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Assim mesmo, a complexidade dos estudos efetuados ainda não demonstrou convincentemente que vai participar na mudança dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

Confisco de gênero: elas pagam a conta, eles escolhem o menu

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Os sistemas político, tributário e orçamentário brasileiro refletem uma desigualdade estrutural de gênero que pode ser descrita como “confisco de gênero”. Este conceito põe em evidência o modo como, devido à regressividade do sistema tributário, as mulheres – maioria da população (51,5%) e principais contribuintes – têm seus recursos apropriados e geridos predominantemente por homens, que dominam os espaços de poder político e decisório.

Com o parlamento dividido entre 81,3% de homens e apenas 17,7% mulheres, o modelo atual opera em um círculo vicioso que discrimina a população feminina e perpetua desigualdades econômicas, sociais e políticas. A rejeição do PL 59/2023, que classificava produtos de higiene como itens obrigatórios nos estabelecimentos prisionais, é um exemplo concreto do confisco de gênero e torna evidente as consequências de uma agenda legislativa dominada por interesses masculinos.

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A literatura: tributação e o confisco de gênero

A literatura sobre a relação entre tributação e desigualdade de gênero no Brasil tem crescido significativamente, e segue uma linha de pesquisa alimentada por contribuições essenciais de autoras como Cristina Pereira Vieceli, Roberta Raísa Lacerda Moraes, Luiane Selina Nogueira Ferrari e Nahiana de Souza Marano. Entre outras contribuições, essa investigação mostra claramente como a estrutura tributária nacional perpetua disparidades de gênero, especialmente contra mulheres de baixa renda.

Vieceli analisa como as políticas econômicas e tributárias impactam mulheres e homens de maneira desigual, ao enfatizar a centralidade do consumo na arrecadação tributária brasileira[1]. A pesquisadora demonstra que a alta dependência de impostos indiretos, como ICMS e PIS/Cofins, penaliza desproporcionalmente as mulheres, que, por desempenharem um papel central na gestão doméstica, destinam uma parcela maior de sua renda para produtos de consumo essencial. Uma condição que contribui para perpetuar a desigualdade de gênero, particularmente entre mulheres de baixa renda.

Moraes, em seu estudo sobre o sistema tributário brasileiro, aborda a “Taxa Rosa” ou “Pink Tax”, um fenômeno que faz produtos voltados ao público feminino terem preços superiores aos equivalentes masculinos[2]. Essa diferença, combinada com a tributação elevada sobre consumo, onera mais as mulheres. Moraes explora, ainda, o entrelaçamento do mercado de trabalho e das desigualdades salariais com a estrutura tributária, que reforça desigualdades históricas de gênero.

Ferrari avança a discussão ao propor uma análise feminista do sistema tributário no livro Tributação e Gênero: Políticas Tributárias e o Combate à Cultura Machista[3]. A autora sugere que a tributação pode ser uma ferramenta para reduzir desigualdades, mas adverte que o modelo atual reproduz uma cultura machista, ao ignorar as necessidades e condições socioeconômicas das mulheres. Ela propõe isenções tributárias para produtos de saúde feminina e revisão das políticas fiscais sob uma perspectiva interseccional.

Já Marano contribui com uma análise das implicações da tributação regressiva para a desigualdade de gênero[4], argumentando que mulheres, especialmente negras e de baixa renda, enfrentam barreiras desproporcionais, devido à maior tributação sobre itens de consumo essenciais e à ausência de mecanismos compensatórios adequados. Sua pesquisa sugere que o sistema tributário atual não é apenas ineficaz em promover equidade, mas também reforça barreiras estruturais à emancipação econômica das mulheres.

Introdução do conceito de ‘confisco de gênero’

Essa constelação de estudos, embora centrada nas distorções tributárias, abre caminho para a formulação do conceito de “confisco de gênero” enquanto categoria mais ampla, que transcende a mera carga fiscal desproporcional. O termo busca encapsular a apropriação injusta dos recursos econômicos das mulheres, combinada à marginalização de suas pautas em espaços de decisão política.

Além de haver maior tributação sobre quem já se encontra em posição desvantajosa, os recursos arrecadados são geridos e dirigidos a agendas legislativas e orçamentárias orientadas por prioridades masculinas, em uma dinâmica de legislação em causa própria.

O fato de as mulheres financiarem o aparato estatal sem que suas demandas sejam refletidas nos orçamentos públicos e nas políticas concebidas no Parlamento constitui um verdadeiro confisco de seu potencial econômico em favor de uma elite legislativa masculina, que raramente efetiva a promoção dos direitos e interesses femininos.

Embora as autoras citadas acima abordem amplamente a tributação como mecanismo que reforça desigualdades, é possível avançar no debate, com a introdução do conceito de “confisco de gênero”, que vai além da análise da carga tributária desproporcional e inclui a avaliação sobre a maneira como a sub-representação legislativa feminina intensifica essas desigualdades.

No Brasil, as mulheres representam 51,5% da população, mas, como mencionado acima, ocupam pouco menos de 18% das cadeiras na Câmara dos Deputados. Essa discrepância contribui para que a maioria da população, responsável por financiar o Estado por meio de impostos sobre consumo e trabalho, tenham pouco ou nenhum controle sobre a alocação dos recursos arrecadados. É um verdadeiro “confisco de gênero”, no qual as mulheres sustentam o aparato estatal enquanto suas carências e demandas específicas permanecem marginalizadas na agenda legislativa, dominada por prioridades masculinas.

A rejeição do PL 59/2023; a PEC da Anistia (na qual os parlamentares se autoanistiaram por não cumprir cotas de gênero e raça, vide EC 123/2024); e a tramitação de projetos de lei que restringem direitos reprodutivos femininos, como a PEC do Aborto, que tenta proibir a interrupção da gravidez mesmo em situações extremas (como estupro, risco de morte da mãe e anencefalia), são exemplos lapidares do confisco de gênero que materializam a lógica masculina sobre os corpos e as vidas das mulheres, mas com o custeio direto de tributos femininos (algumas vezes, é verdade, com o equivocado apoio de parlamentares do sexo feminino).

O orçamento como mecanismo de concretização do projeto constitucional

O orçamento público, no contexto do Estado Constitucional de Direito, transcende a mera função técnica de equilibrar receitas e despesas. Conforme Morales expõe, em sua análise crítica, o orçamento é um subsistema normativo constitucional inserido no sistema maior da Constituição, com o objetivo central de concretizar os direitos fundamentais e realizar as promessas do projeto constitucional.

Ao vincular recursos à execução de políticas públicas, materializa, em ações concretas, o poder potencial da Constituição e é o principal mecanismo para traduzir os princípios constitucionais em resultados práticos e progressivos para todas as pessoas[5].

Morales identifica, porém, três reducionismos que comprometem essa função transformadora: o contábil, que reduz o orçamento a um mero balanço econômico; o jurídico-formalista, que o trata como um ato administrativo dissociado de sua função social; e o político-ideológico, que o submete a interesses setoriais e partidários. Esses enfoques limitados obscurecem a natureza constitucional do orçamento, relegando a concretização de direitos a um plano secundário e priorizando discursos técnicos, formais ou ideológicos que nem sempre atendem às demandas reais da população.

Na visão de Morales, o orçamento é um dos principais instrumentos de atualização periódica do projeto constitucional. Sua elaboração, a execução e o controle devem estar subordinados à Constituição, que estabelece fundamentos e limites para a alocação de recursos públicos.

O orçamento integra a tessitura constitucional e deve ser entendido como um mecanismo de garantia estrutural do Estado Constitucional de Direito, que articula a dinâmica do poder com a dinâmica normativa, para promover justiça social, igualdade e realização dos direitos fundamentais. A sub-representação feminina, aliada aos reducionismos contábil, jurídico-formalista e político-ideológico identificados por Morales, divorcia o orçamento de seu papel transformador, como um meio privilegiado para concretizar direitos fundamentais como o igualdade entre todos os seres humanos, independentemente de seu gênero..

Ao priorizar interesses setoriais masculinos e afastar-se do propósito de realizar as promessas constitucionais de igualdade e dignidade, o orçamento perde sua força normativo-constitucional e revela-se incapaz de romper a lógica excludente.

A rejeição do PL 59/23: um retrato do confisco de gênero e raça no sistema prisional brasileiro

A rejeição do PL 59/2023 pela Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados, em 9 de dezembro de 2024, é um marco revelador da persistência do confisco de gênero no Brasil. A apropriação de recursos tributados de mulheres para agendas predominantemente masculinas e alheias às suas demandas manifesta-se de forma contundente no contexto prisional, onde direitos básicos como a dignidade menstrual são sistematicamente ignorados.

De autoria da deputada Renata Abreu (Podemos-SP), o PL 59/2023 previa o fornecimento de itens de higiene como papel higiênico, absorventes íntimos e fraldas descartáveis, com o objetivo de assegurar condições mínimas de dignidade às mulheres encarceradas[6].

Embora representasse apenas 0,01% do orçamento estadual destinado ao sistema prisional, a proposta foi rejeitada sob justificativas financeiras e ideológicas que refletem a exclusão de gênero e raça nas prioridades legislativas e orçamentárias. Essa decisão evidencia a dinâmica estrutural que marginaliza as mulheres, especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade extrema.

A Comissão de Segurança Pública que votou o projeto é composta por 33 parlamentares homens e apenas 4 mulheres, um microcosmo da desigualdade de representatividade feminina no legislativo brasileiro. Essa composição, longe de ser neutra, resulta em um controle masculino desproporcional sobre as decisões orçamentárias, mesmo em questões que afetam diretamente a dignidade das mulheres.

O relator do projeto, deputado Sargento Fahur (PSD-PR), recomendou a rejeição com o argumento de que “os recursos públicos deveriam ser destinados às necessidades básicas da sociedade livre” e que itens como absorventes não deveriam ser fornecidos a “criminosos”.

Outros parlamentares, como o deputado Capitão Alden (PL-BA), ironizaram a proposta, afirmando que ela equivalia a “dar produtos de beleza” e sugerindo que o próximo passo seria “arcar com todos os custos de um indivíduo que gerou prejuízo para a sociedade”. O aplausos que se seguiram a essas declarações demonstram uma cultura institucional que naturaliza a exclusão de direitos básicos das mulheres[7].

O Brasil tem a terceira maior população carcerária feminina do mundo, com aproximadamente 42.355 mulheres encarceradas, das quais cerca de 45% em prisão preventiva[8]. Um dado alarmante: 62% dessas mulheres são negras, um reflexo direto do racismo estrutural que criminaliza a pobreza e focaliza suas ações punitivas na população negra, conforme analisa a socióloga Giane Silvestre[9].

Relatórios da Pastoral Carcerária e da Defensoria Pública de São Paulo denunciam que mulheres encarceradas frequentemente não têm acesso a absorventes e são forçadas a improvisar com pedaços de lençóis, toalhas e até miolo de pão, para conter o fluxo menstrual[10]. Além de pôr a saúde dessas mulheres em risco, essas condições degradantes representam uma violação sistemática aos direitos humanos e configuram um quadro de violência institucional que aprofunda o ciclo de exclusão social.

Em 2023, Defensorias Públicas de estados como São Paulo e Minas Gerais, associadas a organizações da sociedade civil, apresentaram um apelo urgente à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), denunciando a negligência do Estado brasileiro em assegurar dignidade menstrual às mulheres presas. O documento destacou que a ausência de itens básicos de higiene não é apenas uma falha administrativa, mas uma forma de tortura simbólica e física[11].

A rejeição do PL 59/2023 exemplifica a dinâmica do confisco de gênero, que emerge de visceral nesse contexto: recursos que poderiam ser destinados à garantia de dignidade mínima para mulheres são deliberadamente negados, reforçando desigualdades de gênero e raça.

Ao vincular a rejeição da proposta a justificativas financeiras irrelevantes diante do impacto ínfimo do projeto no orçamento público, os parlamentares expuseram a desconexão entre as prioridades legislativas masculinas e as necessidades reais da população feminina, agravada pela ausência de mecanismos eficazes de controle constitucional para assegurar que o orçamento público seja orientado à promoção da igualdade de gênero e à vedação de discriminações.

A rejeição do PL 59/2023 não é um episódio isolado. No Brasil, onde as mulheres financiam uma parte significativa do orçamento público por meio da tributação regressiva e do consumo essencial, decisões como essa perpetuam a exclusão e reforçam o confisco de gênero, retardando o ritmo da paridade.

Nas decisões sobre alocação de recursos e funções relevantes de Estado, muitas vezes, é imposto o retrocesso dos poucos avanços conquistados, como se viu na indicação de um ministro homem para uma das duas vagas ocupadas por mulheres no Supremo Tribunal Federal.

A sustentação do ‘confisco de gênero’ e possibilidades de superação

O conceito de “confisco de gênero” define uma apropriação real e injusta dos recursos econômicos das mulheres, agravada pela ausência de políticas públicas que atendam proporcionalmente suas necessidades. Ele evidencia a urgência de uma reforma tributária interseccional e de uma maior representatividade feminina nos espaços legislativos, para que as decisões políticas e fiscais reflitam as demandas da maioria feminina da população brasileira.

Essa perspectiva amplia o debate sobre equidade fiscal e reforça a necessidade de justiça de gênero no planejamento e execução das políticas públicas.

Esse quadro não se limita ao âmbito tributário ou à recusa isolada de projetos, mas aponta um círculo vicioso que combina sub-representação legislativa, regime tributário regressivo e distribuição orçamentária discriminatória.

As mulheres, mesmo arcando com a sustentação do Estado, não conseguem inverter a lógica do gasto público para que atenda a suas demandas, como políticas de cuidados, saúde reprodutiva, combate à violência de gênero, moradia digna e eliminação de barreiras econômicas. A ausência de representação robusta impede a priorização de áreas sensíveis à realidade feminina, perpetuando o alheamento masculino às questões que impactam a qualidade de vida da maioria da população.

A superação desse “confisco de gênero” exige reformas estruturais que combinem justiça tributária, representatividade política e orçamentação sensível ao gênero. Implica rever o sistema fiscal, com eliminação da “Taxa Rosa”, redução de impostos sobre produtos essenciais para mulheres e introdução de mecanismos de compensação para grupos mais vulneráveis.

Pressupõe ampliar a presença feminina nas casas legislativas, não apenas em termos numéricos, mas em condições de influência real sobre a agenda, redirecionando recursos públicos de modo a contemplar saúde, educação, políticas de cuidado e programas eficazes contra a violência doméstica. Sem esses ajustes, o orçamento continuará instrumentalizado por uma elite política masculina e seus apoiadores, mantendo a hierarquia de gênero.

Orçamentação sensível ao gênero e transversalidade nas políticas públicas

A orçamentação sensível ao gênero constitui uma estratégia fundamental para a promoção da equidade nas políticas públicas. Essa abordagem busca assegurar que a alocação de recursos financeiros considere as diferenças de gênero, corrigindo desigualdades por meio de decisões orçamentárias específicas e alinhadas às necessidades da população feminina. Trata-se de um mecanismo para concretizar a justiça social, fazendo do orçamento público ferramenta de inclusão e emancipação.

Modelos internacionais inspiradores

Diversos países adotam com sucesso a orçamentação sensível ao gênero. São exemplos concretos para o avanço do Brasil nessa direção:

  • Suécia: Pioneira na integração da perspectiva de gênero no orçamento. Cada ministério e agência governamental é responsável por avaliar como suas políticas e alocações afetam homens e mulheres de forma distinta, com base em dados desagregados e relatórios transparentes que permitem ajustes contínuos. A orçamentação sensível a gênero tem contribuído para reduzir disparidades salariais, ampliar a participação feminina em posições de liderança e melhorar a oferta de serviços de saúde materna e prevenção da violência contra as mulheres, na Suécia.
  • Canadá: Por meio da Análise de Gênero Plus (GBA+), o governo canadense avalia o impacto de políticas, legislações e programas considerando fatores interseccionais como gênero, etnia e idade. Em 2018, o país implementou a Lei de Orçamentação Sensível ao Gênero, que exige relatórios anuais detalhando como as medidas orçamentárias afetam a igualdade de gênero. Essa iniciativa integra a equidade ao planejamento estatal de forma sistemática e transparente.
  • Bélgica: Desde 2007, uma legislação de mainstreaming (transversalidade) de gênero exige que a perspectiva de gênero seja integrada a todas as políticas federais, incluindo os processos orçamentários. Em 2010, foi publicada uma circular específica sobre orçamentação sensível ao gênero, que delineia procedimentos e metas para assegurar que as decisões orçamentárias reflitam a diversidade da sociedade e promovam a inclusão feminina.

Transversalidade de gênero nas políticas públicas

A transversalidade de gênero (gender mainstreaming) é uma abordagem complementar que integra a perspectiva de gênero em todas as etapas de formulação, execução e avaliação de políticas públicas. Esse método garante que as necessidades e experiências de todos os gêneros sejam consideradas em cada decisão governamental.

  • União Europeia: A Comissão Europeia desenvolveu projetos-piloto que incorporam a perspectiva de gênero ao orçamento, ao avaliar como os gastos promovem a igualdade. Contudo, o Tribunal de Contas Europeu destacou a necessidade de esforços adicionais para integrar plenamente essa abordagem em todas as etapas do orçamento da UE.
  • Áustria: A cidade de Viena é reconhecida por suas iniciativas de transversalidade de gênero. Políticas urbanas foram adaptadas para considerar as necessidades específicas de meninas e meninos, como na reforma de parques e playgrounds, e na revisão de sinalizações públicas para promover igualdade e segurança de gênero.

Importância das análises de impacto de gênero

Como se vê no reconhecimento expresso nas experiências internacionais, as análises de impacto de gênero são ferramentas indispensáveis para a formulação de políticas públicas que efetivamente combatam desigualdades. Elas permitem identificar como grupos distintos serão afetados por medidas específicas, garantindo que ações governamentais promovam equidade em vez de perpetuar desigualdades estruturais.

No Brasil, a ausência de análises sistemáticas de impacto de gênero em políticas públicas, especialmente nas reformas tributárias e orçamentárias, perpetua disparidades que penalizam as mulheres. A implementação dessas análises é crucial para direcionar a arrecadação tributária a políticas inclusivas e progressivas, que atendam às demandas específicas das mulheres e promovam sua emancipação econômica e social.

Recomendações para o Brasil

O Brasil pode e deve inspirar-se em experiências internacionais para incorporar práticas de orçamentação sensível ao gênero e transversalidade em suas políticas públicas. Isso inclui:

  • Instituir a obrigatoriedade de análises de impacto de gênero em todas as etapas das políticas públicas;
  • Garantir que o orçamento público priorize áreas como saúde, educação, combate à violência de gênero e políticas de cuidados;
  • Criar mecanismos que assegurem a transparência e a mensuração dos resultados dessas práticas, fortalecendo a confiança social no uso equitativo dos recursos públicos.

A orçamentação sensível ao gênero e a transversalidade nas políticas públicas não são apenas estratégias eficazes para promover a equidade, mas representam um compromisso com a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. A implementação dessas práticas no Brasil pode corrigir décadas de desigualdade estrutural e fortalecer o papel do Estado como um agente ativo na promoção da dignidade e do desenvolvimento humano para todos os seus cidadãos.

No contexto brasileiro, a incorporação sistemática de análises de impacto de gênero nas políticas públicas, incluindo as tributárias, é indispensável para não perpetuar ou aprofundar assimetrias já consolidadas. A ausência dessas análises pode manter intocado o círculo vicioso do “confisco de gênero”, em que recursos femininos, mobilizados pelo consumo de bens essenciais e tributos indiretos, alimentam um Estado cujas prioridades não refletem a realidade e as urgências da maioria da população.

Ao reconhecer a dinâmica injusta e antidemocrática do direcionamento de recursos públicos, torna-se imperativo reformar a estrutura política, fiscal e orçamentária, bem como inspirar-se em modelos internacionais capazes de alinhar o poder de tributar e gastar às necessidades concretas de todas as parcelas da cidadania.

Por fim, é preciso assinalar que não constituem acidentes históricos, mas expressões de um sistema longamente desenhado para preservar privilégios masculinos a lentidão na conquista da paridade de gênero nas instâncias decisórias, bem como a dificuldade em incluir efetivamente as mulheres em todos os espaços de poder.

Conclusão

O “confisco de gênero” transcende a abstração conceitual e se manifesta como fenômeno estrutural que regula as relações entre Estado e sociedade no Brasil. Essa dinâmica evidencia uma apropriação sistemática dos recursos econômicos das mulheres, cuja contribuição para o financiamento estatal, impulsionada por um sistema tributário regressivo, não encontra equivalência em políticas públicas destinadas a atender suas necessidades.

Ao consolidar privilégios masculinos e negligenciar demandas femininas, essa estrutura perpetua desigualdades que remontam a processos históricos de exclusão de gênero.

O mecanismo do confisco de gênero revela-se na interseção entre tributação, representação política e alocação orçamentária.

Atributos como a predominância de impostos indiretos, com impacto desproporcional sobre as mulheres — sobretudo aquelas de baixa renda e negras —, e a sub-representação feminina nos espaços legislativos evidenciam o caráter cumulativo dessas desigualdades.

As mulheres, apesar de serem maioria da população e principais financiadoras do aparato estatal, têm suas demandas relegadas a um plano secundário por uma estrutura de poder dominada por homens.

Para reverter esse quadro, é indispensável um enfrentamento direto e abrangente.

Primeiramente, a justiça tributária deve ser alcançada por meio de reformas que eliminem a regressividade do sistema, assegurem a isenção de produtos essenciais para a saúde feminina e introduzam mecanismos compensatórios que mitiguem as desigualdades socioeconômicas.

Em paralelo, é fundamental ampliar a representatividade feminina nos espaços políticos, incentivando candidaturas de mulheres; assegurar que recursos partidários sejam efetivamente direcionados a essas campanhas; e combater iniciativas que busquem retroceder conquistas — como a PEC da Anistia.

Adicionalmente, a inclusão de uma perspectiva de gênero na orçamentação pública pode transformar o orçamento em um instrumento de emancipação.

Políticas que priorizem áreas historicamente negligenciadas, como saúde reprodutiva, combate à violência de gênero e cuidados, são passos indispensáveis para assegurar que os recursos públicos promovam igualdade material. Modelos internacionais, como o da Suécia, demonstram que a adoção de práticas de orçamentação sensível ao gênero não apenas reduz disparidades, mas também potencializa o desenvolvimento social e econômico de toda a sociedade.

Mais do que um imperativo moral, a superação do confisco de gênero é uma necessidade constitucional. Garantir que as mulheres participem ativamente da definição das prioridades estatais significa resgatar o espírito transformador da Constituição de 1988, que consagra a dignidade da pessoa humana e a igualdade como fundamentos do Estado. Essa mudança não é apenas um passo em direção à justiça social; é uma estratégia indispensável para que o Brasil realize plenamente as promessas de sua democracia.

Somente ao converter a arrecadação, majoritariamente proveniente das mulheres, em políticas públicas que levem devidamente em conta seu bem-estar, o Estado poderá romper o ciclo de exclusão que sustenta a supremacia masculina. Essa transformação exige esforço coletivo e contínuo, mas traz consigo a promessa de um futuro mais justo e equitativo.

Nesse futuro, as mulheres não apenas contribuirão para o financiamento do Estado, mas participarão ativamente da formulação de suas políticas, influenciando decisões e colhendo os benefícios proporcionais à sua contribuição histórica e presente.


[1] Vieceli, Cristina Pereira. Impactos de Políticas Econômicas na Desigualdade de Gênero no Brasil. Friedrich-Ebert-Stiftung, março de 2023. Disponível em <https://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/20142.pdf>, acesso de 10/12/2024.

[2] Moraes, Roberta Raísa Lacerda. O Sistema Tributário Brasileiro e a Desigualdade de Gênero. Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da PUC/SP. Disponível em https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/26735>, acesso de 10/12/2024.

[3] Ferrari, Luiane Selina Nogueira; Oliveira, Bruno Bastos de. Tributação e Gênero: Políticas Tributárias e o Combate à Cultura Machista. Paraíba: Editora Norat, 2024.

[4] Marano, Nahiana de Souza. Tributação e Desigualdade Social: Uma Análise da Influência do Sistema Tributário Nacional sobre a Desigualdade Interseccional de Gênero e Raça. Revista de Direito Tributário e Financeiro, v. 9, n. 2, p. 43-59, Jul/Dez de 2023.

[5] Morales, Enrique Javier. “Orçamento do Estado Constitucional de Direito: luzes, sombras e desafios.” Conjur, 4 de dezembro de 2024. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2024-dez-04/orcamento-do-estado-constitucional-de-direito-luzes-sombras-e-desafios>, acesso em: 10 de dezembro de 2024.

[6] PL 59/2023. Disponível em <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2345734>, acesso de 11/12/2024.

[7] O Povo. “Deputados, a maioria homens, votam contra ter absorventes nos presídios femininos.” Publicado em 9 de dezembro de 2024. Disponível em: https://www.opovo.com.br/noticias/politica/2024/12/09/deputados-a-maioria-homens-votam-contra-ter-absorventes-nos-presidios-femininos.html . Acesso em: 10 de dezembro de 2024.

[8] JORNAL DA USP. Pesquisa mostra que o Brasil tem terceira maior população carcerária feminina do mundo. Disponível em <https://jornal.usp.br/radio-usp/pesquisa-mostra-que-o-brasil-tem-terceira-maior-populacao-carceraria-feminina-do-mundo/>, acesso de 11/12/2024.

[9] Mulheres em cárcere: Privadas de liberdade, mulheres negras são as que mais sofrem. Disponível em https://www.fundobrasil.org.br/blog/mulheres-em-carcere-privadas-de-liberdade-mulheres-negras-sao-as-que-mais-sofrem/, acesso de 11/12/2024.

[10] Pastoral Carcerária. Disponível em <https://carceraria.org.br/mulher-encarcerada>, acesso de 11/12/2024.

[11] Folha de São Paulo. Comissão Interamericana é acionada contra pobreza menstrual em presídios. https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2023/05/comissao-interamericana-e-acionada-contra-violacoes-a-dignidade-menstrual-em-presidios-brasileiros.shtml , acesso de 11/12/2024.

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