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Não, ilustre leitor, ilustríssima leitora: não faltou uma interrogação no título. Não estou propondo uma dúvida sobre a necessidade de se restringir o rol de legitimados a propor ações de controle concentrado de constitucionalidade.
Defendo que, à luz da experiência constitucional pós-1988, é conveniente e oportuno – e quase necessário – reduzir o quantitativo de autoridades e entidades autorizadas constitucionalmente a deduzir perante o STF pedidos de declaração de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos do Poder Público.
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Mas vamos, primeiro, contextualizar o porquê dessa defesa.
O controle de constitucionalidade in abstracto tem experimentado, ao longo do tempo, uma significativa ampliação de seus legitimados ativos, na experiência constitucional brasileira, especialmente pós-1988.
Como uma reação ao monopólio de ação do procurador-geral da República, que vigorara de 1965 até então, a Constituição de 1988 ampliou de forma inédita no mundo o rol de legitimados a propor o controle concentrado de constitucionalidade, trazendo no art. 103 até mesmo pessoas jurídicas de direito privado e partidos representados por apenas um deputado ou senador para a arena dos que podem provocar a jurisdição constitucional abstrata.
Passado o momento de júbilo com a superação do monopólio da ação pelo procurador-geral da República, os problemas de uma opção por abertura tão radical não tardariam a surgir. Ainda em 1995, Saulo Ramos alertava que:
“A Constituição de 88 abriu um leque enorme de legitimados para esta ação, o que tem causado, ao Supremo Tribunal Federal, um acúmulo de processos desse tipo. Mesmo porque a ação direta de inconstitucionalidade compreende lei e ato normativo federal e estadual. E como legitimados para essa ação estão os partidos políticos, é fácil deduzir que em qualquer estado do Brasil, no Acre, Rondônia, Piauí, eles veem num simples ato do secretário de Estado, que os desagrade, motivo para acionar o dispositivo constitucional, e batem à porta do Supremo, muitas vezes para discutir atos de efeitos concretos, sem nenhum conteúdo normativo. O que tem demonstrado, insistentemente, a má utilização do remédio jurídico e dado ao Supremo um excesso de trabalho desesperador”.[1]
Outros autores, como Clèmerson Cléve, chegaram a destacar que “a ampliação do rol de legitimados à arguição abstrata de inconstitucionalidade, somada ao que se chamou de inflação legislativa, acarretou um aumento significativo do volume de demandas”[2]. Ou, como defendeu Alexandre de Moraes, a legitimidade ativa no Brasil se distanciou “do modelo usualmente adotado no Direito Constitucional de outros países, que outorga legitimidade para a propositura de ações diretas de inconstitucionalidade a determinado número de parlamentares”[3].
Gilmar Ferreira Mendes, em obra doutrinária, inclusive aponta que “a exigência de que o partido esteja representado no Congresso Nacional termina por não conter qualquer restrição, uma vez que suficiente afigura-se a presença de uma representação singular para que se satisfaça a exigência constitucional”[4].
Os números assustam, ainda mais num contexto de intensa judicialização da política.
Luís Roberto Barroso, por exemplo, adverte que:
“Os partidos políticos respondem por 20,55% do total de ações diretas de inconstitucionalidade (…), atrás apenas dos Governadores de Estado (26,86%) e das Confederações Sindicais e Entidades de Classe (25,80%). (…) Em outros países, o direito de propositura é atribuído não a um partido, mas a determinado número de parlamentares. Na Constituição da Áustria, art. 140 (1): 1/3 dos membros do Parlamento ou 1/3 dos membros do Conselho federal. Na Constituição Alemã, art. 93, I, n. 2: 1/3 dos membros do Parlamento. Na Constituição de Portugal, art. 281: 1/10 dos Deputados à Assembleia da República. Na Constituição da Espanha, art. 162: 50 Deputados ou 50 Senadores”.[5]
Em sentido semelhante, Lenio Luiz Streck e Gilmar Ferreira Mendes questionam
“se não seria mais adequado, para a preservação da nobreza do instituto do controle abstrato de normas e para o bom desempenho da jurisdição constitucional, que se convertesse o direito de propositura dos partidos políticos com representação no Congresso Nacional em direito de propositura de um determinado número de deputados ou de senadores. Afinal, se para propor uma CPI no Congresso Nacional é necessário um número mínimo de assinaturas, por que não estabelecer requisitos mais rígidos para o exercício da legitimação de uma ação que é cerne da jurisdição constitucional?”.[6]
A esse quadro de amplíssima legitimação ativa e inflação legislativa se soma o intrigante e desafiador fenômeno da judicialização da política. Como adverte Christine Landfried, em lição sobre o ordenamento alemão plenamente aplicável ao Brasil, existe uma tendência a que se questionem as leis perante a Corte Constitucional pelo mero fato de se ter perdido o embate político, como representado pela célebre frase “Nós nos vemos em Karlsruhe” (a sede do Tribunal Constitucional)[7].
E isso porque, no ordenamento alemão, modelo de referência para o Brasil em relação ao controle abstrato de constitucionalidade, admite-se apenas a provocação do Tribunal Constitucional, nessa via, pelo governo federal, pelos governos estaduais ou pela terça parte dos membros do Parlamento.
Existe a possibilidade de julgamento das causas por afetação de qualquer juiz, ao apreciar a causa (art. 100 da Grundgesetz), bem como a apresentação de queixa constitucional por qualquer parte lesada (Verfassungsbeschwerde), mas essa última sistemática aproxima-se mais de nosso controle incidental, tanto que os autores destacam as semelhanças entre a queixa constitucional alemã, o juicio de amparo dos países de língua espanhola e nosso mandado de segurança[8].
Ao se analisar o Direito Comparado e mesmo a teoria geral do Direito Constitucional, percebe-se que a restrição dos legitimados a provocar os tribunais constitucionais (em sentido amplo) é o esquema amplamente majoritário[9]. Ou, como adverte André Ramos Tavares:
“O denominado acesso individual e irrestrito (popular) costuma ser considerado incompatível com o modelo de controle de constitucionalidade realizado por um Tribunal Constitucional de maneira concentrado-abstrata, porque há um grande risco de ações temerárias e de congestionamento das funções do Tribunal (…).
Se restrita, a propositura da ação fica circunscrita a um número limitado de pessoas, assinaladas expressamente pela Constituição ou pela lei de regência. É comum a restrição da legitimidade por motivos de conveniência política”.[10]
Perfilhando semelhante orientação, Canotilho adverte que, por causa da “inflação dos processos de controlo que a acção popular universal poderia originar, a regra é a da restrição da legitimidade”[11], sendo que León Duguit também já advertia que: “se se permite recorrer contra ela todo indivíduo que que se considerasse lesado por uma lei inconstitucional, poderia temer-se que o trabalho legislativo se dificulte ou paralise completamente”[12].
Aliás, mesmo no âmbito do controle incidental tem havido uma séria preocupação com a quantidade de processos que chegam aos tribunais constitucionais, levando a que se institua uma “filtragem” do acesso[13].
Voltando aos exemplos do controle concentrado, verifica-se que na Itália, por exemplo, a Lei Constitucional de 9 de fevereiro de 1948 (que regulamenta o processo e julgamento de ações perante a Corte Constitucional), restringe a legitimidade ativa ao Estado Italiano e às Juntas Regionais (art. 2, alíneas 1 e 2). Assim, “excluiu-se a possibilidade para qualquer pessoa de impugnar uma lei por inconstitucionalidade (…) reservando-se a ação direta ao estado e às Regiões”, como advertia Arnoldo Wald, lastreado nas lições de Calamandrei e Levi[14].
Na Áustria, berço e referência do controle abstrato, a legitimidade para agir cabe ao governo federal, aos governos dos estados (Länder) e a um terço dos deputados. Regras bastantes semelhantes são adotadas, conforme citado, na Alemanha.
Já a Espanha restringe o acesso ao controle abstrato repressivo ao presidente, a 50 deputados ou 50 senadores, às Comunidades Autônomas e ao Defensor do Povo (equivale ao PGR no Brasil)[15].
Em outras palavras, o Brasil parece mesmo, nesse aspecto, um ponto fora da curva, ao franquear acesso excessivamente amplo ao controle abstrato – ainda mais se levarmos em conta a existência também, entre nós, do controle difuso-incidental.
Faz-se necessário, portanto, racionalizar o acesso à jurisdição constitucional pela via concentrada, mantendo-se intocado o acesso via controle difuso-incidental. Isso porque não se pode esquecer que a justiça constitucional é um bem escasso, cujo acesso precisa ser regulado e regrado, sob pena inclusive, como adverte a doutrina, de problemas de governabilidade, de funcionamento interno do tribunal, de coerência jurisprudencial e até mesmo de confiança social na capacidade operativa do sistema constitucional[16].
Há mais: mesmo de 1988 até hoje, embora a matéria não tenha sido objeto de Emenda Constitucional para a ampliação geral do rol (embora a EC 45, de 2004, tenha ampliado o rol específico dos legitimados à propositura de ADC), houve um crescimento dos legitimados, na prática.
É que, quando a Constituição foi promulgada, em 1988, “partido político com representação no Congresso Nacional” (art. 103, VII) eram apenas 13 – hoje são 23, e já chegaram a ser mais de 30, embora esse número esteja em discreta, mas decisiva, queda, desde a Emenda Constitucional 97, de 2017. Assim, quando o constituinte aprovou a redação do art. 103, pensava em pelo menos uma dezena a menos de partidos legitimados a suscitar o controle concentrado.
Some-se a isso que a redação original do art. 103 não previa a ADC (que, mesmo quando foi criada, tinha apenas poucos legitimados ativos), e a ADPF… bem, ninguém sabia exatamente o que era a ADPF, nem o que fazer com ela, até sobrevir a regulamentação de 1999. Mas certamente não se suspeitava que a Arguição pudesse vir a fazer as maravilhosas piruetas processuais e de políticas públicas da qual ela se mostrou capaz.
Nesse contexto, defendo que seja apresentada uma Proposta de Emenda à Constituição, a fim de racionalizar o acesso ao STF, substituindo uma regra de legitimação ativa (partidos políticos com representação no Congresso Nacional), por uma nova, semelhante ao modelo alemão.
Assim, além dos atuais legitimados, como presidente da República, governadores, Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, procurador-geral da República, Conselho Federal da OAB e confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional, poderão propor ações de controle concentrado também 1/3 dos membros de qualquer das Casas do Congresso Nacional.
Essa regra, a meu ver, equilibra a já demonstrada e necessária restrição de acesso à jurisdição constitucional concentrada, com a inolvidável proteção que as minorias precisam receber numa democracia.
Vale ressaltar que não se reduzem as prerrogativas de acesso ao Supremo Tribunal Federal, uma vez que “o controle difuso (…) supre essa lacuna”[17]. No mesmo sentido, André Ramos Tavares cita que uma forma de permitir o acesso do cidadão ao tribunal constitucional pode ocorrer “por meio de um controle difuso-concreto realizado via ‘incidente’”[18].
Apenas se busca, nesse contexto, alinhar o Brasil com os demais países em relação ao controle concentrado e abstrato, trazendo eficiência para o sistema, sem restrições exageradas ou desmedidas.
Não se trata de impedir o acesso à corte, mas de racionalizá-lo. Logicamente, é essencial ao funcionamento da democracia constitucional que as minorias possam questionar judicialmente as decisões majoritárias – e que isso seja feito com base em instrumentos adequados.
A questão, aqui, é bastante pontual: no movimento pendular e constante reavaliação das opções legislativo-constitucionais, o monopólio da legitimidade pelo PGR mostrou-se inaceitável; porém, ser o país com o maior rol de legitimados ativos ao controle concentrado no Ocidente também se evidenciou exagerado.
Proponho uma pequena correção de rota, mediante modificação de apenas uma das hipóteses de legitimação, o que talvez ajude a trazer maior funcionalidade ao sistema. A ver.
[1] RAMOS, Saulo. Ação Direta de Inconstitucionalidade. In: Revista Tributária e de Finanças Públicas, nº 11, p. 22, abr.-jun.1995.
[2] CLÈVE, Clémerson Merlin. Comentários ao art. 103. In: BONAVIDES, Paulo et al (orgs.). Comentários à Constituição federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 1336.
[3] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2009, p. 744.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 93.
[5] BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 190.
[6] STRECK, Lenio Luis; MENEDES, Gilmar Ferreira. Comentários ao art. 103. In: CANOTILHO, J. J. Gomes et al. (orgs.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Almedina/Saraiva, 2014, p. 1413).
[7] LANDFRIED, Chritstine. The impact of the German Federal Constitutional Court on politics and policy output. In: Government and Opposition, v. 20, n. 4, 1985, p. 528; da mesma autora, cf. The judicialization of politics in Germany. In: International Political Science Review, v. 15, n. 2, p. 113-124, 1994.
[8] Cf. SEGADO, Francisco Fernández. La Obsolescencia de la Bipolaridad Tradicional (Modelo Americano – Modelo Europeo-Kelseniano) de los Sistemas de Justicia Constitucional. In: Direito Público, nº 2, out.dez.2003, p. 56. No mesmo sentido: GÎRLEŞTEANU, George Liviu. The Amparo Proceedings-Instrument for the Protection of fundamental Rights and Freedoms (I). In: Revista Româna de Drept Comparat, n. 1, pp. 53.79, 2011. No mesmo sentido já se posicionava Alfredo Buzaid, ainda em 1961 (“Juicio de amparo” e mandado de segurança. (Contrastes e confrontos). In: Revista Da Faculdade De Direito da Universidade De São Paulo, v. 56, n. 1, pp. 172-231, 1961.
[9] Cf. VERGOTTINI, Giuseppe de. Diritto Costituzionale Comparato. Padova: Cedam, 1991, p. 209.
[10] TAVARES, André Ramos. Teoria da Justiça Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 408.
[11] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993, p. 968.
[12] DUGUIT, León. Manual de Derecho Constitucional. Madrid: Francisco Beltrán, 1926, p. 283.
[13] Cf. FAVOREAU, Louis. As Cortes Constitucionais. São Paulo: Landy, 2004, p. 38.
[14] WALD, Arnoldo. Competência Privativa do procurador-Geral para o Exercício da Ação Direta. In: Revista de Direito Público, nº 23, p. 112, jan.-mar.1973.
[15] Cf. FAVOREU, Louis. Op. Cit., p. 48-49; 67-70; 108-109.
[16] Cf. TAVARES, André Ramos. Op. Cit., pp. 411-413.
[17] Cf. CLÈVE, Clémerson Merlin. Op. Cit., p. 1336.
[18] Cf. TAVARES, André Ramos. Op. Cit., p. 409.