Com Trump reeleito, como se posicionam o Brasil e a IA na disputa entre EUA e China?

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Donald Trump foi reeleito nos Estados Unidos para mais um mandato presidencial (2025-2029) e existem várias agendas internacionais que serão radicalmente transformadas com a intensa rivalidade já travada com a China no campo das tecnologias emergentes e da inteligência artificial (IA).

Para além do prometido tarifaço sobre importações, do recrudescimento de políticas migratórias e de fronteiras, e do abandono de políticas comerciais multilaterais dentro de uma já moribunda Organização Mundial do Comércio (OMC), quatro anos de presidência de Donald Trump terão impactos arrebatadores nas várias frentes da vida internacional e relacionamento com países do Ocidente e da América Latina.

Eles serão sentidos cada vez mais com o acirramento da disputa entre China e Estados Unidos, projetando-se um controle mais intensivo de oferta e demanda na economia global, a manipulação cambial, além da inevitável elevação de preços aplicados a bens e serviços tecnológicos que serão subsequentemente cobrados intensivamente dos países meramente adquirentes de tecnologias, como o Brasil.

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Por outro lado, existem áreas em que o país poderá se beneficiar de uma rodada de disputas na corrida tecnológica entre EUA e China, desde agentes da indústria que fornecem insumos e serviços para o ciclo de IA, como no campo de processamento de dados (data centers), geração, distribuição e comercialização de energia (especialmente as energias limpas, renováveis), além da possível ampliação e instalação de plantas para desenvolvimento e fabricação de chips processadores, e assim por diante.

Esse cenário prospectivo depende muito, no entanto, de como o Brasil realmente venha desbravar o campo de rivalidade entre as potências como parceiro comercial e tecnológico estratégico e projetar atrativos para que aquelas áreas possam se desenvolver internamente. Isso porque o choque de bens primários e commodities agrícolas nem sempre representa a única consequência de ciclos econômicos afetados por guerras, pandemias ou pelo bloqueio e sanções comerciais unilaterais impostos por Estados.

Ao contrário, tecnologias emergentes associadas à IA, nanotecnologia, robótica e comércio digital certamente terão uma posição relevante nesse novo capítulo da história política, do comércio e das relações internacionais, em que a centralidade do poder computacional e digital transforma a agenda internacional e as prioridades de centros decisórios domésticos.  

A proposta da presente reflexão é chamar a atenção para alguns dos desdobramentos recentes e esperados entre China e Estados Unidos no campo de inteligência artificial e análises de política externa, examinando o que já havia no primeiro mandato de Donald Trump e o que poderá vir adiante. Dentro de uma agenda internacionalista preocupada com a dimensão doméstica das ações de políticas externas no campo tecnológico, o referencial tem sido apoiar-se nas experiências locais e como elas influenciam e transformam o global. 

IA como um motor alternativo para economia nacional

Nos últimos anos, o desenvolvimento da IA transitou entre uma iniciativa eminentemente acadêmica, científica e econômica para uma estratégia pivotal de segurança nacional por governos e alavancagem de novos modelos de negócios pelos grandes conglomerados de tecnologia e big techs. Durante a primeira presidência de Donald Trump, a mudança se consolidou em uma atitude estratégica que lidava com IA enquanto campo essencial de competição entre as superpotências globais, principalmente entre os EUA e a China.

Saindo da posição meramente de defesa e segurança, a IA foi transferida para uma ótica competitiva do ponto de vista comercial e tecnológico. Daí porque o primeiro governo de Trump já havia enfatizado a necessidade de superar a China em capacidades de IA para preservar três pilares nos Estados Unidos – segurança nacional, superioridade militar e indústria de tecnologias nos estados da California, Texas e além. Não há nada que modifique drasticamente essa visão para o segundo mandato, o que já estava em curso, inclusive, no governo Joe Biden.

A diferença será a sede vingativa de Trump e seus correligionários em um cenário pós-pandêmico e que terá a IA como uma das bandeiras de expansão ou tentativa de influência tecnológica pelos EUA – padrões, standards, práticas e a aparente efetividade da autorregulação por setores da indústria de IA, seja no embate com a China, seja na oposição à onda regulatória deflagrada pelo Regulamento Europeu de IA (AI Act). 

O assunto, por evidente, não é novo, mas será transportado para novo capítulo das cúpulas mundiais em IA, dos diálogos bilaterais entre países ou regiões (e o Brasil deve se inserir nesse campo), além do fortalecimento de um debate especializado sobre consistência e qualidade regulatória em IA.

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Não faz sentido ressuscitar premissas ultrapassadas de que tecnologias não podem ser reguladas sob pena de desincentivar inovação (?) ou de que todo tipo de ingerência regulatória pelo Estado e por suas instituições deva ser eminentemente pautada pelo princípio da “neutralidade tecnológica” (?). O mais coerente e estratégico parece ser um objetivo de buscar a aproximação e a convergência normativa com as melhores experiencias e políticas públicas setoriais no campo de IA. Precisamente essa preocupação deve ser levada ao legislador brasileiro para rediscutir e revisar o Projeto de Lei 2338/2023 que propõe estabelecer a Lei de Inteligência Artificial no Brasil.

IA como prioridade estratégica nos EUA

A Ordem Executiva 13859, intitulada Mantendo a Liderança Americana em Inteligência Artificial (Maintaining American Leadership in Artificial Intelligence), foi assinada em 11 de fevereiro de 2019 por Donald Trump, em uma primeira tentativa dos EUA de apresentar um arcabouço mais amplo para estruturar políticas indutoras sobre tecnologias baseadas em IA incluindo certas diretrizes para sua adoção por agências federais e o financiamento de pesquisas por iniciativas do Executivo.

A medida normativa abriu o caminho para políticas subsequentes, culminando com a apresentação do Projeto de Lei Nacional de Iniciativa em IA de 2020 (National AI Initiative Act), que pretende direcionar recursos para pesquisas em IA de caráter não militar, portanto, para fins comerciais de aplicação na indústria. Sem nenhuma surpresa, esse marco reforçava a proposta frequente dos EUA de apoiar e subvencionar pesquisa, desenvolvimento e inovação na indústria de alta tecnologia, como boa parte do que ocorreu entre as décadas de 1980 e 2000 no Vale do Silício desde a influente Bayh-Dole Act de 1980.

Nenhum negócio de alto impacto e estratégia transformadora, vale lembrar, nasce de uma “garagem” ou de pura genialidade, ao contrário do que lendas diziam e ainda vendem por aí. Existem universidades, institutos, centros de pesquisa e aportes governamentais e da indústria intensivamente aplicados.

Em seu primeiro mandato, Trump soube manejar o próprio Congresso norte-americano e nesse ponto republicanos e democratas se aliaram para a produção de leis de incentivo à indústria de tecnologias. Somente no Brasil a desinformação é tamanha a ponto de acreditar, como fazem alguns setores da mídia tradicional, best-sellers e coaches, que tudo isso costuma vir de uma garagem ou de um único guru de tecnologias. Até ferramentas de IA generativa hoje explicam melhor esse ponto se perguntadas com os parâmetros ou prompts) adequados e nutrida com conhecimento especializado. 

IA entre uma ʽcorrida armamentista turboglobalizadaʼ e tensões com gigantes da tecnologia

A retórica de Trump frequentemente apresenta tecnologias baseadas em IA como combustíveis ou molas propulsoras da rivalidade comercial entre os EUA e a China, uma “disputa transformadora”. As políticas energéticas dos EUA dariam às empresas americanas de tecnologias certas “vantagens comparativas”, “vantagens competitivas” e “vantagens inovadoras”, termos muito caros às teorias aplicadas ao comércio internacional (David Ricardo, Porter, Schumpeter e os neo-schumpeterianos).

A título comparativo, essas teorias, curiosamente, foram praticamente esquecidas e rechaçadas por governos brasileiros nas últimas décadas, que preferiram sacralizar toda e qualquer dependência de política comercial por exportações agrícolas e desmantelamento de tudo mais que fosse possível nos campos de ciência, tecnologia e inovação e na indústria doméstica, praticamente a chancela de uma espécie híbrida de “neomercantilismo” ou “escambo 4.0”, centrado em trocas comerciais assimétricas entre produtos agrícolas, de um lado, e bens e serviços tecnológicos de ultima geração de outro.

Fale-se mal ou fale-se bem, a ofensiva de Trump visualizou a IA como duplamente um ativo econômico, submetido ao comércio internacional, daí rivalizar com a China nas relações comerciais envolvendo tecnologias, e um componente de segurança nacional, especialmente diante de ameaças e possíveis ingerências externas por meio de operações de influência e ataques cibernéticos, no conjunto dos grandes eventos e processos de cyberwarfare

Em contrapartida, iniciativas estatais chinesas, fortemente financiadas pelo Estado e centradas no interesse nacional, expandindo atividades de conglomerados chineses de tecnologias digitais e IA, exemplificaram a abordagem centralizada para a dominação tecnológica. Esse aspecto elevou a pressão sobre os formuladores de políticas dos EUA para acompanhar o ritmo das incursões sino-tecnológicas, ao mesmo tempo em que faziam vistas grossas com o efervescente laboratório de Bruxelas.

Trump, por sua vez, já demonstrava seu ressentimento com a onda regulatória da União Europeia a rivalizar com EUA e China no campo legal-procedimental, justamente tendo como alvo o desenfreado uso de IA e novos serviços digitais desenvolvidos por conglomerados de tecnologia – as grandes plataformas digitais sediadas nesses países. Esse ressentimento foi capturado pelo presidente Joe Biden, posteriormente, que editou nova medida – a Executive Order on the Safe, Secure, and Trustworthy Development and Use of Artificial Intelligence, em 30 de outubro de 2023, no entanto, diretrizes para assegurar o uso ético e responsável da tecnologia e direcionadas às agencias governamentais.

Apesar de priorizar a IA, Donald Trump passou boa parte de seu primeiro mandato vociferando contra gigantes da tecnologia, acusando-as de serem parciais contra a campanha negacionista e os rompantes ultraconservadores do presidente, inclusive de serem “uma ameaça maior” às eleições democráticas que certos atores estatais (por exemplo, a Rússia e sua ofensiva desinformativa transnacional).

Durante o primeiro mandato de Trump, o Executivo lançou um conjunto medidas regulatórias para atingir as big techs no campo comercial e antitruste, levantando alegações de supostas práticas de censura promovidas por essas empresas e ameaças à “integridade democrática” nos Estados Unidos. Na visão de especialistas dentro dos EUA, essas ações revelaram uma espécie de “casamento de conveniência” do Executivo chefiado por Donald Trump com a indústria de tecnologias: enquanto o mandatário condenava publicamente as empresas, delas os Estados Unidos dependiam para forjar mais e mais avanços tecnológicos e assegurar uma posição de contestação tecnológica na corrida com a China.

Desse modo, sendo um tanto quanto cauteloso relativamente a ações concretas adotadas contra big techs, Trump “mais latia do que mordia”. Por essa razão, dificilmente haverá mudança substancial de posicionamento com o próximo mandato de Trump nos Estados Unidos. A diferença agora reside na decisão transitada em julgado de que o chefe do Executivo chega turbinado e passa a contar com apoios expressos e perniciosos de alguns conglomerados de tecnologia (como da plataforma X, controlada pelo empresário Elon Musk).

Tudo isso para empreender uma nova fase de “cruzada tecnológica” no campo de IA, defesa cibernética e fortalecimento de agências nacionais, como a Agência Nacional de Segurança, já acostumada a receber dados de cidadãos usuários de serviços digitais nos Estados Unidos e ao redor do globo.  

Diante dos exemplos descritos acima, o Brasil não poderia ficar à margem da corrida pelas estratégias nacionais em IA ou servir como espécie de ator destinado unicamente à “periferização tecnológica”. Fazem bem tanto o Executivo brasileiro e especialmente seu corpo diplomático negociador do Ministério das Relações Exteriores, mundialmente reconhecido por sua excelência na capacidade e qualidade técnica, manter boas relações com os dois países – EUA e China, sem cair em armadilhas ideologizantes – ou serem instigados por discursos extremistas na política, economia e mídia tradicional.

Nessa fase, acreditem, será muito difícil dar qualquer sentido estratégico, de discordância ou resistência por meio de foros multilaterais existentes, como G7, G20, Brics e as organizações internacionais, sem que um espaço para novas formas de bilateralismo e alianças concentradas possa ser repensado. 

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O Brasil deverá concentrar esforços seletivos em áreas setoriais da vida internacional, com vistas à demandas domésticas concretas e a área tecnológica é uma delas. Justamente por essa razão, apostar em projetos e programas dedicados à área digital e à inteligência artificial também terão um efeito “carta na manga” negociadora, como há mais de 30 anos a área da propriedade intelectual também representou para as negociações vinculando os direitos de PI ao comércio internacional, culminando com os resultados da Rodada Uruguai do GATT e a criação da Organização Mundial do Comércio em 1994.

A diferença, contudo, está no fato de que o Brasil não está em condições de fazer novas concessões comerciais desvantajosas, acreditando em promessas de países desenvolvidos por acesso a mercados e redução de barreiras tarifárias que foram cabalmente descumpridas ao longo das últimas décadas em relações do comércio internacional. 

Para o Brasil, o cenário de acirramento comercial e tecnológico entre China e EUA e a demanda por mais serviços em IA podem ser considerados favoráveis, a depender, como mencionado, da forma como serão conduzidas as relações com os países e indústria de tecnologias, e destacaríamos, também, de quais resultados – efetivos – o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA) 2024-2028 poderá gerar.

Por que não avançar em frentes negociadoras que possam fortalecer o país como mercado fornecedor de produtos e serviços para IA e baseados em IA?  Pois bem, alguns exemplos já podem ser antecipados, como o fato de o Brasil servir como grande plataforma sustentável de dados na América Latina. Igualmente, pela capacidade ociosa verificável, existe espaço para empresas brasileiras servirem de fornecedoras de energias limpas e instalação e operação de data centers, baseados em plataformas de P&D e inovação locais, aproveitando marcos de incentivo, sandboxes e planos de destravamentos fiscal e burocrático.

Essas e tantas e outras medidas devem ser imediatamente colocadas como objetivos e entregas do Plano Brasileiro de IA. Ele é aqui mais uma vez colocado sob escrutínio público, para que não se torne mais uma promessa vazia de caráter governamental, sem qualquer apelo e contribuição social relevantes, e deixe o Brasil relegado à recorrente subordinação tecno-informacional do ponto de vista do comércio internacional.  

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