2004) era um grande amigo do Brasil. Aqui esteve várias vezes para palestrar e visitar amigos que haviam sido seus alunos e discípulos na Escola de Firenze. Com seus trabalhos sobre acesso à justiça, influenciou enormemente o direito processual brasileiro, sendo suas pesquisas decisivas na adoção de nossa legislação sobre processos coletivos e sobre juizados para as pequenas causas.
Várias de suas obras foram traduzidas ao nosso vernáculo pelo editor gaúcho Sergio Fabris, que um dia me contou que a primeira e mais famosa delas a ser aqui publicada (Acesso à Justiça) foi franqueada pelo autor em um contrato assinado em guardanapo de papel, em um restaurante de Porto Alegre.
Além de Acesso à Justiça, Sergio Fabris publicou outros importantes trabalhos de Cappelletti, entre eles Juízes Legisladores? e Juízes Irresponsáveis?. No primeiro, o autor italiano investigava o fenômeno do ativismo judicial. No segundo – quase uma consequência lógica do anterior – perquiria sobre a crescente necessidade de aperfeiçoamento dos mecanismos de responsabilidade judicial. Se o ativismo importa em maior poder aos magistrados, esse poder precisa de controle.
Nessa linha, fico imaginando que interessantes reflexões o jurista italiano, se vivo fosse, poderia estar produzindo diante da realidade sociológica do Poder Judiciário brasileiro atual. Um Judiciário hipertrofiado, descomunal, tentacular, exercido por magistocratas (apud Conrado Hübner) com baixo grau de controle pela sociedade. Tenho certeza que lhe despertaria a curiosidade um fenômeno tipicamente brasileiro e deletério: o “juiz empresário”.
A Constituição, ao fixar as vedações à magistratura, não impediu expressamente aos magistrados o exercício de atividade comercial. Porém, a Lei Orgânica Nacional da Magistratura, que lhe é anterior, proibia essa função. Tem-se que ela foi recepcionada, na medida em que idêntica vedação é estabelecida no art. 128, II, c, da Constituição para os membros do Ministério Público e a jurisprudência do STF é pacífica em equiparar os regimes de ambas as carreiras.
Pois bem, embora o texto da Constituição não abra qualquer exceção, tanto a LONM como a LC 75/93 (Lei Orgânica do MPU), abriram uma portinhola perigosa, permitindo aos magistrados a participação em sociedades empresárias como cotistas. Ora, a melhor interpretação da Constituição exigiria que o art. da LC 75/93 fosse tido como inconstitucional, já que, repita-se, a referida norma infraconstitucional abre exceção onde não há permissivo para isso no texto supremo. Se a Constituição proíbe “participar de sociedade comercial na forma da lei”, a lei não poderia autorizar a participação em sociedade comercial na qualidade de sócio, ainda que minoritário.
Mas assim não é, pois tem-se admitido que juízes possam atuar como supostos “cotistas” de sociedades empresariais, desde que não tenham mais de 49% das cotas e não exerçam cargos de direção. A consequência dessa brecha estapafúrdia é de se imaginar. Para contornar a restrição, o que fazem alguns de nossos magistrados e membros do MP? Formam “sociedades” com esposas, filhos, cunhados, amigos do peito ou amantes, os quais figuram como sócios majoritários e administradores no papel, nem sempre exercendo de fato tais poderes.
É absolutamente incompatível que magistrados tenham interesses econômicos advindos de sua participação em atividades empresariais, por isso, exatamente, a Constituição fixou essa vedação. O exercício de atividade empresarial é tanto mais grave quanto mais alta a posição do magistrado no sistema judicial, uma vez que ele terá capacidade de formar jurisprudência que poderá ser favorável ou desfavorável aos seus negócios.
Vamos imaginar, num exemplo totalmente hipotético, que um juiz de uma corte constitucional seja sócio cotista minoritário, com 49% do capital, de uma grande instituição de ensino, que tem uma folha de pagamentos enorme. Ou então que um outro juiz desta mesma corte – sempre no campo da mera especulação – seja sócio de um empreendimento comercial de atividade pecuária, para o qual a legislação trabalhista imponha uma série de obrigações. Um juiz empresário será sempre empresário antes de ser juiz, porque ele pensará com a cabeça de empresário. Afinal, ninguém decide racionalmente contra os seus próprios interesses econômicos.
Qual então será o comportamento racional desse magistrado ao julgar casos trabalhistas que fixarão jurisprudência vinculante e afetarão diretamente o seu negócio? Um precedente que tem potencial para reduzir seus custos com a folha de pagamento ou reduzir obrigações trabalhistas onerosas? Imagine-se, sempre como exemplo meramente abstrato, que esse magistrado profira decisões sistematicamente contra trabalhadores e sindicatos; é possível conceber que ele está agindo com a neutralidade esperada de um juiz? “À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer ser honesta.”
Mas esse não é o único problema que temos em nossa magistratura. Há também os “ex-empresários”. Por exemplo, juízes que eram donos de “firmas de advocacia” e passaram o negócio para a parentela ao entrar para os tribunais, normalmente pelo quinto ou diretamente para o STF. É claro que esses juízes se darão por impedidos quando aparecer uma causa patrocinada pelo escritório da esposa, do filho ou do sobrinho. Esse, obviamente, não é o problema. A questão é que eles não estão obrigados a se afastar quando julgam caso de outros advogados que, no entanto, criam jurisprudência favorável a seus antigos clientes ou aos próprios escritórios a que pertenceram. Parece-me esse o melhor exemplo de “litigância predatória”.
Cogitemos uma outra situação fictícia, aleatoriamente imaginada – apenas por amor ao debate: um juiz constitucional é egresso da advocacia e ao ser nomeado para o STF passa o seu escritório e toda a sua clientela para um filho ou sobrinho, que mantém o sobrenome da família na sociedade, junto ao sobrenome de novos sócios. A chamativa griffe de um ministro do STF atrai numerosos novos clientes e o escritório decuplica de tamanho, precisando contratar a mão de obra de dezenas de advogados associados, que trabalham dez horas por dia com remuneração fixa e miserável. Um desses advogados, cansado de exploração, denuncia o escritório ao Ministério Público do Trabalho, alegando vínculo de emprego disfarçado.
Pois bem, calha de cair com esse juiz constitucional que legou o escritório ao seu parente próximo um caso em que um advogado associado de uma outra sociedade de advogados, em diverso estado da federação, pede o reconhecimento de vínculo de emprego com os advogados sócios. A decisão poderá formar precedente na matéria e afetará o regime de contratação de advogados de todos os escritórios de advocacia do país. Será esse juiz isento para julgar o caso? Penso que não.
A solução para esse problema? Bastaria que o STF interpretasse adequadamente os dispositivos da Constituição que tratam das vedações à magistratura e aos membros do Ministério Público, declarando inconstitucional as leis que lhe são contrárias. Também ajudaria a adoção de um Código de Ética, que vedasse a transmissão de escritório privado para parentes depois de nomeação ao tribunal. Essas medidas, possivelmente, ocorrerão no dia de São Nunca. Esperemos, assim, que o Congresso faça a interpretação constitucional correta e reaja a esse “estado de coisas promiscuamente inconstitucional”.