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No final de 2023, circulou um vídeo pelas redes sociais expondo juíza do trabalho que destratara uma testemunha que a chamou de “doutora” em vez de “Excelência”. No registro audiovisual da audiência judicial, a testemunha é humilhada com gritos da magistrada.
Antes, em novembro de 2019, também ficou famosa a sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) em que o então ministro Marco Aurélio Mello repreendeu dois advogados por utilizarem o termo “vocês” na tribuna. Segundo foi reportado, um dos causídicos teria clamado que “o pedido que estou fazendo aqui para vocês, Excelências, ele nunca foi tão eloquente como…”, o que gerou indignação por parte do ex-ministro, que cobrou o uso do pronome de tratamento adequado a seu cargo (“Vossa Excelência”). Na sequência, noutro julgamento, uma advogada cometeu o mesmo “equívoco”, expressando que “queria confessar aqui para vocês que nessa causa se discute a ausência de cumprimento…”. O ex-ministro se enfureceu. Há de se observar a liturgia! – exclamou Mello.[1]
Os episódios acima citados quiçá já se repetiram em contextos distintos Brasil afora. As gerações mais antigas já devem ter testemunhado, aqui e acolá, cenas cotidianas em que profissionais exigem respeito à “dignidade” de seus cargos, funções, posições ou profissões, dignidade essa que demandaria o uso de pronomes de tratamento como “Doutor” (ou “Doutora”) e “Vossa Excelência”.
Na comunidade jurídica, tal formalismo agora parece contrastar com iniciativas do Poder Judiciário no sentido de aproximar o cidadão por meio de vocabulário mais simples. Em especial, referimo-nos à louvável campanha do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça em favor de um “Pacto Nacional pela Linguagem Simples no Judiciário”.[2]
O objetivo do esforço capitaneado pela cúpula do Poder Judiciário parece ser o de modificar a cultura jurídica nacional, a qual valoriza mais as barreiras dos que as pontes de interlocução. Contudo, é lícito indagar: basta tornar mais simples o vocabulário nas decisões judiciais para aproximar o cidadão? Este se sentirá realmente acolhido pelo Poder Judiciário (e pelas demais instituições) se há tantos sinais culturais e de comunicação que reforçam, em verdade, o alijamento do indivíduo comum?
Em verdade, a problemática aqui trazida não é exclusividade dos profissionais do Direito ou mesmo da cultura brasileira. Nos Estados Unidos, em 2022, foi divulgado o resultado de uma pesquisa que apontou que, naquele país, conquanto cada vez mais médicos aceitem serem chamados pelo prenome, grande parte deles ainda prefere ser chamada de doutor(a) (“PhD”); uma das razões para isso seria que, chamando pelo primeiro nome, o paciente sentir-se-ia mais confortável, facilitando seu acesso ao médico e aumentando a carga de trabalho deste, o que significaria uma “desvalorização do tempo” do profissional. Tal “problema” afetaria mais as médicas do que os médicos, já que as mulheres são menos chamadas por “doutora” do que os homens por “doutor” (ou ambos por PhD, em realidade).[3]
Saliente-se também que esse fenômeno de demandar o tratamento como doutor e doutora alcança outras profissões – tanto no Brasil quanto alhures. Em 2018, no Reino Unido, gerou-se uma polêmica quando uma historiadora (que se doutorou pela King’s College London) tuitou que preferia ser chamada de doutora e não de senhora ou senhorita (“Ms.” ou “Miss”).[4] Enquanto muitos acusavam a historiadora de falta de humildade, outros apontavam para um possível sexismo das críticas contra a profissional.
No Brasil, país conhecido por ser mais informal no trato pessoal, esperava-se que o apego aos pronomes de tratamento fosse menor. Esse, porém, parece não ser o caso. A experiência mostra que muitos bacharéis, advogados, médicos e outros profissionais ainda fazem questão de serem identificados como doutores.
Muitas exceções surgiram, porém, entre as gerações mais jovens, abertas a uma forma mais igualitária de convivência social. Em 2019, a BBC publicou matéria com médicos e operadores do Direito brasileiros, identificando as razões expostas por vários pelas quais estes renunciavam ao tratamento formal (de doutor e doutora). Entre outros motivos, os entrevistados justificaram que o uso da palavra em questão gera uma percepção de hierarquia e distância, o que seria prejudicial à conexão e comunicação entre o profissional e o leigo.[5]
Mesmo com os louváveis posicionamentos e iniciativas antes citados, o populário brasileiro ainda registra, como norma social, a referência ao “dotô” nos semáforos, estacionamentos e outros lugares públicos, geralmente articulados por parte de pessoas mais pobres que se dirigem a quem manifesta alto padrão socioeconômico. A linguagem das ruas denuncia o que parece estar por trás de tantos pronomes de tratamento: a criação de distinções, a separação de pessoas por supostos níveis distintos de dignidade.
É verdade que, quando chamamos alguém de doutor ou Excelência, também o fazemos pensando no respeito que temos pela pessoa em questão. De fato, em diversas situações, não sabemos como a pessoa com autoridade ou distinção prefere ser chamada; nesses casos, para evitar algum desentendimento, embaraço ou percepção de desrespeito, lançamos mão do tratamento formal. Igualmente usamos a formalidade verbal quando queremos estabelecer alguma distância da pessoa, para não deixar “abertura”, como forma de autoproteção. Desse modo, não posso deixar de perceber que há motivos legítimos para o uso, pelo locutor, do tratamento formal para com o interlocutor.
A polêmica surge, contudo, quando é o interlocutor que exige, por questão de “respeito” a sua posição, a sua “dignidade”, que seja tratado com o máximo formalismo. Não se pode afirmar que essa exigência seja indevida, mas é certo que será levantada, nessa situação, uma barreira de convivência e comunicação. O que é preciso é ter-se reflexão sobre o que se almeja: aprofundar a interação interpessoal ou reforçar o distanciamento pelo status social.
A generalização, no contexto social, desses usos formais de distinção de tratamento tem o efeito (seja consciente, seja inconsciente) de impor uma aparência de distinção de valor, de desequilíbrio de importância dos seres humanos a depender de suas posições sociais e profissionais. Reforça-se, na simbologia linguística, a desigualdade de valor de cada pessoa. Contraria-se, assim, a ideia republicana e humanista da dignidade, que supõe (ou pressupõe) a identidade de valor de todos os sujeitos da espécie humana. Por tão desprezada a noção de valor igual e absoluto na vida real, a dignidade humana, prevista como fundamento de nossa ordem constitucional[6], termina por funcionar como mera ficção. Finge-se que todas as pessoas têm o mesmo valor, mas, na prática, umas terminam por valer mais do que as outras.
Registre-se, ademais, que não são somente os pronomes de tratamento (doutor, Excelência etc.) que demonstram essa suposta superioridade de uns e inferioridade de outros, mas também as vestimentas (as batas brancas, os ternos, as gravatas, as vestimentas exigidas…), os elevadores reservados (em alguns órgãos públicos e tribunais, há ascensores exclusivos para algumas autoridades), os carros oficiais (com suas placas distintivas), os bótons de órgãos e poderes públicos e muitos outros signos de hierarquia social. Em todos os espaços, a mensagem que se transmite ao público geral é a da existência de estamentos em que o valor da pessoa humana varia a depender de sua posição na pirâmide social.
A julgar pelos hábitos de nossa cultura linguística e semiótica, pode-se concluir que o Brasil (igual a muitos outros países, é verdade) nunca chegou a ser verdadeiramente uma república. Ainda nos comportamos como se estivéssemos nos tempos feudais e monárquicos, numa aristocracia (não no sentido socrático e platônico, mas no sentido político moderno), com seus barões, marqueses, duques, condes e viscondes. E não há linguagem simples que desconstrua essa desafortunada realidade.
[1]Ver notícia em: <https://oglobo.globo.com/epoca/carolina-brigido/marco-aurelio-em-defesa-da-liturgia-ministro-do-stf-vossa-excelencia-1-24067202>. Data de acesso: 31.3.2024.
[2]Ver notícia em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=521404&ori=1>. Data de acesso: 31.3.2024.
[3]Ver estudo e notícia em: <https://jamanetwork.com/journals/jamanetworkopen/fullarticle/2797039> e <https://portugues.medscape.com/verartigo/6508935?form=fpf>. Data de acesso: 31.3.2024.
[4]Ver notícia em: <https://www.bbc.com/news/uk-44496876>. Data de acesso: 31.3.2024.
[5]Ver notícia em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50396347#:~:text=%22Doutor%20%C3%A9%20quem%20tem%20doutorado,que%20afasta%20m%C3%A9dico%20e%20paciente.>. Data de acesso: 31.3.2024.
[6]Ver artigo 1º, III, da Constituição da República.