Direito e pobreza: reflexões sobre o caso de Mariana

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Há 18 anos constituí na Faculdade de Direito da USP o Grupo Direito e Pobreza (GDP). A minha inquietação de então era a mesma de agora: por que o direito tem dado tão pouco resposta nos últimos séculos a um dos grandes problemas que assola a humanidade, a pobreza e a miséria?

Nesses anos todos no GDP, estudamos desde as razões históricas e coloniais da pobreza no Brasil até problemas contemporâneos de políticas públicas e jurídicas como direito à saúde, acesso a medicamentos, etc. Estudamos também a enorme influência das estruturas econômicas e jurídicas concentradoras de poder (patentes e monopólios) sobre a geração de pobreza e subdesenvolvimento.

Pois bem. Durante esse tempo, observamos que boa parte dos problemas da pobreza vêm, de um lado, da concentração de poder econômico e jurídico. De outro, e talvez como consequência, advém da negação (pelo direito) a muitas pessoas – que não as possuidoras de poder – da atribuição de capacidades. Esse termo, traduzido livremente para evitar o anglicismo de entitlements, cunhado pelo economista Amartya Sen, a quem com justiça foi atribuído o prêmio Nobel de Economia de 1998 exatamente por seus estudos sobre a pobreza, sugeria que a questão da pobreza e da pobreza extrema não vinha exclusivamente ou primordialmente da escassez de bens, mas da impossibilidade de acesso a eles. Em outros termos da incapacidade, econômica ou jurídica, de obtê-los.

A repactuação do caso Mariana, anunciada e homologada há poucas semanas, padece dos mesmos problemas. É uma solução jurídico-econômico-política que de um lado privilegia estruturas concentradas de poder (o oligopólio do setor de mineração) e de outro nega, em absoluto, capacidades aos atingidos, os vulneráveis, as vítimas. Refletindo hoje, nove anos após o maior desastre ambiental da história do nosso país e seis anos após ter iniciado a participar do caso, percebo que a realidade estudada pelo Grupo Direito e Pobreza há quase duas décadas está muito presente nas relações estabelecidas durante e após o desastre entre estruturas econômicas concentradas, criação de pobreza e negação de capacidades.

Sob todos os aspectos às vítimas foi negada capacidade. Em primeiro lugar, capacidade de participação. A mesa de repactuação jamais contou com representantes dos afetados. Com as vítimas não se discutiu a repartição dos valores.

Pior ainda é a negação de capacidades indenizatórias. Para que tenham acesso ao valor (ínfimo, diga-se) das indenizações, os que optarem por aderir ao acordo devem, em contrapartida, renunciar a todos os seus direitos em ações presentes e futuras no Brasil e no exterior contra as empresas causadoras do desastre.

No emaranhado de políticas públicas anunciadas, todas a serem levadas a cabo sem a participação das vítimas e definidas sem o seu consentimento prévio, lhes é negada uma das capacidades mais fundamentais: a de se autodeterminarem através de valores justos de indenização.

Critérios para essas indenizações existem no direito brasileiro. Estes são capazes, mais do que ressarcir danos patrimoniais e morais, de restituir às vítimas as capacidades subtraídas com a destruição da Bacia do Rio Doce (que aliás, nas medidas apresentadas – Anexos 8, 14 e 16 do Acordo de Repactuação – está longe de conter o suficiente para a correta limpeza da lama tóxica que foi depositada em toda a sua extensão)[1]. Mas, ainda mais importante, são critérios capazes de restaurar o direito dos afetados à autodeterminação.

O acordo ignora todos os possíveis critérios que atribuiriam capacidades aquisitivas. Vítimas terão de se contentar em receber R$ 35 mil, renunciando a todos os seus direitos (capacidades presentes e futuras). Essa a imposição das mineradoras para fechar o acordo.

Aí há um problema grave, uma crítica disfunção do sistema de reparação de danos. Indenizações só tem efeito dissuasório, em outras palavras, só tem capacidade de desestimular práticas futuras das empresas responsáveis quando tem impacto estrutural. Elevadas, são capazes de mudar estruturas empresariais. E então retornamos ao outro elemento gerador de pobreza e exclusão mencionado acima, a aversão pelo direito às medidas de efeitos estruturais sobre os centros de poder econômico.

Senão vejamos. Na repactuação, mesmo tomando-se o valor total de montantes novos (R$ 132 bilhões, sendo R$ 100 bilhões em pagamentos diretos) eles serão pagos em 20 anos.

Considerando apenas o valor nominal do acordo, este não se compara a indenizações por desastres ambientais, que tiveram impacto estrutural, como a indenização paga pela BP em consequência do derramamento de óleo no golfo do México no início dos anos 2010.

A conta final dos pagamentos da BP, somando reparações civis, custos de recuperação ambiental e multas superou o valor de U$ 65 bilhões, sendo que apenas U$ 20,8 bilhões foram pagos em acordos pactuados com órgãos públicos. Um deles foi anunciado como o maior acordo firmado por uma única companhia com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos.[2]

Essas quantias, que foram pagas em um horizonte de sete anos entre o acidente e os últimos pagamentos,[3] representariam hoje o valor aproximado de R$ 307 bilhões de reais, considerando a taxa de conversão de dezembro de 2017 e atualização segundo o IPCA. Desastres igualmente devastadores, mas uma quantia incomparavelmente maior que o valor acordado na Repactuação.

Também é incomparável o efeito diverso gerado pelos anúncios desses acordos sobre as ações das empresas. Enquanto as ações da BP desvalorizaram em 6% logo após o anúncio de que a empresa havia sido considerada culpada pelo desastre, o que implicaria no pagamento de U$ 18 bilhões em multas,[4] as ações de BHP e Vale valorizaram após o anúncio da Repactuação.

Para a BHP, suas ações subiram 1.68% no pregão realizado na bolsa de valores da Austrália após a assinatura do acordo de repactuação (28/10/24), enquanto as ações da Vale se valorizaram em 1.92% no pregão realizado pela B3 na data em que a repactuação foi assinada, em 25 de outubro deste ano.

Apenas com os ganhos de capitalização nessas datas, Vale e BHP obtiveram ganhos de aproximadamente R$ 18,85 bilhões, ou seja, mais de 30% do valor presente do total que será despendido com a repactuação.[5]

Isso significa que, no caso brasileiro, a repactuação não terá efeito estrutural relevante para as empresas. Ao revés, é possível dizer que o desastre causado acabou “saindo barato” para as empresas, que, segundo a própria imprensa australiana, fizeram um acordo muito vantajoso para elas mesmas em detrimento das vítimas e das próprias autoridades brasileiras.[6]

Para as vítimas o problema permanece o mesmo. Qualquer pessoa que tenha visitado as áreas degradadas e que tenha ouvido os atingidos conhece bem o tamanho da destruição e da subtração de capacidades causada pelo desastre. Se talvez nenhum valor de reparação possa ser reputado como “justo,” o oferecido às vítimas certamente não o é.

Com a recente e surpreendente absolvição penal de todas as pessoas físicas e empresas envolvidas, o sentimento de injustiça só faz aumentar[7]. A tragédia de Mariana, maior desastre ambiental brasileiro, parece ser um trágico conto sem autor, apenas com vítimas.

E de se esperar que as demandas no exterior relativas ao caso de Mariana continuem, aplicando e espalhando, aqui e no exterior, os conceitos progressistas e protetivos do meio ambiente contidos em nossa legislação e em nossa doutrina e jurisprudência. Em um mundo que parece cada vez mais se fechar em nacionalismos xenófobos e racistas, o Brasil e suas instituições tem que dar o exemplo, espalhando seus conceitos jurídicos progressistas pelo mundo e aceitando e apoiando a convivência e a colaboração recíproca entre demandas no exterior e demandas (e/ou acordos) judiciais por aqui[8]. Ainda mais em um momento em que o Brasil, através do G20, assume protagonismo mundial na luta contra a pobreza.

E que essas demandas (tanto as ainda existentes aqui como as do exterior) possam afinal declarar, e reconhecer a existência de responsáveis pelo desastre, o que para aqueles que sofreram e continuam a sofrer suas consequências é de uma importância imensa. E que possam garantir indenização plena às vítimas. Assim, talvez algum resultado positivo possa surgir deste desastre, de vidas e meio ambiente destruído e capacidades perdidas.

Esse artigo, terminado em 21 de novembro de 2024, data em que meu pai completaria 100 anos, foi feito em sua homenagem e amorosa lembrança.

[1] De resto a falta de reconstituição do bioma do Rio Doce nesses anos todos após a tragédia segue a linha da destruição ambiental causada pela atividade econômica mineradora direcionada ao lucro máximo – v. https://www.brasildefato.com.br/2023/10/19/rios-vivos-nao-sao-uma-ideia-viavel-dentro-de-uma-economia-capitalista-diz-ailton-krenak

[2] Veja-se: DOJ. U.S. and Five Gulf States Reach Historic Settlement with BP to Resolve Civil Lawsuit Over Deepwater Horizon Oil Spill. 5 de outubro de 2015. Disponível em: https://www.justice.gov/opa/pr/us-and-five-gulf-states-reach-historic-settlement-bp-resolve-civil-lawsuit-over-deepwater. Acesso em: 5 de novembro de 2024.

[3] Veja-se: REUTERS. BP Deepwater Horizon costs balloon to $ 65 billion. 16 de janeiro de 2018. Disponível em: https://www.reuters.com/article/world/bp-deepwater-horizon-costs-balloon-to-65-billion-idUSKBN1F50O5/. Acesso em: 5 de novembro de 2024.

[4] Veja-se: NEW ORLEANS SUN. BP found “grossly negligent” in Gulf of Mexico oil spill. 5 de setembro de 2014. Disponível em: https://www.neworleanssun.com/news/225407625/bp-found-grossly-negligent-in-gulf-of-mexico-oil-spill. Acesso em: 5 de novembro de 2024.

[5] Considerando uma taxa esperada de desvalorização do dinheiro (juros) de 5% por 20 anos, o valor presente do acordo de Repactuação pode ser estimado em, aproximadamente, R$ 64 bilhões em obrigações de pagar e R$ 12 bilhões em obrigações de fazer.

[6] Veja-se: FINANCIAL REVIEW. BHP outsmarts the Brazilians – but at what price? 27 de outubro de 2024. Disponível em: https://www.afr.com/companies/mining/bhp-outsmarts-the-brazilians-but-at-what-price-20241027-p5klod#:~:text=BHP%20has%20triumphed%20in%20its,commitment%20to%20fairness%20and%20justice.. Acesso em: 5 de novembro de 2024.

[7]  Cfr. https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2024/11/sentenca-absolvicao-Samarco-Mariana.pdf. Compilando a decisão é possível verificar que para justificar a absolvição das pessoas jurídicas, utilizou-se teoria incompatível com os conceitos mais modernos de direito penal societário, fazendo a responsabilidade da pessoa jurídica depender da existência de crime pelas pessoas físicas (seus representantes ou prepostos) -v. para a diferença entre ambos C. Salomão Filho, O novo direito societário, 3ª edição, São Paulo, Malheiros, 2.006, capítulo XIV, “Responsabilidade penal e conceito de pessoa jurídica”, p. 248 e ss.

[8] Entendo que a tarefa do acadêmico seja divulgar e insistir em suas ideias. Essa última ideia, ventilada nesse parágrafo do texto (sobre nacionalismo e globalização do nosso direito) venho repetindo em artigos sobre o tema nos últimos tempos. Espero sinceramente que a insistência leve a ressonância no Brasil,  para além dos muros da academia e do idealismo dos alunos – v. Nacionalismo jurídico e direito global (com Jose Eduardo Martins Cardozo) in https://www.conjur.com.br/2023-dez-05/nacionalismo-juridico-e-direito-global-licoes-do-caso-ingles-de-mariana/ e Emergência climática e reparação global às vítimas de desastres ambientais in https://search.app/NPP1vfpe5PBUmfPX9

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