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Crise precisa ser transformada em oportunidade, valendo ou não o ditado chinês. Muito já se fala (ainda que pouco se saiba) das ameaças trazidas pela inteligência artificial generativa (IA) para a democracia, dentre outros aspectos da sociedade e da economia. Em particular, a possibilidade de se usar a IA para criar, de forma muito fácil e barata, imagens, falas e vídeos de qualquer pessoa, ao ponto de não se distinguir o real do imaginário, ilustra os enormes desafios à frente. A começar pela eleição, quando o eleitor terá a terrível tarefa de diferenciar o que é verdadeiro do que é mentira.
As políticas públicas e a dinâmica social privada também serão moldadas pelos novos tempos, em que a revolução digital transformará, de forma abrupta e intensa, os governos, os negócios e as vidas. A democracia deve permanecer fiel às suas origens da Grécia Antiga, mas precisará remodelada para lidar com os novos instrumentos, costumes e práticas.
Como Keynes ensinava, se o mundo muda, também dos analistas às políticas precisam mudar. Novos tempos exigem novas regras, novos pactos e, sobretudo, uma compreensão ampla dos novos caminhos. Não se precisa entrincheirar as instituições, mas domar e lidar com as transformações de modo a mitigar riscos, e principalmente, para aproveitar as imensas oportunidades trazidas, promovendo mais e melhor integração entre as nações.
Curiosamente, e muitos não percebem, o peso do Brasil em termos mundiais é maior no mundo digital do que no da economia e da população, em termos tradicionais. É dos maiores mercados mundiais de internet, em particular, para as maiores plataformas e redes sociais, até por ser o brasileiro um dos que passam mais tempo conectados no planeta, de modo que contamos mais do que apenas a nossa proporção entre os habitantes da Terra.
Segundo o Digital Global Overview Report 2024,[1] embora o Brasil responda pela sétima maior população do mundo (217 milhões), aparece em segundo lugar mundial nos critérios tempo médio de uso diário de Internet (9h13min, atrás apenas da África do Sul, e mais que o dobro do que se gasta vendo TV) e também no uso de motores de busca (94% dos internautas); terceiro lugar, no uso diário médio de redes sociais (Quênia lhe ultrapassa, e um tempo gasto já superior ao da mídia impressa), o mesmo terceiro posto no ranking do mercado de audiência de anúncios do Instagram (alcance 135 milhões), do TikTok (98 milhões) e do LinkedIn (68 milhões); quarto lugar no uso de assistentes de voz (24% dos usuários).
Segundo a mesma e recente pesquisa, o país tem 187,9 milhões de usuários da internet (86.6% de penetração na população total), 144 milhões de identidades ativas de usuários de mídia social (dois terços dos habitantes), e 128,6 milhões de usuários contados no planejamento de anúncios das principais plataformas (78% da população acima de 18 anos).[2]
O Brasil aproveita o protagonismo da presidência do G20 para chamar a atenção à urgência e necessidade de uma regulação internacional das redes sociais e dos abusos na aplicação de IA. Até porque os brasileiros aparecem no citado Digital Global Overview Report como um dos países com maiores preocupações com relação ao uso indevido de dados pessoais pelas empresas.
Se muitos brasileiros estão entre os cientistas e pesquisadores mais inovadores e responsáveis por grandes projetos e mudanças no campo da IA, o país obviamente está demasiado atrasado em agir.
No campo normativo, até se tenta retomar o pioneirismo que há dez anos levou a adoção da lei que criou o Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965 de 23/4/2014), que ficou ultrapassada ou incompleta em muitos campos, mais pela velocidade das mudanças, o que também turbinou questionamentos judiciais.
No Brasil, há poucos dias, o Senado Federal começou a discutir um projeto de lei para estabelecer um Marco Regulatório da IA, enquanto a Câmara dos Deputados criou um grupo de trabalho para debater a regulação das redes sociais. A Justiça Eleitoral vem revendo e endurecendo a regulamentação da utilização de IA e redes sociais nas campanhas eleitorais, aprendendo a cada eleição.
Sob o risco de se estar a normatizar o que é concebido, produzido e controlado no exterior, é preciso ir além da regulação. Se os dados terão a mesma centralidade na economia que o petróleo, é preciso que seu tratamento seja, antes de tudo, visto como questão central de soberania nacional.
Se o Brasil é dos um maiores mercados de dados do mundo, insistimos mais do que seu peso na população e na economia, não podemos negligenciar a riqueza que geram a cada segundo as centenas de milhões de brasileiros conectados à internet, fornecendo como produtos de marketing os seus dados únicos de biometria ao usarem telefones, computadores, sistemas de pagamento.
Recentemente, no Brasil, ficou famoso o caso de farmácias capturarem dados a partir de receitas médicas e compra de medicamentos, sem que os consumidores tenham clareza de que estavam entregando informações pessoais íntimas em troca de descontos artificiais. Não custa lembrar que o governo da Espanha proibiu uma empresa de capturar imagens da íris de milhares de consumidores. Investigação semelhante está acontecendo em Portugal, onde se investiga se bancos de dados podem gerar atividades de vigilância indevida.
Em nome da segurança, câmeras e softwares fazem identificação facial nas ruas. Aplicativos de GPS armazenam deslocamentos. E dois movimentos importantes na União Europeia: a Lei de Mercados Digitais, que estabelece regras claras para as grandes plataformas e visa impedi-las de impor condições injustas a outras empresas e aos consumidores.
E, com isso, obrigou as big techs a mudarem os termos de adesão e as regras de uso de seus produtos. O segundo é a recente aprovação pelo Parlamento Europeu do regulamento para a IA, a fim de garantir “segurança e conformidade com direitos fundamentais no uso desta tecnologia”.
Por trás de toda essa nova economia e sociedade, há uma outra frente de batalha em escala planetária, em que se mistura os interesses de grandes companhias e nações. Se trata do domínio da IA e da computação quântica, que exigem enormes investimentos, que poucos países ou empresas podem fazer. Com isso, vamos para um mundo com mais concentração de renda e poder? Teremos mais produtividade e eficiência. Mas teremos mais inclusão? Teremos mais bem-estar?
Se alguns dos problemas já são conhecidos, é preciso começar a ir atrás das respostas. É urgente responder também com inovações públicas, a começar pelo campo regulatório, como alcançar também ações de governo e da sociedade organizada. A busca por respostas é que motiva a realização do Foro Transformaciones, em Madrid, em 3 de maio, organizado pela associação cultural Fórum de Integração Brasil Europa (FIBE).
Ora, é o caso de resgatar e repetir a mesma confiança que se tem na moeda, em qualquer país do mundo, mesmo depois que se acabou com sua conversão em ouro. Se a tecnologia impulsiona profundas transformações, em ritmo cada vez mais ágil, é necessário reconstruir também as instituições, as normas, os Poderes Públicos. A reforma não é suficiente. É esperado que a esfera pública fique atrás da inovação tecnológica, mas isso não significa que possa chegar tarde demais ou ser abandonada.
Passa a hora de regulamentar e, idealmente, criar incentivos e estímulos para transformar informações corretas e precisas em um negócio regular e rentável para os que lidam com elas. Por que confiar em uma moeda que já não é mais respaldada pelo ouro? Por que os vitivinicultores encaram as certificações de origem não como um gasto, mas como um investimento?
Por que os fabricantes de cigarros não abandonaram seus negócios depois que a lei os obrigou a informar nos pacotes que são prejudiciais à saúde? Por que os fabricantes de automóveis os equipam com freios ABS e cintos de segurança e deveriam fazê-lo mesmo sem lei porque os compradores os consideram itens essenciais? Não se trata apenas de punir e restringir, mas de conscientizar os cidadãos e incentivar as empresas que lidam com o digital a serem benéficas para a sociedade e para o capitalismo.
Enfim, precisamos transformar a fé em medidas concretas, usando as mesmas ferramentas digitais que criam ameaças. No lugar de permitir os abusos da IA, é preciso crIAr oportunidades.
[1] https://datareportal.com/reports/digital-2024-global-overview-report