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As atividades das muitas empresas estatais brasileiras não se resumem a serviços públicos ou atividades econômicas: há as que desempenham atividades administrativas (típicas da área de TI), as que fazem regulação (como a Cetesb), as de pesquisa (como a Embrapa), as de gestão de bens públicos (como as companhias docas) e outras (como a Ebserh, que gere recursos humanos dos hospitais universitários federais).
A realidade expõe complexidade que transcende a classificação utilizada pela doutrina e adotada pelo STF, que não tem respaldo sólido no direito positivo e não é suficiente para justificar a existência de regimes jurídicos distintos para essas empresas.
A dicotomia histórica foi criada pela doutrina e utilizada pelo STF para atribuir privilégios a certas estatais, como imunidade tributária e aplicação do regime de precatórios. Mas a Lei das Estatais estabeleceu tratamento homogêneo para todas elas, sem distinção baseada na atividade desempenhada. Na prática, a própria administração pública federal adota outros critérios (baseados no controle acionário, na dependência do Tesouro e no setor de atuação), ignorando a dicotomia.
Um dos principais argumentos constitucionais para a dicotomia é a interpretação do § 1º do art. 173 da CF. Segundo essa visão, estatais exploradoras de atividades econômicas deveriam se submeter ao regime de direito privado para garantir a justa competição. Já as prestadoras de serviços públicos estariam abrangidas pelo art. 175, permitindo-lhes privilégios típicos da administração direta. Mas sustentar essa distinção a partir da CF importa em superar a literalidade das normas, além do próprio título do capítulo em que ambos os dispositivos estão inseridos: “Da Ordem Econômica e Financeira”. Ambas são empresas privadas.
A jurisprudência do STF tem sido inconsistente e casuística. Em vários casos, o tribunal utilizou a natureza da atividade exercida pela estatal para definir seu regime jurídico, levando a decisões imprevisíveis e muitas vezes contraditórias, como no caso do Metrô-DF, que inicialmente não foi beneficiado pelo regime de precatórios, mas decisão posterior reconheceu esse benefício com base nos argumentos de não concorrência e ausência de fins lucrativos.
Uma mesma empresa estatal pode combinar prestação de serviços públicos e atividades econômicas, tornando a dicotomia ainda mais artificial. Sabesp e os Correios, por exemplo, prestam serviços públicos e, ao mesmo tempo, buscam lucro. A aplicação da imunidade tributária recíproca para os Correios e a negação do mesmo benefício para a Sabesp evidenciam a falta de clareza e a arbitrariedade da aplicação da dicotomia.
A Lei das Estatais busca garantir regras de gestão e governança mais eficientes para todas as empresas estatais, independentemente de suas atividades. A opção legislativa por um regime menos rígido e burocrático, com menor interferência política, visa aumentar a eficiência na oferta de serviços à sociedade. Mas a adoção de critérios casuísticos, em desconsideração à lei, perpetua regime jurídico fragmentado e imprevisível.
Nosso argumento é que a dicotomia entre empresas estatais prestadoras de serviços públicos e exploradoras de atividades econômicas não tem base sólida no direito positivo e gera insegurança jurídica. A resistência do STF à unificação, com aplicação de critérios inconsistentes que não promovem necessariamente a eficiência ou a melhoria dos serviços públicos, não contribui em termos de organização da administração pública e para o desenvolvimento econômico do país.[1]
[1] O argumento foi desenvolvido em MONTEIRO, Vera; ROCHA, Jolivê. Empresas estatais prestadoras de serviços públicos versus exploradoras de atividades econômicas: uma dicotomia que não tem respaldo no direito positivo. In: PINTO JR., Mario Engler; MASTROBUONO, Cristina M. Wagner; MEGNA, Bruno Lopes (Org.), Empresas estatais. Regime jurídico e experiência prática na vigência da Lei 13.303/2016, São Paulo: Almedina, 2022, p. 331-355.