Em defesa da uniformização da prescrição das pretensões civis

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Está em curso o trabalho da Comissão de Juristas do Senado para atualização do Código Civil (CC), presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão, que tem promovido debates relevantes para a modernização da regulação da vida civil no Brasil, tendo como norte a elevação dos padrões de segurança jurídica nas relações privadas.

Há consenso na comunidade jurídica de que a prescrição e a decadência são instrumentos de promoção de segurança jurídica, de modo que uma reforma que pretende elevar os respectivos padrões deve dar atenção especial a esses temas.

De modo simplificado, para se viver em um ambiente seguro sob o prisma jurídico, a pessoa deve poder conhecer as normas que regulam as suas situações jurídicas, confiar nas respostas dos poderes constituídos, ter previsibilidade quanto à regulação jurídica, a qual, na maior medida possível deve observar padrões de estabilidade, mesmo em tempos de mudanças sociais aceleradas, impulsionadas por progressos tecnológicos disruptivos.

Neste sentido, doutrina e jurisprudência consubstanciam a ideia de segurança jurídica através de diversos perfis, tais como cognoscibilidade, confiabilidade, previsibilidade (ou calculabilidade) e estabilidade.

A prescrição, isto é, o decurso do tempo como forma de extinção de situações jurídicas e/ou como forma de criação de exceções/defesas não é um fim em si mesmo: trata-se de um meio predisposto a se alcançar a estabilidade das relações jurídicas. E a indicação do lapso temporal aplicável tem a ver com a calculabilidade, indispensável para que as pessoas possam programar de modo seguro as suas relações jurídicas.

As normas prescricionais gozam da vantagem de se expressarem através de números. Como já se disse, as referências numéricas formam os conceitos jurídicos mais determinados da ciência jurídica (Karl Engisch). Por evidente, é mais fácil entender e por conseguinte aplicar uma norma que limita a velocidade de trânsito a 40 km/h do que aplicar uma norma que pune o motorista que conduz de modo negligente. Como ensinam os matemáticos, as expressões numéricas comunicam o mesmo significado para qualquer um que entre em contato com elas.

As vantagens da utilização da linguagem matemática parecem ser inegáveis, pois ela provê uniformidade e univocidade, somadas ao rigor dos seus métodos científicos. Nem sempre os conceitos jurídicos se deixam aprisionar pela linguagem matemática – na verdade, é raro que ocorra.

Entretanto, quando isso acontece, ter-se-á um desperdício retumbante se não for possível colher os frutos positivos dessa utilização. É o caso dos prazos prescricionais, que oferecem oportunidade ímpar para a promoção da segurança jurídica.

Em relação aos prazos de prescrição, duas questões são relevantes sob o prisma prático: o início da fluência do prazo e a identificação do prazo aplicável a cada situação. Dedico-me aqui apenas à segunda questão.

Antes do mais, parece simples a demonstração de que, no plano legislativo, não existem prazos certos ou errados. Na verdade, durante séculos, em muitos lugares considerados avançados, sequer havia prazos prescricionais, muito menos prazos certos. Afirmava-se que um comportamento que tenha sido considerado errado por cem anos não pode ser considerado certo nem por uma hora. Depois foram adotados prazos extensos e o último século assistiu ao encurtamento desses prazos, inclusive no Brasil.

Os estudos de direito comparado evidenciam que não há sequer dois países que adotem rigorosamente os mesmos prazos prescricionais para os mesmos tipos de situações jurídicas. A fixação desses prazos vem seguindo alguma espécie de sensibilidade – quase intuição – do legislador quanto aos prazos que seriam considerados razoáveis ou legítimos, sob influência direta dos interesses dos agentes econômicos.

Para utilizar alguns exemplos europeus, a Alemanha adotara prazos de 6 meses, 2 anos, 4 anos e 10 anos e após uma reforma importante passou a adotar prazos de 3 anos e 30 anos; a legislação da Rússia possui diversos prazos, como 1 ano, 3 anos e 12 anos; a legislação belga possui prazos de 3 meses, 1 ano, 3 anos, 5 anos e 10 anos e a legislação espanhola possui prazos de 1 ano, 2 anos, 3 anos, 5 anos e 15 anos.

Para referir dois sistemas latino-americanos, na legislação reformada da Argentina há prazos de 1 ano, 2 anos, 3 anos, 4 anos e 10 anos, e na legislação civil mexicana há prazos de 2 anos, 5 anos e 10 anos. A não ser que se pretenda sugerir que apenas um legislador acertou e todos os demais erraram, é forçoso reconhecer que realmente não há prazos certos ou errados.

Por outro lado – e esse é o ponto central aqui –, regimes que estabelecem múltiplos prazos aplicáveis para cada tipo de situação jurídica tendem a produzir mais insegurança do que segurança.

Os mesmos estudos de direito comparado revelam a clara tendência legislativa, notadamente no ambiente europeu, à uniformização dos prazos, o que eventualmente esbarra em interesses corporativos e lobbies bem estruturados. Assim é que na Alemanha e na Rússia adotou-se uma espécie de prazo padrão de três anos, mas há situações excepcionadas que podem vir a desnaturar a pretendida uniformização.

Há, então, uma decisão de política legislativa a ser tomada em prol da uniformização ou da diferenciação. A uniformização parece bem mais eficiente sob qualquer prisma que se observe a questão.

Antes do mais, havendo vários prazos potencialmente aplicáveis, a experiência prática ensina que as pessoas tendem a (pelo menos tentar) seguir os menores prazos, ainda e sempre em busca de segurança na prática dos atos da vida civil.

Os mais antigos talvez se recordem da enxurrada de notificações e interpelações distribuídas quando o CC de 2002 completava 3 anos de vigência. Eu tive a oportunidade de distribuir mais de 2 centenas de notificações em pouco mais de 48h, preparadas durante vários meses anteriores. Nem mesmo nós advogados acreditávamos que os prazos prescricionais aplicáveis a todas as situações jurídicas eram de 3 anos. Todavia, não se poderia correr o risco de que a interpretação do Judiciário consagrasse orientação pela aplicação do prazo de 3 anos, ainda mais diante da utilização de conceitos abertos pelas normas prescricionais.

Da mesma forma, a experiência demonstra que as partes nos processos judiciais sempre tentarão valer-se da tese que permita a aplicação do prazo mais conveniente para os seus interesses. Como sói acontecer, credores defenderão a aplicação dos prazos mais longos e devedores defenderão a aplicação dos prazos mais curtos. Isso acontece no processo legislativo e mais explicitamente nos processos judiciais.

Com razão, estudiosos estrangeiros sempre destacam que o estabelecimento dos prazos prescricionais exige o balanceamento adequado entre esses interesses contrapostos. E ressalta com ênfase que, nos países em que a legislação deixa muitas margens para interpretação, surgem longas discussões judiciais.

Pode-se exemplificar, em prol da brevidade, com algumas discussões travadas no STJ sob a vigência do CC de 2002 em torno dos prazos prescricionais maiores ou menores: pretensão para a cobrança de cotas condominiais, pretensão indenizatória decorrente da negativação indevida em cadastros de inadimplentes, pretensão restitutória em relação a reajustes nulos de planos de saúde, pretensão à restituição de valores pagos a título de serviços de corretagem, dentre tantas outras. Sem que se tenha levado a efeito um levantamento exaustivo, considerando as repetições, é lícito afirmar que foram veiculados muitos milhares de recursos veiculando as discussões acerca dos prazos aplicáveis.

Com efeito, todas essas discussões são levadas ao Judiciário e consomem anos, às vezes décadas para serem resolvidas, mesmo com os mais avançados sistemas de formação de precedentes vinculantes. Na verdade, ressalvadas situações excepcionais (de prazos muito curtos), os prazos demoram a ser consumados e, por conseguinte, as discussões demoram a ser judicializadas e demoram a chegar ao STJ e/ou ao STF, de onde virá a última palavra. As discussões sobre prazos que o legislador promulga hoje podem somente ser decididas daqui a dez ou 20 anos, sem contar as oscilações que a jurisprudência ocasionalmente apresenta.

Tome-se aqui como exemplo expressivo a disposição sobre a prescrição das pretensões reparatórias: o STJ levou mais de quinze anos para assentar o entendimento acerca do alcance da expressão reparação civil de uma norma prescricional do CC. Parcela da doutrina especializada sustentara que a distinção entre responsabilidade contratual e extracontratual é tradicional no direito brasileiro, e que essa diferenciação deveria ser refletida nos prazos prescricionais aplicáveis – de novo, seria um reflexo da sensibilidade do legislador e das pressões dos agentes econômicos envolvidos.

Desejo registrar que concordo com a observação autorizada de que, a se optar pela diferenciação, os prazos de direito privado deveriam ser menores do que os prazos de direito público e que os prazos relativos a violações contratuais deveriam ser menores do que os prazos relativos a violações extra-contratuais, porquanto haveria valores diversos a tutelar e os modos de ciência das violações costumam ser diversos também.

Entretanto, essas diferenciações produzem insegurança na aplicação de uma norma que teria tudo para ser unívoca. Como se disse com autoridade, a unificação dos prazos prescricionais das pretensões amparadas em reparação civil por ilícitos extra-contratuais e por inadimplementos contratuais proporcionaria maior coerência ao sistema. Nas palavras do ministro Bellizze do STJ, a tese de unificação dos prazos da responsabilidade civil melhor se adequa aos objetivos de segurança e estabilidade das relações.

Todavia, essa premissa vale não apenas para as hipóteses de reparação, mas para as pretensões civis em geral pois, insista-se, aqui a função da Comissão é de buscar estabelecer as normas mais eficientes e seguras (e não de aplicá-las, o que será feito posteriormente pelo Judiciário).

A uniformização é proposta pelos mais respeitáveis estudos modernos de direito estrangeiro e comparado, onde se afirma de modo peremptório que a prescription regime which is as simple, straightforward and uniform as possible would also be desirable from the perspective of public policy (…) It would therefore be intolerable if the prescription rules themselves could easily give rise to litigation (Reinhard Zimmermann, referido aqui exemplificativamente).

Daí porque parece de todo conveniente uniformizar os prazos prescricionais aplicáveis às relações privadas.

Com este viés de orientação, apresentei proposta de emenda ao Anteprojeto de Reforma do CC no sentido de se estabelecer o prazo prescricional único de cinco anos aplicável a todas as situações jurídicas privadas.

É o mesmo prazo aplicável para outras situações jurídicas privadas de frequente ocorrência na prática jurídica, como sejam relações reguladas pelo Código de Defesa do Consumidor e pelo Estatuto da Advocacia – não é ocioso lembrar que o Brasil tem quase um milhão e meio de advogados e os seus contratos de prestação de serviços são regulados por esta lei.

Demais disso, é o mesmo prazo aplicável em inúmeras situações na seara do Direito Público, seja para o exercício de pretensões pelo Poder Público, seja para o exercício de pretensões em face dele – abrangendo também situações afetadas pela decadência. A uniformidade dos lapsos temporais evita incontáveis discussões quanto a qual seria o prazo aplicável a cada tipo de situação ativa ou passiva titularizada pelo Poder Público.

A utilização do mesmo prazo prescricional nos âmbitos do direito público e do direito privado ainda produz vantagens adicionais, pois além de evitar discussão sobre o regime jurídico aplicável, evitam-se também discussões acerca da competência para decidir sobre o tema, como ocorreu no STJ em relação ao prazo de prescrição aplicável à pretensão à repetição de tarifas de telefonia e outros serviços públicos em face das respectivas concessionárias.

No bojo de várias temáticas tentadoras, como sejam o início da fluência dos prazos, os prazos máximos, os negócios sobre prazos e a superação da diferenciação que reputamos artificial entre prescrição e decadência – temas dos quais abstraímos aqui – os trabalhos de atualização do CC em tema de prescrição fornecem uma oportunidade única para que sejam definitivamente sepultadas discussões intermináveis acerca dos prazos supostamente adequados e, principalmente, acerca do prazo aplicável a cada tipo de pretensão de direito privado.

A adoção de um prazo uniforme de cinco anos para a prescrição das pretensões civis promove segurança jurídica e reduz sensivelmente a litigiosidade em torno da prescrição.

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