Direito à saúde e proteção social nos Estados de Direito do século 21

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Em tempos de turbulência política global, em que os direitos sociais passam a sofrer severas limitações em vários países, relembrar o processo de afirmação jurídico-normativa-institucional do direito humano à saúde mostra-se um imperativo. Reforçar as bases filosóficas, científicas, morais e legais que sustentam a noção de que a saúde é um direito humano fundamental para a vida digna é necessário para evitar o retrocesso civilizatório e, mais ainda, para proteger a própria noção de cidadania baseada em Estados democráticos voltados à proteção e promoção dos direitos humanos.

A Constituição de 1988 inaugurou no Brasil um ciclo virtuoso de estabilidade democrática e desenvolvimento, com reflexos sensíveis na organização e proteção dos direitos humanos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. 

Dentre os avanços verificados vale destacar, inicialmente, a criação de um sistema de proteção social amplo, com o reconhecimento expresso da saúde como um direito fundamental, bem como de outros direitos sociais estratégicos para a proteção da saúde individual e coletiva, tais como educação, alimentação, moradia, trabalho, previdência social e assistência aos idosos e aos desamparados.

A Seguridade Social, instituída em 1988, rompeu com o antigo modelo contributivo e securitário do sistema de saúde brasileiro e instalou um sistema de proteção social baseado em três eixos fundamentais: saúde, assistência social e previdência social. Saúde e assistência social passaram a ser campos de seguridade social protegidos e financiados pelo Estado, calcados na ideia de universalidade, desvinculados de contribuição prévia e inseridos no contexto da solidariedade nacional.

Especificamente no campo da saúde, a Constituição foi extremamente generosa. Inspirada pela oitava conferência nacional de saúde, reconheceu a saúde como direito de todos e dever do Estado. Para garantir o direito à saúde, o Estado brasileiro, conforme previsto na Carta de 1988, passou a ter o dever de desenvolver políticas econômicas e sociais voltadas à redução do risco de doenças e outros agravos, bem como à promoção, proteção e recuperação da saúde.

As políticas públicas de saúde passaram a integrar um sofisticado sistema público de saúde universal, denominado Sistema Único de Saúde (SUS), que reúne em seu interior todas as ações e serviços públicos de saúde do Brasil, desenvolvidos pelas três esferas de governo sob os princípios constitucionais da universalidade, integralidade, acesso igualitário, participação da sociedade e equidade. 

Os princípios que norteiam o sistema universal de saúde brasileiro estão ancorados justamente nas ideias de dignidade da pessoa humana, inclusão e não discriminação. A previsão de tratamento universal e igualitário a todos, sem distinção de qualquer tipo, traduz para o campo da proteção social da saúde, de forma inequívoca, os objetivos iluministas de igualdade, liberdade e fraternidade.

O princípio da integralidade, que preconiza um sistema de saúde voltado ao atendimento das necessidades de saúde da população por meio de serviços que cubram todos os níveis de atenção, também revela um sistema humano e solidário. O Sistema Único de Saúde deve estar organizado em redes de atenção à saúde organizadas de forma hierarquizada e regionalizada, redes que devem estar bem distribuídas pelo território nacional e aptas a oferecerem serviços de promoção, prevenção e recuperação da saúde.

O direito humano a saúde depende, para sua efetivação, de ampla participação social. A democracia sanitária mostra-se um importante caminho para a construção democrática da saúde como um direito, e tem como pressuposto o fato de que, em sociedades democráticas, as decisões políticas sobre saúde devem ser tomadas com base em ampla participação da comunidade e em respeito aos direitos e liberdades individuais. 

O direito à saúde é uma conquista da população brasileira, que deve fiscalizar e acompanhar as ações estatais voltadas à sua plena realização. Muitos avanços foram feitos para promover a participação democrática da comunidade no âmbito do SUS, tais como os Conselhos e as Conferências de Saúde, mas ainda há muito espaço para a melhoria dos processos e instituições democráticas de participação no SUS, não só por meio do fortalecimento dos canais institucionais já criados mas principalmente por meio da criação e aperfeiçoamento de novos canais participativos que considerem o uso das novas tecnologias digitais como meio virtuoso de interação entre decisões estatais e vontade popular.

Mais do que um sistema voltado a garantir o acesso às ações e serviços públicos de saúde pelas pessoas de acordo com as necessidades de saúde da população, o SUS é um verdadeiro projeto de justiça social. Garantir a saúde universal significa garantir igualdade de condições para o desenvolvimento físico, mental, profissional e espiritual para todos, base de qualquer sociedade democrática que tem em seus objetivos a promoção da dignidade do ser humano sem distinção entre os diferentes tipos de gente. 

Vale ressaltar, nesse aspecto, que o Brasil ainda possui um longo percurso a seguir para reduzir as obscenas iniquidades sociais que marcam a nossa sociedade.  As desigualdades sociais podem ser visualmente verificadas em nosso dia-a-dia, em diversos aspectos que condicionam e determinam a saúde das pessoas, a começar pelas precárias condições de moradia, pautadas por um modelo de urbanização e desenvolvimento excludente e insustentável. Pesquisa da Fundação João Pinheiro publicada neste ano de 2024 aponta para um déficit habitacional de mais de 6,2 milhões de moradias no país, o que representa em torno de 24 milhões de pessoas vivendo em habitações inadequadas no país, sobretudo nas regiões norte e nordeste e nos grandes centros urbanos. 

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) aponta que metade dos trabalhadores do Brasil tinham, em 2016, uma média de renda inferior a um salário mínimo. Além disso, a parcela de 1% das pessoas com maior rendimento no Brasil ganha 36 vezes mais que 50% dos demais trabalhadores. Nesse contexto, os 10% mais ricos da população brasileira concentram 43% dos rendimentos no país, restando aos 90% restantes a divisão da outra metade.

No campo dos indicadores de saúde a desigualdade social brasileira também se faz sentir fortemente. Para além dos problemas de saúde decorrentes das más condições de moradia, transporte e educação que afetam justamente a população mais pobre de nossa sociedade, as diferenças regionais também evidenciam as desigualdades sociais brasileiras. 

Enquanto a mortalidade infantil nos Estados do sul e do sudeste já se encontram em índices abaixo dos 10/1000 nascidos vivos, no norte e nordeste encontramos taxas que figuram ainda acima ou próximas dos 20/1000, notadamente nos Estados do Maranhão, Alagoas, Amapá, Piauí e Rondônia. Vale lembrar aqui que, infelizmente, após 25 anos de redução, o Brasil voltou a registrar nos últimos anos aumento na taxa nacional média de mortalidade infantil, assim como de mortalidade materna. 

As mesmas desigualdades se refletem na expectativa de vida dos brasileiros. Enquanto nos Estados do Sul e Sudeste do país a expectativa de vida já beira os 80 anos, nos Estados do Norte e Nordeste a estimativa de vida ainda está mais próxima dos 70 anos. Desigualdade, no Brasil, se traduz em menos saúde e, inclusive, em menos vida, chegando a quase dez anos de vida de diferença!

Certamente nos encontramos em um momento histórico do país que requer muita atenção e esforços redobrados para não perdermos os ainda tímidos, mas importantes avanços já obtidos no campo da saúde.

Nesse contexto, reforçar o direito à saúde dos brasileiros e aperfeiçoar o Estado brasileiro para que este cuide de forma eficiente e resolutiva das necessidades de saúde no país mostra-se o caminho a ser seguido para que possamos trilhar um desenvolvimento justo, solidário e sustentável.

Os desafios do sistema público universal de saúde brasileiro são muitos, e abrangem, dentre outros, aspectos de sustentabilidade financeira, governança, distribuição de serviços, formação de recursos humanos em saúde, planejamento de políticas públicas, incorporação adequada de novas tecnologias, regulação adequada de bens, produtos e serviços de interesse à saúde, bem como ampliação da democracia sanitária, sobretudo pela via participativa. E tudo isso em um contexto de permanente crise política e econômica, em um país já combalido.

O Direito Sanitário, campo ainda novo na ciência moderna, multidisciplinar por natureza, possui uma responsabilidade social enorme para auxiliar a sociedade brasileira a superar os diversos desafios colocados. Compete aos profissionais do direito, na academia ou nos tribunais, reforçar o conjunto social que busca essa transformação social necessária em nosso país, visando tornar o direito universal à saúde uma realidade vivida por todos os que no Brasil se encontram. 

Com base no princípio da legalidade, cabe ao direito disciplinar, em normas constitucionais, legais e infralegais, todo o processo de formulação, planejamento, execução, financiamento, supervisão e revisão das políticas públicas de saúde. Este aparato normativo, se de um lado define a forma de estruturação do Estado e seu controle jurídico, de outro lado, a depender do tipo de organização, pode se constituir em entrave para a boa execução das políticas, na medida em que consolida ações ineficazes. Essa dinâmica exige uma revisão normativa permanente no campo do direito sanitário, para que se possa aperfeiçoar constantemente as políticas econômicas e sociais para que utilizem os mais avançados e eficazes conhecimentos científicos e tecnológicos em benefício do direito à saúde.

Hoje, mais do que nunca, cidadãos e profissionais do direito que atuam em instituições jurídicas criadas para a defesa e proteção da democracia e dos direitos humanos devem juntar-se para zelar pela proteção do direito à saúde, seja cumprindo, seus respectivos deveres, seja exigindo do Estado o cumprimento deveres constitucionais associados ao direito à saúde, pactuados de forma democrática, transparente e legítima, e traduzidos expressamente em textos legais internacionais e nacionais. 

Modernamente, os indicadores de saúde de uma população indicam, de forma bastante objetiva, o estágio de desenvolvimento de uma sociedade e de um Estado. O direito sanitário, campo da ciência moderna voltado especificamente para garantir o direito à saúde em Estados Democráticos de Direito, possui um papel estratégico para a promoção e proteção do direito à saúde no Brasil e no mundo.

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