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O debate sobre a gestão pública no Brasil frequentemente gira em torno da crença de que uma ampla reforma é a solução definitiva para modernizar o Estado e torná-lo mais eficiente. No entanto, as experiências recentes mostram que tentativas de reformas administrativas abrangentes — conhecidas na literatura como do tipo “wholesale” ou “atacado” — caíram em desuso desde o final do século passado. Defendidas como panaceias, essas iniciativas, na prática, falharam em entregar os resultados prometidos[1].
Apesar disso, a administração pública brasileira passou por transformações significativas nas últimas duas décadas. Esses avanços, graduais e contínuos, foram impulsionados por dinâmicas socioeconômicas, demandas crescentes da sociedade e, sobretudo, pelo progresso tecnológico. Um exemplo notável é a agenda do governo digital, que trouxe melhorias importantes, especialmente em termos de transparência, agilidade nos processos e redução de custos em diversos serviços públicos[2].
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Porém, apesar de serem louváveis, esses avanços não enfrentaram os desafios estruturais profundos que comprometem o acesso e a qualidade dos serviços públicos no Brasil. Entre eles, destaca-se a questão das desigualdades — uma dimensão frequentemente negligenciada tanto no debate quanto no escopo das reformas administrativas.
Desde a reforma do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), nos anos 1930, focadas na profissionalização, passando pelo Decreto-Lei 200/67, que buscava a descentralização administrativa, até a reforma gerencial dos anos 1990, as desigualdades não foram devidamente enfrentadas.
Essa omissão tem gerado graves consequências para a organização e o funcionamento do Estado, bem como para a efetividade e equidade das políticas públicas. As desigualdades se manifestam em múltiplas dimensões, interconectadas, que continuam a ser um grande obstáculo para a construção de um serviço público democrático, inclusivo e de mais qualidade.
Primeiro, em relação às desigualdades sociais, embora a agenda de diversidade tenha registrado alguns avanços, as disparidades no acesso às políticas públicas e na representatividade permanecem gritantes. Mulheres, negros, indígenas, pessoas com deficiências e pessoas LGBTQIA+ seguem sub-representados em posições de liderança, como também enfrentam barreiras para acessar serviços públicos essenciais.
Essa realidade prejudica não apenas a equidade, mas também a confiança e legitimidade do Estado, uma vez que decisões importantes sobre o desenho e a implementação das políticas públicas tendem a ignorar as diferentes necessidades desses grupos. Mesmo onde políticas afirmativas, como cotas raciais, por exemplo, foram implementadas, os resultados permanecem tímidos diante da magnitude do problema.
Quanto à divisão digital, apesar da transformação digital ser celebrada como um marco de modernização no setor público, em muitos casos, ela negligência a desigualdade no acesso à internet e a dispositivos tecnológicos, o que afeta especialmente as populações mais pobres.
A divisão digital cria um círculo vicioso: enquanto governos focam os investimentos em plataformas digitais, parcelas significativas da sociedade, com restrições cognitivas e/ou de renda, permanecem excluídas, prejudicando a focalização de políticas e intensificando as disparidades já existentes. Para esses cidadãos, o balcão de atendimento segue como a forma mais direta e eficaz de acessar os serviços básicos, como saúde, assistência social e benefícios previdenciários
Uma terceira dimensão envolve as assimetrias dentro da burocracia, em especial, entre áreas prioritárias como as econômicas, jurídicas e de controle e, do outro lado, as áreas finalísticas como saúde, educação, assistência social e infraestrutura. A concentração de recursos e capacidades nas primeiras gera verdadeiras “castas” dentro da administração pública, nas quais as áreas de maior protagonismo e influência restringem a autonomia e a eficácia das demais, responsáveis pela entrega direta da maioria dos serviços aos cidadãos.
Essa disparidade reflete no fenômeno do “apagão das canetas”, em que o excesso de controle paralisa a tomada de decisões[3]. A consequência direta é um ciclo improdutivo: as áreas finalísticas, menos capacitadas, não conseguem cumprir padrões definidos pelas áreas de jurídica, econômicas e de controle, o que leva à perda de espaço na agenda política, baixo desempenho e à redução de recursos orçamentários. No final, quem mais sofre é o cidadão que depende dessas políticas governamentais.
Por último, a dimensão federativa que faz a célebre expressão de Darcy Ribeiro, “vários Brasis dentro do Brasil,” ser particularmente verdadeira também na análise da gestão pública. Estados e municípios enfrentam realidades e capacidades completamente diferentes, especialmente, nos serviços mais rotineiros no dia a dia dos cidadãos, como saneamento e segurança pública que são de responsabilidade dos governos subnacionais.
A transformação digital, por mais útil que seja, não substitui os investimentos necessários em recursos humanos e infraestrutura. Boas escolas, hospitais equipados e profissionais bem-preparados é o que importa para os cidadãos. Ignorar essas diferenças regionais na hora de formular e implementar iniciativas tende a perpetuar desigualdades e limitar a capacidade de governos locais em gerar entregas de qualidade.
Para transformar o Brasil em um país mais justo e próspero, uma alternativa é incluir o enfrentamento das desigualdades como o sexto princípio fundamental da Administração Pública, junto com legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência. Sem isso, qualquer esforço de modernização corre o risco de continuar a reproduzir uma gestão elitista, excludente e incapaz de promover um desenvolvimento socioeconômico sustentável.
Em resumo, o Brasil alcançou avanços significativos na gestão pública nas últimas décadas, incluindo maior transparência, adoção de tecnologias digitais e aprimoramento de mecanismos de avaliação e participação social. No entanto, as desigualdades persistentes na política, na sociedade e na economia continuam a limitar a capacidade do Estado de oferecer serviços mais efetivos e inclusivos.
O verdadeiro desafio — e talvez o único caminho para a modernização sustentável do Estado brasileiro — é priorizar o enfrentamento das desigualdades em todas as iniciativas do setor público. Nesse sentido, uma proposta seria incluir esse objetivo como o sexto princípio fundamental da Administração Pública, ao lado de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Sem esse compromisso, qualquer esforço de transformação corre o risco de perpetuar uma gestão elitista, excludente e incapaz de promover um desenvolvimento socioeconômico verdadeiramente sustentável.
[1] Pollitt, C., & Bouckaert, G. (2017). Public management reform: a comparative analysis – into the age of austerity (Fourth edition). Oxford University Press. https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&scope=site&db=nlebk&db=nlabk&AN=1546722
[2] Cavalcante, P. & Silva, M. (2020). Reformas do estado no Brasil: trajetórias, inovações e desafios. Ipea.
[3] https://movimentopessoasafrente.org.br/faq/o-que-e-o-apagao-das-canetas/