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Quando Oppenheimer foi convidado para coordenar o Projeto Manhattan, o papel atribuído a ele e o seu grupo de cientistas era um só: conceber um modelo de bomba capaz de proporcionar explosões em escalas então inimagináveis. Duas ordens de perguntas se colocavam para eles: era empiricamente possível construir uma bomba com tais características? Se sim, como, e com que instrumentos, chegar a esse objetivo?
De outra ordem eram as perguntas endereçadas ao presidente Harry Truman, autoridade de quem o Projeto Manhattan partiu e por quem ele seria executado: a construção de uma bomba com esses atributos seria moralmente legítima? Se sim, em que contextos, e sob que justificativas morais e políticas? Seria moralmente aceitável lançá-la contra pessoas que nada tinham a ver com a guerra, vitimando milhares delas?
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A argumentação e, consequentemente, as racionalidades usadas para responder a cada uma dessas perguntas são distintas. Oppenheimer e seu grupo operavam segundo uma racionalidade instrumental, de meio-fim: definida a finalidade (construir a bomba), deve-se descobrir ou construir o meio técnico pelo qual se chega até ela, e ninguém melhor do que os cientistas para descobri-lo; o Presidente Truman, por outro lado, precisava decidir seguindo uma racionalidade com respeito a valores: independentemente da eficiência da medida, cabia-lhe deliberar sobre a legitimidade dela.
Embora não tenha relação direta com a atuação de agências reguladoras, o exemplo de Oppenheimer é útil para pensarmos seus limites em temas que afetam todos nós.
Há, no Direito, um razoável consenso acadêmico segundo o qual deve ser reservado às agências um espaço exclusivo de deliberação, em virtude de sua expertise técnica. É o que se convencionou chamar de reserva de regulação: decisões técnicas devem ser reservadas aos técnicos, isto é, às agências. E esse espaço a elas reservado poderia ser oposto ao próprio Congresso, se este legislasse em sentido contrário à técnica.
Foi o que aconteceu em 2015, quando o STF declarou a inconstitucionalidade de lei que pretendia, na contramão da Anvisa, reconhecer a fosfoetanolamina, popularmente chamada de “pílula do câncer”, como medicamento para fins legais. O Congresso, entendeu-se, havia invadido o espaço reservado à deliberação da agência, para quem inexistiam evidências aptas a autorizar a aprovação da pílula como se medicamento fosse.
Discussão similar poderá ser judicializada no caso da proibição dos cigarros eletrônicos, recentemente confirmada pela Anvisa. É que o PL 5008/23 pretende autorizar operações com cigarros eletrônicos no país, apesar da decisão da Anvisa.
Um leitor apressado poderia concluir que o precedente do “caso pílula do câncer” deveria ser simplesmente replicado no caso dos vapes: se aprovada, a lei será inconstitucional, ele dirá. Mas a questão está longe de ser assim tão singela, pois os casos têm diferenças relevantes. O exemplo de Oppenheimer nos auxilia a identificá-las.
Medicamentos são concebidos com uma finalidade já pré-determinada: curar ou amenizar doenças, males e outros problemas de saúde. Eles se sujeitam a uma racionalidade instrumental, de meio-fim, então: o medicamento testado é capaz de atingir aquela finalidade, isto é, de curar aquela doença? Se sim, ele deve ser aprovado. Do contrário, não. Foi assim com a pílula do câncer. Como o caso demanda argumentos e comprovações científicos, a competência decisória é da Anvisa. É de reserva de regulação que se trata.
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A transposição dessas conclusões ao caso dos cigarros eletrônicos dependerá da argumentação utilizada por quem defendê-los: se seus defensores sustentarem, por exemplo, que se trata de produto menos prejudicial do que o cigarro convencional, eles entrarão no terreno das discussões técnicas, científicas, e terão o ônus de apresentar argumentos científicos em seu favor. Nessa arena a autoridade máxima é mesmo a Anvisa, a quem cabe e coube o que, em princípio, é uma última palavra. Os debatedores estarão em posição argumentativa similar à de Oppenheimer, e o precedente da “pílula do câncer” poderá mesmo ser aplicado.
Essa, contudo, não é uma obrigação lógica, porque, afinal, cigarros eletrônicos não são medicamentos. É também possível criticar a proibição dos vapes assumindo que eles não têm a pretensão de fazerem bem – ou menos mal – às pessoas. Vários são os exemplos de produtos sabidamente prejudiciais à saúde e cuja comercialização é permitida – o cigarro convencional é um deles. Essa permissão, concorde-se ou não com ela, deve-se sobretudo a um argumento moral, o de que pessoas, como sujeitos autônomos, devem ser livres para consumir esses produtos, desde que informados dos riscos associados a eles, quando, então, entra a regulação da Anvisa.
Se a discussão é levada para o inevitavelmente pantanoso terreno da legitimação moral e política, não só as perguntas passam a ser outras, como também outra será a natureza dos argumentos em discussão. Da objetividade científica, passa-se à fluidez e à multiplicidade de perspectivas do debate político. Das pretensões de verdade empírica, passa-se às pretensões de validade moral, segundo os conceitos do filósofo Jürgen Habermas. Se é legítimo proibir o consumo de um produto que as pessoas sabem lhes ser prejudicial, liberais e conservadores divergirão, pois suas concepções de moralidade política são distintas já de partida. E se a divergência for moral, valorativa, nós estaremos naquela segunda ordem de perguntas, endereçadas a Harry Truman.
Aqui, Oppenheimer seria tão capacitado quanto qualquer cidadão comum para opinar, já que, em assuntos morais, os cientistas não ostentam privilégio epistemológico algum. Também a instituição responsável pela deliberação deverá ser outra: será reservado ao Congresso decidir se a restrição é legítima ou não. Será caso de reserva de lei, e a lei que regulamenta os cigarros eletrônicos será constitucional.