Corte IDH condena Guatemala por desaparecimento forçado de ativistas durante conflito armado

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A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou a Guatemala em um caso de desaparecimento forçado de quatro defensores de direitos humanos ocorrido no contexto do conflito armado no país, entre  1962 e  1996. O caso chama a atenção pela aplicação do conceito de dano ao projeto de vida das vítimas e suas famílias, citado em precedentes da jurisprudência do Tribunal e destacado pelos juízes nesta decisão. 

Em sentença divulgada há uma semana (14/11), a Corte considerou que os ativistas Agapito Pérez Lucas, Nicolás Mateo, Macario Pú Chivalán e Luis Ruiz Luis foram ameaçados e perseguidos por agentes das forças de segurança do Estado guatemalteco devido às atividades que desenvolviam em defesa dos direitos humanos. Por causa dessas ameaças, eles tiveram de se mudar da localidade em que viviam, Quiché, uma comunidade indígena maia, para Suchitepéquez, na região Sudoeste do país. Foi ali que, em abril de 1989, desapareceram em ação comandada por integrantes do Exército da Guatemala. Até hoje, o caso não foi esclarecido.

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O conflito armado interno foi um marco na história da Guatemala, a exemplo de outros países latino-americanos. Segundo relatório local da Comissão para o Esclarecimento Histórico, criada em 1994 para investigar as violações de direitos humanos no território, o número de desaparecidos durante o enfrentamento armado chega a 40 mil pessoas. Somados os mortos durante o conflito, o número ultrapassa 200 mil pessoas. As forças de segurança do Estado, junto com as Patrulhas de Autodefesa Civil e militares, foram responsáveis pela ampla maioria das violações aos direitos humanos e atos de violência cometidos. 

Durante o conflito armado interno, a Guatemala aplicou a chamada “Doutrina de Segurança Nacional” e, com base nela, utilizou a ideia de “inimigo interno”, que incluía guerrilhas, inicialmente, e depois foi ampliada para incluir todas as pessoas que “se identificam com a ideologia comunista ou que pertencem a uma organização – sindical, social, religiosa, estudantil – ou aquelas que por qualquer razão não estejam a favor do regime estabelecido”. Com isso, a ideia de “inimigo interno” acabou aplicada contra qualquer cidadão de acordo com as vontades e arbitrariedade dos agentes do Estado. Comunidades indígenas maias, principalmente, foram objeto de repressão, particularmente na área rural – caso das vítimas do caso julgado pela Corte IDH.

Os quatro homens trabalhavam na cafeicultura e eram membros ativos do Conselho de Comunidades Étnicas “Runujel Junam”, organização de direitos humanos que se opunha à militarização da sociedade. Eles realizavam ações para libertar camponeses recrutados de maneira forçada pelas Patrulhas de Autodefesa Civil. Na noite de 1º de abril de 1989, pessoas vestidas com uniformes militares, armadas e com os rostos pintados ou cobertos entraram nas casas de Macario e Luis Ruiz e os levaram, contra sua vontade. Seis dias depois, fizeram o mesmo com Agapito e Nicolás. 

Familiares disseram ter sido ameaçados de morte por pessoas com uniforme militar caso relatassem o ocorrido. Os parentes tentaram empreender uma busca por conta própria dos quatro ativistas, sem sucesso. 

Violação de direitos

Para o Tribunal, as autoridades não cumpriram com suas obrigações de investigar, julgar e, se necessário, punir de forma diligente e em prazo razoável os responsáveis. Tampouco efetuaram uma busca eficiente, integral, adequada e diligente do paradeiro das vítimas. 

“O desaparecimento forçado dos quatro defensores dos direitos humanos interrompeu abruptamente os projetos e opções de vida de seus familiares, enquanto a sua ausência provocou uma mudança drástica nas suas condições e dinâmicas cotidianas, afetando irreparavelmente o curso das suas vidas, o que sem dúvida modificou negativamente os seus planos e projetos para o futuro”, afirmou a Corte na sentença. 

Para o Tribunal, a Guatemala violou os direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal, à liberdade pessoal, às garantias processuais, à proteção judicial, à liberdade de associação, à defesa dos direitos humanos e à circulação e residência. 

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“Da mesma forma, a Corte determina que o Estado violou os direitos às garantias judiciais, à proteção judicial, ao conhecimento da verdade, à integridade pessoal, à proteção da família e dos direitos das crianças, em detrimento dos familiares das vítimas desaparecidas”, diz o texto da decisão. 

Para analistas ouvidos pelo JOTA, o caso Pérez Lucas e outros vs. Guatemala reitera a jurisprudência da Corte de que a política de eliminação de opositores políticos utilizando o aparato estatal constitui uma violação aos direitos humanos. Para Siddharta Legale, professor de Direito Constitucional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do mestrado do PPGDC-UFF, a sentença mantém viva a reivindicação de que nenhuma atividade do Estado pode se fundar em atos contrários à dignidade da pessoa. 

“O caso integra o bloco de convencionalidade que reafirma o papel vital da Corte Interamericana tanto na proteção dos direitos humanos quanto da democracia contra aqueles que corrompem a máquina estatal para eliminar a diversidade de opiniões e o pluralismo da arena pública público”, afirma. 

O caso avança ainda no conceito de defesa do projeto de vida, que já havia sido trabalhado pela Corte, lembra Melina Fachin, professora associada dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná e membro da Rede ICCAL (Ius Constitucionale Commune) Brasil. 

“O caso é muito relevante no contexto da Guatemala porque reflete esse padrão de repressão sistemática, seja contra grupos vulneráveis ou com relação a pessoas defensoras de direitos humanos, e aqui a Corte avança na dimensão da proteção ao direito ao projeto de vida, que já é uma corrente jurisprudencial formada desde a década de 90”, afirma. Além disso, diz, reforça a necessidade de um projeto de vida coletivo.

“A relevância não é só do caso de um contexto nacional complexo e problemático em relação à proteção dos direitos humanos, mas também em relação ao avanço desse olhar do desaparecimento forçado como um dano ao projeto de vida com impactos coletivos, familiares, às vezes de uma comunidade inteira, não apenas individuais”, diz a advogada. 

A ideia do projeto de vida vai além de um dano moral, reforça Carlos Elias, professor da Universidade de Brasília e membro da Comissão de Juristas da Reforma do Código Civil. “Trata-se de um dano que subtraiu de uma pessoa a oportunidade de construir e desenvolver o seu projeto de vida”, diz. “A sentença tem ainda valor importante de ser uma espécie de recado para os Estados não incorrerem em novas violações deste tipo. Coloca um grande obstáculo para que essas convulsões sociais  levem a novas ditaduras e atrocidades como as que já testemunhamos na história da América Latina”, completa. 

O voto do juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch

O conceito de projeto de vida foi especialmente explorado em voto conjunto concorrente do juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch, vice-presidente da Corte IDH, e dos juízes Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot e Ricardo C. Pérez Manrique.

No voto, eles reforçam a necessidade de reconhecer o direito a um projeto de vida a partir dos fundamentos interamericanos forjados pela primeira vez no Caso Loayza Tamayo vs. Peru (1998) e sua evolução jurisprudencial para a materialização dos propósitos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

“Aquele primeiro pronunciamento permitiu reconhecer não só a existência do “projeto de vida”, mas também a possibilidade de o mesmo ser danificado e, portanto, reparado. Contudo, à época, a Corte estava ciente dos limites doutrinários e jurisprudenciais para uma quantificação econômica na reparação dos atos de violação que causaram a frustração da realização pessoal. Contudo, passados ​​mais de 25 anos desde o seu reconhecimento, as reivindicações ficam evidentes na releitura do progresso de sua concepção no Sistema Interamericano e de como a Corte Interamericana delineia, no mundo das reparações, sua defesa à luz da direitos reconhecidos na Convenção”, escreveram os juízes. 

No voto, eles afirmam considerar necessário avançar “para o pleno reconhecimento do direito a um projeto de vida, com garantias e reparações próprias, sem subsumi-lo ou confundi-lo com dano moral, nem o restringir apenas ao âmbito da violação do direito à integridade pessoal, evitando campos jurisprudenciais confusos e procurando identificar o conteúdo e as dimensões próprias deste direito”. 

“Embora as dificuldades circunstanciais da vida não devam e não possam ser ignoradas, também não o devem ser os graves efeitos individuais, familiares e sociais gerados pelo Estado quando, através das suas ações ou omissões, viola os direitos humanos capazes de afetar os planos de vida das pessoas”, escrevem os juízes no voto conjunto.

“É um dos melhores votos já proferidos pela ala progressista da Corte Interamericana de todos os tempos. A meu ver, essa forma de interpretar o Direito é a que realiza a melhor e mais adequada interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos na defesa de temas essenciais como o direito à informação, os direitos sociais e as garantias do acesso à Justiça”, afirma o professor da UFRJ Siddharta Legale. “Essa é a interpretação correta da Convenção Americana tendo em vista que o seu artigo 29 demanda que se busque a fonte mais protetiva aos direitos e a interpretação mais favorável aos que tiveram os seus direitos terrivelmente violados pelo Estado após aguardarem que o Estado os repare por décadas”, diz ele.

Um caso clássico relacionado ao dano ao projeto de vida, lembra, é o caso Villagran Morales “Meninas de Rua vs Guatemala” (1999). 

“Nele, Cançado Trindade destacava que os tratados são instrumentos vivos e a interpretação evolui para proteção não apenas da vida, mas também das condições de vida digna. Uma sociedade que não protegesse as suas crianças não teria futuro”, diz. “O paralelo, aqui no caso Pérez Lucas, talvez seja que uma sociedade na qual a democracia não proteja jornalistas, professores, sindicalistas, estudantes e todas aqueles que levantem uma posição contrária ao governo também não tem futuro. O caso, portanto, ajuda a compreender tanto as mortes, crises ou erosões da democracia na América Latina, quanto o papel importantíssimo da Corte Interamericana de guardiã das condições da democracia na região, como antídoto aos rompantes autoritários e autocráticos”, afirma. 

Para Carlos Elias, da UnB, a defesa do projeto de vida e sua consequente reparação inda não se popularizaram nos tribunais domésticos dos países, mas a ação da Corte é mais um passo para possibilitar avanços nesse sentido na região. 

“No Brasil, temos alguns precedentes por exemplo, na Justiça Trabalhista, que admite indenização por dano ao projeto de vida para trabalhadores que são submetidos a cargas de trabalhos desumanos por muitos anos. Mas ainda são passos excepcionais e tímidos. A Corte IDH está muito mais avançada”, afirma. “Mas uma coisa é certa: o precedente da Corte Interamericana e as condenações pecuniárias tentam ao menos atenuar a dor que nunca será sarada e se une a esse movimento de luta pela estabilização dos direitos humanos na região, para que convulsões sociais de natureza ditatorial não ganhem mais espaço”, afirma. 

Voto parcialmente dissidente

Os juízes Humberto Antonio Sierra Porto e Patricia Pérez Goldberg anunciaram voto conjunto parcialmente dissidente, no qual discrepam da decisão majoritária que declarou a violação do direito de circulação e residência das vítimas. Depois de analisar as provas apresentadas no processo, afirmam, não foi possível estabelecer a responsabilidade do Estado neste ponto. 

“Nenhuma das pessoas entrevistadas mencionou que a mudança (…) teria sido forçada ou consequência de ameaças, mas se deveu, especificamente, aos trabalhos na lavoura de café que realizavam de maneira sazonal na região”, escreveram os dois juízes, alegando “falta de análise” na posição majoritária sobre essa questão. “Para estabelecer a responsabilidade internacional do Estado, é imprescindível analisar a totalidade das provas apresentadas e não selecionar algumas, omitindo outras”, acrescentaram. 

“Em que pese o talento e preparo técnico excepcional dos juizes Sierra Porto e Pérez Goldberg, infelizmente, o voto adicional neste caso se perdeu no varejo das miudezas processuais, tornando míopes ao importante aspecto do caso: a reparação ao dano ao projeto de vida coletivo”, opina o professor Siddartha Legale. 

Para Melina Fachin, o voto parcialmente dissidente expõe uma preocupação dos juízes, já demonstrada em outras manifestações, de uma ampliação demasiada dos precedentes criados pela Corte. 

“Eles trazem a preocupação de que a ampliação do conceito do projeto de vida e seu uso inconsistente em determinados contextos poderia de algum modo afetar a coerência e a própria efetivação das decisões da Corte”, afirma. “Com isso dão uma interpretação mais restritiva sobre a extensão da responsabilidade da Guatemala, trabalhando com a ideia de que no contexto do conflito interno armado algumas responsabilidades atribuídas ao próprio Estado podem ser desproporcionais considerando suas próprias limitações contextuais históricas e estruturais”, completa. 

Reparação contra impunidade

Entre as medidas de reparação, a Corte determinou a obrigação do Estado de remover os obstáculos que mantêm a situação de impunidade neste caso, e realizar, o mais rápido possível, uma busca séria e com a devida diligência do paradeiro de Agapito Pérez Lucas, Nicolás Mateo, Macario Pú Chivalán e Luis Ruiz Luís. 

O Estado deve ainda conceber, implementar e pôr em prática a operação de uma estratégia, mecanismo ou programa nacional para a busca de pessoas que foram vítimas de desaparecimento forçado, incluindo aquelas pessoas desaparecidas no contexto do conflito armado interno. Também deve projetar, implementar e executar uma política pública que garanta gestão, desclassificação, conservação e acesso a arquivos e registros documentários das forças de segurança, tanto as existentes como aquelas que foram dissolvidas, que são relevantes para a investigação e esclarecimento dos acontecimentos ocorridos no contexto do conflito armado interno.

“A Corte avança no olhar sobre a reparação integral em relação ao reconhecimento do projeto de vida nessa busca de uma compensação que não seja apenas econômica”, diz Melina Fachin.  “O voto dos juízes Mudrovitsch, Mac-Gregor e Manrique também destaca a importância de ter medidas concretas para as garantias de não repetição, o que inclui fortalecer os mecanismos institucionais para investigação e punição de desaparecimentos forçados e políticas públicas que protejam efetivamente as pessoas que defendem direitos humanos”, diz, acrescentando que a construção de uma memória histórica que faça frente a esse legado de repressão é outra questão relevante do caso. 

Participaram do julgamento deste caso os juízes Nancy Hernández López (presidente, Costa Rica), Rodrigo Mudrovitsch (vice-presidente, Brasil), Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia), Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México), Ricardo C. Pérez Manrique (Uruguai), Verónica Gómez (Argentina) e Patricia Pérez Goldberg (Chile).

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