Entidades reagem à resolução do CFM sobre aborto

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Sem debate com a sociedade científica, sem aviso e sem reunir dados relevantes, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou esta semana uma resolução que inviabiliza para muitas mulheres um direito garantido há 84 anos: a interrupção da gravidez nos casos de gestação resultante de estupro ou quando oferece risco de vida.

A resolução impede que médicos se valham de uma técnica considerada essencial para tornar mais segura a interrupção quando a gravidez está em estágio mais avançado, a assistolia fetal. Sob o argumento de que o procedimento representava o “feticídio”, integrantes do conselho dizem que esse recurso poderia ser usado apenas até a 22ª semana de gestação.

Diante da proibição do uso do recurso que poderia trazer mais segurança para a mulher, dificilmente profissionais vão se dispor a fazer a interrupção em casos de gestação mais avançada.

Em outras palavras, com uma canetada, médicos que se reúnem na nova e luxuosa sede do Conselho Federal de Medicina, em Brasília, ampliam as dificuldades de mulheres e meninas que já passam por um enorme sofrimento.

Quem são essas mulheres que buscam a interrupção já num momento mais avançado da gravidez? Os números de violência contra meninas estão aí. Sabemos o quanto é comum meninas serem violentadas dentro de casa, por parentes ou conhecidos. Essas vítimas geralmente tardam a ter a gravidez identificada. Mais difícil ainda para esse grupo ter acesso a um atendimento adequado.

O número de serviços de aborto legal no país é escasso e são incontáveis os profissionais que alegam objeção de consciência para se recusar a fazer o procedimento.

Representante no Brasil da Rede Médica pelo Direito de Decidir, Cristião Rosas, afirma que, dos 5.570 municípios do país, apenas 200 trazem serviços que atendem mulheres vítimas de estupro ou com gestação que coloca a vida sob risco. Os centros estão localizados geralmente em áreas mais ricas. Quanto menos serviços, quanto piores as condições, mais dificuldades as meninas e mulheres de regiões afastadas enfrentam para terem acesso em tempo hábil a um serviço para ver assegurado o direito.

“Essa é uma norma equivocada, é uma afronta aos direitos humanos. O status fetal não pode estar acima do direito das mulheres”, afirmou Rosas ao JOTA.

A entidade divulgou uma nota contrária à medida. “Há um desrespeito à lei, que é de 1940. Em nenhum momento a lei traz limites para a realização do procedimento”, observa o médico Rosas. Em defesa, o  CFM argumenta que quando a lei foi redigida, essa técnica não havia sido criada.

O Centro Brasileiro de Estudos da Saúde também se manifestou contrariamente à medida e publicou um comunicado sobre o tema. Novas manifestações de repúdio são esperadas. O tema também deve ser discutido na Justiça.

O Ministério da Saúde ainda não se manifestou. Há grande expectativa em relação ao posicionamento da pasta, que, no mês passado, retirou uma nota técnica sobre o tema justamente para garantir o direito de mulheres fazerem a interrupção, independentemente do período da gestação.

A nota foi retirada logo depois de uma reação de alas ultraconservadoras, mas sob a justificativa de que um debate maior deveria ser realizado dentro do próprio ministério.

O recuo do Ministério da Saúde, na ocasião, foi visto com surpresa, sobretudo por quem acompanhou as declarações desde o período de transição relacionadas ao tema. Já havia a disposição de se rever normas editadas durante o governo anterior, que dificultavam o acesso ao aborto legal.

Neste meio tempo, o CFM editou a resolução. A atitude deste colegiado, contudo, não espanta. Desde o período da pandemia, a autarquia se destaca pela edição de medidas controversas, elogiadas por grupos de ultradireita mas descoladas do que diz a ciência.

A autarquia, por exemplo, nada fez diante da indicação incorreta de medicamentos que comprovadamente eram ineficazes contra a Covid-19, sob o argumento de que respeitava a autonomia do profissional. O CFM também manteve-se em silêncio no momento em que era indispensável a adoção do uso de medidas não farmacológicas, como o uso de máscaras e distanciamento físico. Em 2022,  o conselho editou uma resolução, logo depois retirada diante das críticas, limitando o uso de canabinoides. 

Rosas observa que o ideal seria que a mulher que deseja se submeter à interrupção da gravidez nos casos previstos em lei tenha atendimento rápido, algo que pode ser feito mediante telemedicina e prescrição de medicamentos indicados ou uso de técnicas específicas.

A realização do procedimento de forma mais rápida seria ideal para a mulher. Mas isso não significa que a prática deve ser limitada até 22 semanas. “Há uma grande confusão com aborto espontâneo e o aborto induzido. A própria descrição da técnica do aborto não faz menção a período da gestação.”

Ainda segundo Rosas, os números internacionais mostram que a interrupção da gravidez em estágios mais avançados não é praxe. Há sempre a preferência de se realizar o procedimento no início da gestação. O direito, contudo, deve ser assegurado. Retirar essa possibilidade é impor mais um sofrimento a mulheres e meninas em maior estado de vulnerabilidade e um retrocesso diante de uma lei editada ainda no século passado.

O argumento de que a discussão de aborto não é política, mas uma questão de saúde pública, é antigo. Mas o que se vê é que a aplicação desta máxima está cada dia mais distante. Seria muito importante que a razão, a ciência e o respeito aos direitos humanos voltassem a prevalecer.

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