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Corte IDH condena a Colômbia em caso que envolve terras indígenas e direito à consulta prévia

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A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) responsabilizou a Colômbia pela violação de uma série de direitos do povo indígena U´Wa, que sofre com projetos de exploração realizados em suas terras e próximas a elas. O caso representa um precedente importante para outros países da região, como o Brasil, onde comunidades indígenas enfrentam desafios parecidos.

Em sentença divulgada no fim de dezembro (20/12), o Tribunal considerou que a Colômbia descumpriu sua obrigação de proteger os direitos à propriedade coletiva, à consulta prévia, à participação na vida cultural, entre outros direitos, da comunidade U´Wa,  assentada no entorno da Serra Nevada de Cocuy. A defesa da terra é parte central em sua identidade e modo de vida.

Em 1999, o Estado colombiano criou a Reserva Unida U´Wa, de aproximadamente 220 mil hectares. Anos depois, em maio de 2014, o governo e o povo U´Wa assinaram uma série de acordos, entre os quais estavam a regularização da reserva Unida U´Wa e a criação de outra reserva, Kuitua. O processo, porém, não foi concluído até hoje.

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O caso analisado pela Corte IDH se concentra nos fatos relacionados à autorização de sete projetos de extração de petróleo, gás e minerais que afetariam os direitos do povo U´Wa. Alguns dos projetos, inclusive, teriam sido realizados dentro da própria reserva.

Desde os anos 2000, o povo U´Wa também alerta sobre a presença de membros do Exército e de terceiros armados no território, o que levou a atos de intimidação, violência e impactos na cultura e meio-ambiente locais.

Na análise do caso, a Corte IDH recordou que o artigo 21 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos obriga os Estados a garantir o direito à propriedade coletiva dos povos indígenas através da delimitação, demarcação e titulação de seus territórios. O processo em questão não foi concluído mais de 23 anos depois da criação da reserva, e de dez anos do acordo de 2014, em violação ao direito à propriedade coletiva dos U´Wa.

O Tribunal analisou ainda se o Estado deveria ter feito uma consulta prévia em relação aos projetos, e se essas consultas atenderam às obrigações internacionais sobre o tema. A Corte constatou deficiências no processo de ao menos três projetos de extração petroleira. Em outros três, apesar de serem realizados fora do território indígena, o impacto direto é notável, portanto, deveria ter existido um processo de consulta.

As ações e omissões do Estado colombiano, diz o Tribunal, constituíram violação ao direito à propriedade coletiva, à participação, ao acesso à informação e à participação na vida cultural do povo U´Wa – direito incluído entre os protegidos pelo artigo 26 da Convenção e mais uma vez recordado pela Corte em casos dessa temática.

O direito à participação na vida cultural dos povos indígenas compreende o direito a manter e fortalecer a relação cultural com seu território quando este tenha significado espiritual ou religioso que seja parte integrante de sua identidade cultural, lembrou o Tribunal.

O Tribunal determinou ainda a violação de outros direitos por parte do Estado colombiano, com a dispersão violenta de uma manifestação do povo U´Wa contra a exploração petroleira (na qual havia a participação de crianças), a existência de irregularidades na autorização de estudos de impacto ambiental e a falta de medidas de mitigação suficientes depois que ocorreu a explosão de um oleoduto.

Voto concorrente de Mudrovitsch

O juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch, vice-presidente da Corte, o juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México) e o juiz Ricardo C. Pérez Manrique (Uruguai) divulgaram voto conjunto concorrente, no qual se aprofundaram em vários aspectos da sentença, a começar pelo emprego de forças militares em protestos.

Para os juízes, as Forças Armadas não devem intervir em manifestações pacíficas de protesto, “pois isso, per se, viola o direito à livre manifestação, devido ao efeito amedrontador e intimidatório”.

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Para André de Carvalho Ramos, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito da USP, as considerações no voto convergente não só reforçam a necessidade de uma proteção rigorosa aos direitos dos povos indígenas como estabelecem um precedente para que o Brasil e outros países da região reconsiderem e fortaleçam suas políticas e práticas, garantindo que os direitos humanos e a dignidade dessas populações sejam respeitados prioritariamente.

“(A menção às forças militares) é um aspecto crucial do voto, pois enfatiza a inadmissibilidade de empregar Forças Armadas em protestos pacíficos, prática que pode intimidar e silenciar vozes importantes. No Brasil, onde frequentemente se observam tensões entre o Estado e comunidades indígenas, especialmente em disputas territoriais, esta orientação poderia ajudar a moldar uma abordagem mais humana e respeitosa, assegurando que as manifestações ocorram sem violência ou repressão desproporcional”, afirma Ramos.

No voto concorrente, os três juízes também abordam os deveres reforçados do Estado de especial proteção diante da participação de crianças e adolescentes em manifestações, o que aconteceu no caso do povo U´Wa. “O uso indiscriminado de gás no protesto de 11 de fevereiro foi inconvencional, assim como a presença de forças mistas”, afirmaram os juízes.

“O voto realça a necessidade de proteger crianças e adolescentes em contextos de protesto, exigindo dos Estados uma abordagem cuidadosa que evite o uso desproporcional de força e garanta a segurança dos jovens. Considerando que muitas crianças indígenas no Brasil participam ativamente das lutas por direitos e território de seus povos, aplicar esse princípio ajudaria a proteger sua integridade física e psicológica, fundamental para o seu desenvolvimento saudável”, diz André de Carvalho Ramos.

No voto convergente, Mudrovitsch, Manrique e Mac-Gregor afirmam ainda que, além da violação do direito à identidade cultural, houve violação do artigo 12 da Convenção, uma vez que a destruição dos lugares sagrados do povo U´Wa “obstruiu significativamente o direito à livre manifestação da religião ou das crenças”.

“O mais inovador é o reconhecimento da interconexão entre a identidade cultural e a liberdade de consciência e religião. A identidade cultural protege os sistemas religiosos em sua forma mais direta, enquanto a liberdade de consciência e religião salvaguarda o direito de viver e expressar crenças transcendentes, tanto individual quanto coletivamente. Isso inclui a proteção de locais sagrados e de culto, cuja integridade é essencial para a observância do artigo 12 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos”, diz André de Carvalho Ramos.

No contexto brasileiro, compara, esta perspectiva reforça a necessidade de respeitar e proteger a diversidade cultural e religiosa das comunidades indígenas, garantindo que sua identidade cultural e espiritualidade sejam preservadas contra intervenções que possam desvalorizar suas tradições e conexões sagradas.

O peso da crise climática

As sentenças relacionadas a povos indígenas têm sido proferidas num contexto de crise climática mundial, o que se reflete na obrigação de reparação e outros pontos levantados pela Corte, ressalta a advogada criminalista Lígia de Souza Cerqueira, pesquisadora do Centro de Pesquisa Aplicada em Direito e Justiça Racial da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e associada à Frente Ampla Democrática pelos Direitos Humanos (FADDH).

“A sentença destaca de fato o reconhecimento do conhecimento ancestral na proteção dos ecossistemas frágeis, enfatiza os direitos dos povos indígenas à autodeterminação e frisa que esses projetos de extração mineral e a realização de atividades econômicas nesses territórios sensíveis ameaçam a existência desses povos”, afirma ela.

Para Lígia, a jurisprudência da Corte avança na ação de firmar o papel essencial do Estado de proteção ambiental e guardião dos direitos dos povos indígenas.

“O caso obriga a repensar a urgência dessas pautas de desenvolvimento. O desenvolvimento do Estado não pode estar alheio aos direitos humanos, à justiça ambiental e à sustentabilidade”, diz.

Ela também ressalta que o caso pode servir de precedente para casos futuros no Brasil, principalmente em relação a questões de violência e demarcação de terras.

“Uma das obrigações impostas ao governo colombiano diz respeito à maior atenção na questão da demarcação territorial e proteção da população que vive no território. Como em 2024 o Brasil teve muitos conflitos agrários, especialmente na região do Mato Grosso do Sul e no sul da Bahia, pode ser que coletivos indígenas aproveitem esse precedente para tentar impulsionar o tema da demarcação através dos mecanismos da Comissão e da Corte Interamericanas”, diz Lígia.

Consulta prévia e divergência

Para o advogado Daniel Cerqueira, diretor de programa da organização Fundação para o Devido Processo (Due Process of Law Foundation-DPLF), a Corte traz no caso colombiano uma diferença em relação à obrigação de consulta prévia.

“A Corte tem discutido se a consulta prévia também versa sobre direito à liberdade de expressão, à participação política e, mais recentemente, à participação na vida cultural, protegido no artigo 26 da Convenção. Isso se manifestou nessa sentença e ratificou a jurisprudência das últimas duas sentenças, que foram lideradas em votos dos juízes Mudrovitsch e Mac-Gregor”, afirma. “Mas um aspecto novo é o que acontece quando uma comunidade indígena não aceita conversar com o Estado. Ou seja, quando não aceita participar de um processo de consulta prévia. E aqui a Corte diz, pela primeira vez, que quando o Estado cumpre os parâmetros aplicáveis internacionais, dá-se por terminada a obrigação de consultar, o que não implica que não se devem observar outros direitos, por exemplo o acesso à justiça caso a comunidade interponha uma ação”, diz.

Para ele, neste ponto a Corte adotou uma postura “conservadora e, talvez, perigosa”, porque muitas situações em que as comunidades não aceitam um processo de consulta se dão quando justamente  o projeto econômico em questão é de grande envergadura e pode implicar, por exemplo, no deslocamento forçado da comunidade. Por outro lado, afirma,  a Corte dá um passo interessante em relação a outro ponto da consulta prévia.

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“O Estado colombiano alegou que não realizou a consulta para licenciamento de três poços petroleiros porque o projeto ocorreria fora do território das comunidades indígenas. E aí a Corte faz toda uma análise na qual mostra que há situações desse tipo em que, mesmo assim, podem afetar diretamente a comunidade, e deve haver consulta. Isso é expresso, inclusive, na Convenção 169 da OIT. A Corte considera que, nesse caso, a Colômbia tinha obrigação de consultar e condena o Estado pelas violações dos direitos convencionais aplicáveis”, explica.

Votos divergentes

A juíza Patricia Perez Goldberg (Chile) divulgou voto divergente justamente sobre a consulta prévia. Ela questiona o uso do parâmetro de “consentimento” como obrigação diante de projetos econômicos e de exploração em territórios indígenas, e cita o caso Povo Saramaka Vs Suriname (2007). Nele, a Corte estabeleceu que o desenvolvimento de um projeto de grande envergadura requereria mais do que uma consulta ao povo indígena, mas também seu consentimento.

“Nesta decisão (caso U´Wa), como ocorreu em Saramaka e, posteriormente, no caso dos povos Rama e Kriol, Comunidade Indígena Crioula Negra de Bluefields e outros vs. Nicarágua, não está claramente explicado sob quais pressupostos a consulta prévia com os povos indígenas é suficiente e em quais casos o consentimento é inevitável”, escreveu a juíza.

A necessidade do consentimento citada em Saramaka (2007) foi resgatada pela Corte no caso Rama e Kriol (2024) e retomada novamente no caso U´Wa.

“O fato de que a Corte passou 17 anos sem mencionar a obrigação de consentimento, como argumenta a juíza, não significa que a jurisprudência de Saramaka não esteja vigente. Se houver por parte da Corte um desejo de anular o que foi dito em Saramaka sobre consentimento, isso deveria ser expresso no voto majoritário, na própria sentença, não em votos individuais”, afirma Daniel Cerqueira.

Para ele, a discussão é saudável e traz fundamentos jurídicos sólidos, mas a juíza desconsiderou, em sua visão, outras fontes que vão além do direito internacional dos direitos humanos.

“A tentativa da juíza de revisitar a jurisprudência da Corte IDH vai contra a tendência atual, inclusive no setor privado, de abraçar a obrigação de consentimento em projetos desse tipo”, afirma.

Medidas de reparação

A Corte ordenou uma série de medidas de reparação, entre elas que o Estado colombiano conclua as ações necessárias para efetuar o saneamento integral da Reserva Unida U´Wa e da Reserva Kuitua e para esclarecer os títulos de propriedade do povo U´Wa.

Além disso, o Estado colombiano deve realizar um processo de participação em relação aos projetos de extração que foram objeto de análise na sentença da Corte. Deve, ainda, criar um fundo de desenvolvimento comunitário para reparar os danos à participação na vida cultural e como compensação pelos danos materiais e imateriais sofridos.

A composição do Tribunal para a emissão desta sentença foi a seguinte: Nancy Hernández López (presidente, Costa Rica); Rodrigo Mudrovitsch (vice-presidente, Brasil); Ricardo C. Pérez Manrique (Uruguai); Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México); Verónica Gómez (Argentina) e Patricia Pérez Goldberg (Chile). O juiz Humberto Antonio Sierra Porto, de nacionalidade colombiana, não participou da deliberação e assinatura da sentença. O regulamento do Tribunal não permite a participação dos magistrados em casos que envolvem seus países de origem.

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