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Desde que se tornou República, o Brasil passou por seis golpes de Estado. O último deles ocorrido em 31 de março de 1964, com a deposição de João Goulart, então presidente do país.
Essa data é a mais repetida, quando se fala sobre o período autocrático que se iniciou no país. Enquanto os militares encabeçaram o governo, o aniversário da então chamada “revolução” sempre foi celebrado no último dia de março. Quando saíram, retomada a democracia no país, seguiram com comemorações anuais nos quartéis.
Contudo, existe aí um equívoco deliberado. A queda de João Goulart, que inaugurou 21 anos de presidências militares no Brasil, só se concretizou em primeiro de abril.
Ter o dia da mentira como marco inicial de um governo certamente não seria a melhor estratégia de relações-públicas, pois, às vezes, até autocracias temem o ridículo. Para evitar piadas com a nova ordem, adotou-se o 31 de março como seu aniversário.
Ironicamente, a data original seria a mais adequada a um regime cujo selo foi o acobertamento da verdade. O Estado de então buscava simular uma normalidade inexistente; meios de comunicação foram censurados e a oposição política ao governo foi bastante limitada. Pessoas foram sequestradas, torturadas, mortas, sem que isso viesse a público.
Temendo por suas vidas, opositores e opositoras ao regime se exilaram do país; eleições livres e diretas eram apenas um sonho; a arte e a expressão do pensamento foram cerceadas; muitos direitos fundamentais, simplesmente eliminados. Era época do “Brasil, ame-o ou deixe-o”; do arbítrio de autoridades; do desaparecimento de pessoas.
Por mais de duas décadas, o país viveu um cotidiano de ocultação das constantes e graves violações aos direitos humanos aqui cometidas.
A retomada da democracia foi difícil, lenta e cara: o período de abertura seguiu caracterizado pela violência das autoridades; as eleições diretas para Presidente da República foram postergadas para depois da constituinte; e houve anistia pelos crimes cometidos pelos agentes estatais durante a ditadura.
Tornar impunes agentes violadores de direitos humanos foi imposição do regime. Em troca, livravam-se também criminosos políticos sob a mira do poder público. No entanto, os presos por terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal não foram alcançados pela anistia, num claro favorecimento à barbárie estatal.
Nessas condições, os militares e seus colaboradores saíram de cena sem qualquer responsabilização, deixando como legado medo, dor e desamparo.
Medo por um novo levante militar, caso os rumos do país desagradassem os detentores do poder de outrora. Dor para os familiares de pessoas mortas ou desaparecidas, incapazes de descobrir as reais circunstâncias das mortes seus entes queridos, ou mesmo de ter seus restos mortais para confirmar o falecimento. Desamparo pelo silêncio das autoridades.
Só em 1995, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, instalou-se a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, com a finalidade de esclarecer o destino de ativistas políticos vítimas da ditadura. E apenas em 2012, quase 50 anos após o golpe, durante o governo Dilma Rousseff, foi instalada uma Comissão Nacional da Verdade para apurar violações de direitos humanos ocorridas no Brasil entre 1946 e 1988, criando enorme celeuma no meio dos militares e de seus simpatizantes.
A demora – ou a ausência – da apuração do acontecido entre 1964 e 1985 assombra nossa vida republicana até hoje. Não atribuir responsabilidades fertilizou o terreno da tolerância para com atos antidemocráticos.
Uma tolerância cristalina, expressa na incongruência de um país cuja Constituição da República define a tortura como um crime inafiançável, insuscetível de graça ou anistia (art. 5º, XLIII), mas, ao mesmo tempo, assiste a um parlamentar e um general da ativa homenagearem publicamente, em momentos distintos, um notório torturador, sem haver maiores consequências.
De forma similar, como não ver leniência no fato de esse mesmo general aventar a possibilidade de uma intervenção militar em 2017, sem receber qualquer punição formal por isso?
Esses e outros eventos estão nas raízes da escalada antidemocrática que atingiu o Brasil, com manifestantes à porta dos quartéis clamando por intervenção militar. O atos de 8 de janeiro de 2023, ápice desse fenômeno, é herdeiro direto da complacência com o intolerável num país democrático.
No apagar das luzes do último governo, desfez-se a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, interrompendo um trabalho inestimável de resgate do passado e da verdade em relação a brasileiros e brasileiras cuja história foi varrida para baixo do tapete. Hoje, já sob nova administração, a Comissão permanece inativa.
Some-se a isso o fato de que o Executivo não realizará nenhum ato oficial de repúdio aos anos da ditadura, no sexagésimo aniversário desse acontecimento. O Ministério dos Direitos Humanos, que havia planejado um evento para lembrar das violações ocorridas naquela época, teve de cancelá-lo por ordem do Palácio do Planalto. Tudo sob o manto de uma suposta conciliação do país.
Mas como haver conciliação de mão única? Conciliação na qual os torturados, os mortos e seus familiares são relegados ao esquecimento? Na qual uma parte dolorosa de nossa história permanece escondida, um fantasma que vez por outra ressurge no canto de nossos olhos para nos assombrar?
Não haverá uma real pacificação enquanto o Brasil não encarar os fatos desse período histórico. Haverá, sim, ressentimento disfarçado, vozes frustradas e injustiças flagrantes.
Conciliação real necessita do conhecimento da verdade. Necessita da memória como forma de impedir no futuro a repetição do passado. Necessita da responsabilização de quem cometeu crimes contra a humanidade.
Sem isso, estaremos presos num eterno primeiro de abril.