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Não é de hoje que o abuso do direito de ação tem gerado discussões interessantes no mundo jurídico. O Poder Judiciário, a advocacia e a sociedade civil enfrentam cada vez mais consequências decorrentes da litigância abusiva, que envolvem desde a superlotação do Judiciário até impactos na prestação de serviço por diferentes setores do mercado.
Uma das nuances do abuso do direito de ação é o que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) denomina “litigância predatória associativa”. Esse conceito foi introduzido na Portaria 250, de 25 de julho de 2022, que instituiu um grupo de trabalho para fins de apresentação de propostas para enfrentar esse tipo de abuso, considerando o episódio amplamente noticiado na mídia do ajuizamento indiscriminado de ações civis públicas fraudulentas por associações de fachada contra birôs de crédito – a “indústria do limpa-nome”[1]. Alia-se a isso a recente Recomendação 159, de 23 de outubro de 2024, também do CNJ, por meio da qual recomenda que juízes e Tribunais atentem a comportamentos que podem indicar litigância abusiva e, no exercício do poder geral de cautela, determinem diligências “a fim de evidenciar a legitimidade do acesso ao Poder Judiciário”.
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No mesmo sentido, aguarda julgamento no Superior Tribunal de Justiça (STJ) do Tema Repetitivo 1198 (REsp 2021665/MS), no qual se julgará o poder geral de cautela dos magistrados quando vislumbrem a ocorrência de litigância predatória.
É inegável que um dos meios mais eficazes para coibir abusos na propositura de ações coletivas consiste na verificação criteriosa, por parte do julgador, da representatividade adequada das associações autoras em cada caso concreto. Essa verificação tem, como ponto de partida, os parâmetros estabelecidos no artigo 5º da Lei 7347/85 e no artigo 82, IV, do Código de Defesa do Consumidor (CDC) – i.e., que a associação esteja constituída há pelo menos um ano e que inclua uma finalidade institucional –, ainda que tais dispositivos não disciplinem a questão de forma completa, demandando que o magistrado analise o contexto em que a ação coletiva foi proposta frente à atuação da associação autora.
Isso é perceptível em diversos julgados do STJ. Segundo essa Corte, objetivos excessivamente amplos impõem o reconhecimento do não cumprimento do requisito da pertinência temática. Isto é, disposições estatutárias genéricas desnaturam a exigência de representatividade adequada do grupo lesado a que uma associação pretende tutelar (AgInt nos Edcl no AREsp 1264317/DF, j. 13/03/2023; AgRg nos EDcl nos EDcl no REsp 1150424/SP, j. 10/11/2015). Da mesma forma, o Supremo Tribunal Federal (STF) entende que a indeterminação do objetivo que ensejou a constituição da associação conduz à sua caracterização como “associação genérica”, com o consequente reconhecimento de sua ilegitimidade ativa (AgR no ARE 1339496, j. 07/02/2023).
Desdobramento do requisito da pertinência temática é a verificação sobre intuito lucrativo da associação com o ajuizamento da ação coletiva. É o que ocorreu no mencionado episódio das ações de “limpa-nome”: diversas associações criaram websites ou páginas em redes sociais com o intuito de “comercializar” o acesso aos direitos obtidos por meio das ações propostas. As associações lá envolvidas ajuizavam ações coletivas pleiteando tutela de urgência em favor de seus associados; caso a tutela fosse concedida, a associação “vendia” o direito concedido e anexava aos autos a lista de todos os adquirentes desse direito, na forma de “rol de associados”, a fim de que seus nomes fossem excluídos dos cadastros de inadimplência. Na mesma linha estão associações que buscam auferir ganhos indevidos com a eventual fixação de honorários sucumbenciais em ações com valor de causa astronômico. Sobre isso, o STJ já consignou que “associações, várias vezes, surgem como máscaras para a criação de fontes arrecadadoras, que, sem perigo da sucumbência, buscam indenizações com somatório milionário, mas sem autorização do interessado, que depois é cobrado de honorários” (REsp 1213614/RJ, j. 01/10/2015).
O requisito da pertinência temática também ganha concretude diante da distinção entre atuação da associação como representante de seus associados (atuando na defesa desses associados) ou como substituta processual da coletividade (atuando na defesa de interesses comuns de grupos de substituídos). Logo, se uma associação foi criada exclusivamente para defender os interesses de seus associados, então não poderá ajuizar ação coletiva em nome de interesses que abrangem a coletividade em sentido amplo. Será apenas na hipótese de substituição processual que o STJ dispensa a autorização assemblear para o ajuizamento da ação: “por se tratar do regime de substituição processual, a autorização para a defesa do interesse coletivo em sentido amplo é estabelecida na definição dos objetivos institucionais, no próprio ato de criação da associação” (REsp 1325857, j. 30/11/2021).
A ausência de prova mínima da existência de associados também é causa para reconhecimento da ilegitimidade ativa de associação. Ou seja, ainda que, sob um aspecto formal, determinada associação tenha como finalidade institucional a defesa de determinada questão, a não comprovação de que possui associados de modo a legitimar sua atuação é causa para reconhecimento da ilegitimidade ativa. Em caso específico, reconheceu-se que se estava diante de “verdadeira associação ‘de gaveta’ ou ‘fantasma’, sem nenhum associado além dos três fundadores” (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação 1013884-75.2020.8.26.0100, j. 20/07/2023, trecho do parecer da Procuradoria de Justiça).
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Quanto ao requisito da pré-constituição da associação há pelo menos um ano, deve-se ter em mente que tal constituição deve ocorrer conforme as regras do Código Civil – ou seja, o termo inicial da existência legal é a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro. Ocorre que cada vez mais se verifica na prática a alteração de estatuto social de associação pouco antes de ajuizar uma ação, para fins de incluir como finalidade a defesa do interesse relacionado ao objeto da ação. Essa é uma prática a ser rechaçada, uma vez que os requisitos da pré-constituição e da pertinência temática são cumulativos: a associação deve estar legalmente constituída há pelo menos um ano, para fins de defesa dos interesses estabelecidos em seus fins institucionais, para estar legitimada a propor ação coletiva relacionada àquele mesmo interesse. Se fosse aceitável que associações alterassem seus estatutos cada vez que fossem propor uma ação civil pública, para adequar as disposições estatutárias aos interesses a serem tutelados judicialmente, haveria um completo desvirtuamento do requisito temporal. Não se trata, portanto, de mera conferência formal dos requisitos legais para ajuizamento da ação coletiva, sendo necessária a verificação para cada caso concreto frente à temática da ação proposta.
Todos esses julgados vão ao encontro dos esforços do CNJ e ao Tema Repetitivo 1198 a ser julgado pelo STJ: é necessária uma averiguação criteriosa dos parâmetros previstos em lei para que haja um controle mais rigoroso quanto à propositura de ações civis públicas essenciais. Trata-se de medida essencial para frear a crescente prática da litigância predatória associativa.
[1] https://www.metropoles.com/negocios/exclusivo-esquema-com-liminares-sigilosas-oculta-r-20-bi-em-dividas;
https://www.conjur.com.br/2023-set-07/cnj-apura-esquema-liminares-concedidas-acoes-limpa-nome/;
https://www.cnj.jus.br/pad-investigara-suposta-participacao-de-juiz-da-paraiba-em-esquema-limpa-nome