Desmonte das agências reguladoras: a quem cabe a culpa?

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As agências reguladoras federais têm recebido grande atenção midiática nas últimas semanas, em virtude de questionamentos quanto à efetividade de suas ações e seu papel institucional.

Por um lado, critica-se a capacidade dessas agências de exercer com a devida contundência as atribuições relativas à supervisão das empresas reguladas, sobretudo após os graves apagões de energia em São Paulo, nas últimas semanas.

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As agências reguladoras e observadores setoriais, por outro lado, respondem enfatizando a redução no quadro de pessoal e no orçamento dos órgãos, implicando, assim, o governo federal. Esse embate retoma questões quanto ao equilíbrio entre a autonomia das agências e a função de representantes eleitos. Faz-se necessário resgatar a capacidade das agências, o que passa por revisar opções políticas adotadas em um passado recente e pela rigorosa atribuição de responsabilidades.

Uma comparação detida entre a postura de administrações presidenciais ao longo do tempo mostra que o comprometimento da capacidade das agências reguladoras decorre de decisões tomadas principalmente durante o governo Bolsonaro.

Dados oficiais de orçamento e de ocupação de cargos, extraídos, respectivamente, dos sistemas de dados federais SIOP e SIAPE, além do Atlas do Estado Brasileiro, demonstram uma sustentável ação de enfraquecimento da estrutura das agências reguladoras durante o governo Bolsonaro. Essa postura diverge do ocorrido em governos precedentes.

Números de execução orçamentária disponíveis nos permitem gerar séries históricas íntegras para o período 2000-2022, abarcando 6 das 11 agências reguladoras federais. Os gráficos 1 e 2 apresentam essas séries, as quais podem ser interpretadas a partir da estipulação de três intervalos temporais.

De 2000 e 2008 ocorreu a etapa de estruturação das agências reguladoras, com orçamento real em alta ao final do período, com destaque para a categoria de despesas de pessoal. Nesse primeiro estágio, também houve a formalização de carreiras públicas nas agências, com a aprovação da Lei 10.871/2004.

Entre 2009 e 2018, as agências reguladoras atingiram um estágio de maturidade institucional, com certa estabilidade ou ligeira alta na execução orçamentária em termos reais.

Contudo, revertendo a tendência prévia, entre 2019 e 2022 houve um acentuado declínio no orçamento das agências reguladoras, período que coincidiu com os quatro anos da gestão Bolsonaro.

Gráfico 1: Execução orçamentária de despesas primárias das agências reguladoras (valores corrigidos pelo IPCA a preços de dez.2022, em R$ milhões

Fonte: elaboração dos autores a partir de dados do SIOP (dados de dezembro de cada ano)

O gráfico 2 demonstra que, a partir de 2019, houve uma progressiva contração nas despesas de pessoal das agências, também em termos reais. Essa contração se explica pela ausência de recomposição salarial para os servidores das agências e de concursos públicos. Após vários anos, incluindo todo o período da gestão Bolsonaro, em 2023 as agências reguladoras voltaram a recrutar pessoal mediante concursos públicos abrangentes.

Gráfico 2: Execução orçamentária de despesas de pessoal e encargos sociais (valores corrigidos pelo IPCA a preços de dez.2022, em R$ milhões)

Fonte: elaboração dos autores a partir de dados do SIOP (dados de dezembro de cada ano)

Outro aspecto diretamente relacionado à gestão Bolsonaro foi o processo de militarização do serviço público civil, o que também atingiu as agências. O gráfico 3 mostra que de janeiro de 2019 a janeiro de 2023 as nomeações de oficiais militares para posições em agências reguladoras mais que dobraram, com pico em 2021. Os registros oficiais ainda indicam que a maioria dessas nomeações, algumas delas para cargos de liderança nas agências, envolveu oficiais de baixa patente, em especial, praças ou graduados e oficiais subalternos.

Ou seja, a limitada experiência profissional desse grupo era, ainda assim, de natureza castrense. Difícil argumentar, portanto, que militares de baixa patente tiveram suas nomeações para as agências baseadas em critérios técnicos e que sua formação prévia estava alinhada aos saberes que se requer para as funções de regulador, via de regra estranhas às atividades militares.

Gráfico 3: Número total de militares em agências reguladoras por grupos hierárquicos militares

Fonte: elaboração dos autores a partir de dados do SIAPE e do Atlas do Estado Brasileiro (dados de janeiro de cada ano)

O que se deduz é que o atual ambiente de crise que enfrentam as agências reguladoras tem raízes profundas. No que concerne à deterioração da capacidade desses órgãos, a situação atual é indissociável da tentativa de desmonte do Estado brasileiro promovida pela gestão Bolsonaro, o que está densamente descrito em estudos já publicados.

Por isso, o processo de “desmilitarização” das agências iniciado em 2023 (como se observa no gráfico 3), somado à retomada dos concursos públicos para as agências, foram importantes – ainda que possam ser intensificados.

Igualmente, iniciativas como a Estratégia Nacional de Melhoria Regulatória e a proposta do governo federal de lançar uma discussão ampla acerca do papel das agências são passos relevantes na recuperação da capacidade administrativa e operacional desses órgãos, alinhando-a também às principais políticas públicas nacionais.

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