Corte IDH condena Honduras por destituição arbitrária de juízes da Suprema Corte

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A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Estado hondurenho pela destituição arbitrária, em dezembro de 2012, de quatro dos cinco juízes que compunham a Sala Constitucional da Suprema Corte de Justiça do país. Os magistrados afirmam ter sido removidos de seus cargos “de maneira ilegal, ilegítima e injusta”. 

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Em sentença divulgada na última semana, a Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou que o Estado hondurenho violou as garantias judiciais, os princípios da legalidade e da independência judicial, bem como dos direitos políticos, da proteção judicial, da estabilidade trabalhista e da integridade pessoal dos juízes José Antonio Gutiérrez Navas, José Francisco Ruiz Gaekel e Gustavo Enrique Bustillo Palma, e da juíza Rosalinda Cruz Sequeira. 

As vítimas foram designadas à Sala Constitucional da Suprema Corte de Justiça de Honduras para o período compreendido entre 26 de janeiro de 2009 e 25 de janeiro de 2016. Mas começaram a ser hostilizados pelo Congresso e pelo presidente à época, Porfirio Lobo, em 2012. 

Na ocasião, depois de declarar a inconstitucionalidade de três decretos federais, a Sala Constitucional determinou, por quatro votos a um, a inconstitucionalidade e inaplicabilidade da “Lei Especial para a depuração policial”, defendida pelo presidente Porfirio Lobo e apoiada pelo Congresso. 

Lobo questionou a decisão publicamente e afirmou à imprensa que estava “de luto”, insinuando que os magistrados estariam do lado dos criminosos. 

Poucos dias depois, o Congresso aprovou uma moção destinada a nomear uma comissão especial dedicada a investigar a conduta judicante dos profissionais. Dois dias depois, o grupo apresentou um relatório no qual recomendou que o Congresso avaliasse os fatos e considerasse a destituição dos magistrados. Vários deputados apresentaram então uma nova moção, na qual afirmavam que os magistrados teriam agido “contra o interesse público”. 

A destituição foi aprovada pela maioria do Congresso em uma sessão realizada enquanto o prédio do Poder Legislativo estava cercado por membros das Forças militares e policiais. 

Dias depois, em uma coletiva de imprensa, o presidente Porfirio Lobo disse que estava “totalmente de acordo” com a remoção dos juízes dos cargos. 

O único magistrado da Sala a conservar o cargo foi o que votou contra a declaração de inconstitucionalidade da lei relativa à polícia e segurança pública. 

Os fatos foram acompanhados pelas vítimas pela TV. Nenhum dos juízes foi notificado sobre as moções ou a movimentação no Congresso para sua substituição. 

Em comunicado emitido na ocasião, os quatro magistrados afirmaram que sua destituição foi “totalmente ilegal, ilegítima e injusta” e que ela subvertia os princípios constitucionais e obedecia evidentemente “a razões políticas, não jurídicas”. 

Os recursos apresentados pelos juízes contra a decisão do Congresso foram rejeitados. Eles alegaram ainda ter sofrido atos de intimidação, perseguições e ameaças mesmo já afastados, sem que houvesse investigação dos fatos por parte do Estado. 

Desvio de poder

O caso foi submetido à Corte em 25 de novembro de 2021 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que qualificou a destituição dos juízes como arbitrária e ilegal. O Estado hondurenho fez um reconhecimento parcial de responsabilidade. 

Na sentença, a Corte Interamericana entendeu que as vítimas foram destituídas por uma autoridade (o Congresso) sem competência para tal, o que constituiu violação da garantia de independência judicial. 

O Tribunal concluiu ainda que o ato configurou desvio de poder, porque o Congresso usou o poder de aprovar ou reprovar a conduta administrativa do Poder Judiciário para punir as vítimas por suas decisões e exercer pressão.

A Corte destacou que a destituição dos juízes foi feita sem um procedimento estabelecido, sem base legal quanto às causas e sanções aplicáveis e sem que as vítimas fossem informadas ou que tivessem a oportunidade de exercer seu direito à defesa. Por isso, declarou que Honduras violou as garantias judiciais e o princípio da legalidade. 

O Tribunal afirmou também que o Estado violou a garantia de estabilidade no cargo e, com isso, o direito de acesso a cargos públicos em condições gerais de igualdade e o direito à estabilidade trabalhista. 

Para os juízes da Corte IDH, Honduras violou também garantias judiciais, a proteção judicial e a integridade pessoal das vítimas devido à falta de investigação, eventual processo e punição dos responsáveis ​​pelos atos de assédio e ameaças alegados pelos juízes. 

Na divulgação da sentença, o Tribunal recordou que um dos principais objetivos da separação de Poderes num sistema republicano é a garantia da independência dos juízes e que, para estes efeitos, os diferentes sistemas políticos criaram procedimentos rigorosos, tanto para nomeação quanto destituição. 

Também reforçou que a cooptação dos órgãos judiciais por outros Poderes públicos afeta todo o quadro institucional democrático e, nessa medida, constitui risco para o controle do poder político e para a garantia dos direitos humanos, uma vez que põe em xeque as garantias institucionais que permitem o controle do exercício arbitrário do poder.

A Corte reiterou que existe uma relação direta entre a dimensão institucional da independência judicial e o acesso e permanência nos seus cargos daqueles que trabalham no Judiciário, em condições gerais de igualdade. 

Afirmou ainda que a garantia de estabilidade que decorre da independência judicial implica, por sua vez, que a separação do cargo deve obedecer exclusivamente às causas permitidas, seja através de um processo que cumpra as garantias judiciais ou porque foi concluído o prazo ou período do mandato. Os juízes só podem ser destituídos por faltas graves de disciplina ou incompetência, reiterou o Tribunal, afirmando ainda que todos os processos contra juízes devem ser resolvidos de acordo com padrões estabelecidos de comportamento judicial e através de procedimentos justos, objetivos e imparciais, nos termos da Constituição ou da lei. 

A livre remoção das autoridades judiciais, acrescenta, gera dúvidas sobre o exercício efetivo de suas funções sem receio de represálias.

Devido às violações declaradas, a Corte ordenou diversas medidas de reparação, incluindo o pagamento de uma indenização de US$ 435 mil a cada uma das vítimas, além da realização de um ato público de reconhecimento de responsabilidade e a adequação do ordenamento jurídico interno aos estândares estabelecidos na sentença.

Voto convergente de Mudrovitsch e MacGregor

Os juízes Eduardo Ferrer MacGregor Poisot e Rodrigo Mudrovitsch fizeram um voto convergente conjunto, no qual repassam casos precedentes e afirmam que em uma região na qual, historicamente, processos foram empregados para fragilizar a independência judicial , é “especialmente relevante clarificar os parâmetros normativos que definem a inconvencionalidade do uso do juízo político como subterfúgio para minar o Estado democrático de Direito”.

“A reconstrução da jurisprudência interamericana sobre o tema revelou padrão de conduta estatal marcado pelo emprego do juízo político contra magistrados de cortes superiores, geralmente de forma coletiva, e motivado pela inconformidade com o conteúdo de decisões por eles proferidas, com o propósito de neutralizar obstáculos aos interesses políticos dos Poderes Executivo e Legislativo”, afirmam os magistrados. “A jurisprudência do Tribunal evidencia que grande parte dos casos envolvendo juízos políticos implicou julgamentos coletivos realizados pelo Poder Legislativo. Não se trata de coincidência, mas da mobilização consciente do juízo político para alterar a composição de órgãos de cúpula do Poder Judicial como forma de neutralizar o exercício contramajoritário da função jurisdicional.” 

Os magistrados afirmam que “o desenho institucional do juízo político deve atentar aos riscos atrelados ao seu uso com a finalidade de sancionar magistrados pelo conteúdo de suas decisões. Para a inconformidade com o mérito do julgamento, o remédio deve ser sempre o recurso judicial, e nunca o ataque ao juiz”. E a lei hondurenha é problemática neste ponto porque “o simples fato de determinado magistrado da Suprema Corte votar pela inconstitucionalidade de determinada Lei aprovada pelo Legislativo já autorizaria” a abertura de juízo político contra ele.

Para eles, o caso hondurenho abre um novo caminho em relação aos anteriores que envolviam violações ocorridas em virtude de juízos políticos, ao reconhecer a violação do princípio da legalidade à luz do artigo 9 da Convenção. 

“A declaração de violação desta disposição no caso Gutiérrez Navas e outros consagra o entendimento de que qualquer procedimento de destituição de magistrados deve estar claramente previsto em lei e respeitar os direitos garantidos pelas constituições nacionais e a Convenção, como forma inevitável de salvaguardar a independência judicial”, afirmaram. 

Os juízes recordaram que desde o caso “Tribunal Constitucional vs. Peru”, a Corte IDH deparou-se com vários episódios de destituição arbitrária de juízes e juízas através de processos políticos geralmente ligados à insatisfação de grupos políticos majoritários com decisões que os desagradavam ou conflitavam com seus programas políticos.

No voto, acrescentam, é essencial que os Estados “observem o princípio da legalidade, a garantia da independência judicial, assim como a estabilidade trabalhista, os direitos políticos, as garantias judiciais e a proteção judicial dos magistrados”. 

Marco prático e simbólico

Para o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto, o caso chama a atenção para o desrespeito à harmonia dos Poderes e à própria organização do direito. 

“A Corte Interamericana colocou as coisas nos seus devidos lugares. O Legislativo legisla, o Executivo executa e o Judiciário decide em última análise, julga por derradeiro”, afirmou. “O Legislativo é independente para elaborar as leis, o Executivo é independente para executá-las, ex officio, por impulso próprio, assim como o Judiciário deve ser independente para julgar. É por isso que o Direito é uma casa arrumada, isso é muito importante”, diz.

Ayres Britto afirma que, em qualquer país civilizado e, portanto, democrático, a vontade decisória do Estado se estrutura à imagem e semelhança de um rio: “O Legislativo é a nascente porque elabora as leis. O Executivo é a corrente porque as executa com imediatez, sem provocação de quem quer que seja, mas quem dá a interpretação é o Judiciário. Por isso ele é a foz ou desembocadura do rio decisório do Estado. O Judiciário é um Poder exterior aos outros dois, tão independente politicamente e autônomo tecnicamente quanto eles, mas funcionalmente posterior. Está escrito na Constituição brasileira: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Não está escrito ‘do Poder Legislativo’ ou ‘do Poder Executivo’.”. 

“Assim como a foz não pode ser corrente nem nascente, a nascente não pode ser corrente nem foz, e a corrente não pode ser nascente nem foz. Cada um tem de estar em seu quadrado normativo”, conclui Britto.

Para o doutor em Direito Público Ademar Borges, professor de Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), o caso soma mais um precedente à atuação da Corte em um setor importante e delicado como o da proteção da independência judicial. 

“As mensagens têm sido reiteradas, e no mesmo sentido, de que a Independência judicial é a característica central das democracias. É um requisito fundamental do estado de direito e não há estado de direito e, portanto, não há democracia, sem Independência judicial”, afirma. 

Essa garantia institucional da Independência judicial, reforça, não se realiza de maneira mágica. “Como a Corte coloca, é preciso que haja um aparato legal que garanta essa Independência judicial. Não adianta proclamá-la sem criar limitações e obstáculos à destituição arbitrária de juízes. A sentença expõe exatamente os requisitos e condições para isso, como a necessidade de tipificação legal prévia e precisa, a existência de um procedimento previamente estabelecido em lei, e que esse procedimento deve dar ensejo a um processo justo. Esse juízo não pode ser confundido com um juízo de mera conveniência política”, afirma.  

A mensagem é “importantíssima para a região”, acrescenta, lembrando que a premissa de que juízes não podem ser destituídos de suas funções por divergência política em função das decisões e fundamentações que manifestam é atualidade em todo o mundo. 

“No Brasil, o presidente do governo anterior, que tinha um perfil marcadamente autoritário, fez um pedido de impeachment contra um juiz do Supremo exatamente por conta de suas decisões. Nossa democracia é mais madura do que a de Honduras e de outros países da região, e o Congresso brasileiro não deu segmento a isso, mas foi um sinal de que essa advertência permanece válida, inclusive para nós”, afirma. 

Borges destaca o voto conjunto dos juízes Mudrovitsch e MacGregor que, segundo ele, “representa o estado da arte da jurisprudência da Corte Interamericana” sobre a importância da Independência judicial nas democracias da região e as consequências jurídico-normativas que se extraem dessa exigência. 

“O voto apresenta toda a história da jurisprudência da Corte, demonstrando que há uma sequência uniforme e convergente de decisões na direção de exigir de todos os países da região a adoção de providências para garantir um aparato institucional e legal que é condição para que a independência judicial seja efetivamente observada”, afirma. 

Outro ponto destacado por especialistas foi a separação entre os âmbitos sociais do direito e da política. O tema foi abordado pela Corte, que emite mais um precedente de que outros órgãos internacionais análogos podem se valer como parâmetro para a resolução de questões intrincadas na relação entre direito e política, ressalta Georges Abboud, advogado e professor da PUC-SP e do IDP. 

“O caso Gutiérrez Navas e outros vs. Honduras é de imensa importância prática, posto que resolve uma situação concreta de inconstitucionalidade e serve de precedente dentro da Corte IDH e, potencialmente, em jurisdições constitucionais domésticas. E (importância) simbólica, por reconhecer a importância de diversos marcos constitucionais, em especial a legalidade e à independência judicial”, afirma. 

O especialista reforça que, em um Estado Constitucional, os juízes devem ser livres para decidir de acordo com a lei e com a Constituição de seus respectivos países, sem sofrer pressões ou represálias de ordem política. 

“A própria diferenciação entre os âmbitos sociais do direito e da política é um postulado da modernidade e, ao decidir da forma que decidiu, a CIDH preserva direitos que são verdadeiros patrimônios da civilização”, diz. 

Abboud destaca a relevância do voto dos juízes Mudrovitsch e MacGregor que, segundo ele, traz grande contribuição ao resgatar casos anteriores da Corte desde o “Tribunal Constitucional vs. Perú” (2001) até um muito recente (“Aguinaga Aillón vs. Ecuador”, de 2023), para firmar a institucionalidade da Corte e o caráter não casuístico de suas decisões. 

“Há uma ênfase correta no delicado equilíbrio entre a fiscalização exercida pelo poder político e a degeneração desse controle em interferência arbitrária que pode ela mesma desaguar em abusos. É importante distinguir, como fizeram Mudrovitsch e MacGregor, entre os planos de proteção sobre os quais a independência judicial opera, a saber, entre a pessoa do juiz, no âmbito individual, e a tutela do Poder Judiciário e da própria jurisdição, em âmbito institucional, sendo que essa última transcende as figuras dos juízes singularmente considerados e diz respeito à sociedade como um todo”, afirma. 

Outro ponto essencial no voto dos juízes Mudrovitsch e MacGregor, acrescenta, é o reforço da necessidade de critérios jurídicos que possam balizar os juízos políticos exercidos contra magistrados. 

Abboud salienta a importância do caso em uma região como a América Latina, vitimada pela colonização e onde o patrimonialismo ainda permeia as relações de poder. Não à toa, lembra, o continente vive às voltas com regimes autoritários. 

“A decisão da Corte IDH serve como um ótimo precedente dentro da Corte que pode, inclusive, ser apropriado por Cortes Constitucionais domésticas, bem como uma vitória do direito sobre as relações de poder e da má política. Além disso, há um inegável efeito simbólico acerca da eficácia supranacional dos direitos fundamentais que é garantida e viabilizada por instrumentos de direito transnacional, como é o caso do Pacto de San José da Costa Rica”, afirma. 

Ele ressalta, ainda, que o caso coloca a ênfase correta na responsabilidade da comunidade regional na garantia dos direitos fundamentais dentro de outros Estados.

“Isso significa reconhecer que, na atualidade, a figura do Estado nacional já não dá conta de servir por si só de garantidor de direitos. Mais do que nunca, a proteção dos direitos fundamentais é uma questão de responsabilidade política mundial”, diz ele, destacando também que se trata de mais uma contribuição do sul global ao constitucionalismo. 

Participaram da análise do julgamento e da elaboração da sentença os juízes Ricardo C. Pérez Manrique (Uruguai), Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México), Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia), Nancy Hernández López (Presidente, Costa Rica), Verónica Gomez (Argentina), Patricia Pérez Goldberg (Chile) e Rodrigo Mudrovitsch (Vice-presidente, Brasil). 

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