‘Gamificação’ ameaça o trabalho dos procuradores

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Nos meandros do sistema judiciário, os advogados públicos, em especial os procuradores do Estado de São Paulo, enfrentam um desafio peculiar e desgastante: a “gamificação” da atividade jurídica.

Esse termo, inspirado na estrutura de jogos, descreve uma realidade em que os profissionais são submersos em uma avalanche de processos, cujo cotidiano se resume a uma corrida contra o tempo, uma busca desesperada pelo cumprimento de prazos, com a utilização mais do mouse do que teclado do computador, relegando a análise criteriosa e estratégica a um segundo plano, sem espaço para uma verdadeira advocacia.

Em São Paulo, esse cenário se manifesta de forma gritante. Os procuradores do Estado, frequentemente, se veem afogados em milhares de processos, cada qual uma peça de um quebra-cabeça massivo e desordenado. A análise aprofundada dos casos é substituída pela aplicação de modelos pré-estabelecidos, resultando em defesas genéricas e despersonalizadas que, muitas vezes, passam ao largo da verdadeira resolução dos litígios.

O cerne do problema reside na ausência de uma carreira de apoio, privando esses profissionais do suporte essencial para uma atuação eficiente e meticulosa. São 783 procuradores (65% do quadro de 1.203) e apenas 606 servidores administrativos que não exercem apoio técnico aos procuradores, pois trabalham em atividades meio da instituição (RH, compras etc.). Inexistem na Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo cargos de assistentes ou auxiliares jurídicos.

Esse é o quadro da PGE-SP, responsável pela cobrança de mais de R$ 400 bilhões em dívida ativa, acompanhamento de 959 mil execuções fiscais e a defesa do Estado em mais de 1 milhão de processos judiciais.

A PGE-SP exerce, nos processos mais vultuosos – ações perante os Tribunais Superiores e na Consultoria Jurídica do Poder Executivo –, um trabalho de excelência, com resultados visíveis e aplaudidos pela sociedade paulista. Afinal, apenas em 2022 foram emitidos mais de 14 mil pareceres, arrecadados quase R$ 4 bilhões em dívida ativa e alcançadas inúmeras vitórias viabilizadoras da implementação de políticas públicas do Estado.

Mas, nas demandas de massa, que são aquelas com origens comuns e repetitivas, a falta de tempo e de recursos adequados impede a formulação de estratégias jurídico-processuais capazes de enfrentar de forma eficaz a litigiosidade que cresce exponencialmente.

A defesa do Estado, muitas vezes, se resume a uma mera formalidade, incapaz de enfrentar os desafios complexos que permeiam o sistema judicial contemporâneo. Essa abordagem superficial não apenas prejudica os interesses do Estado, mas também retroalimenta a crescente judicialização, sobrecarregando ainda mais um sistema já saturado.

Mais alarmante ainda é a perda de oportunidades para a aplicação de modernas técnicas de resolução de conflitos. Em um contexto em que a conciliação e a mediação são cada vez mais valorizadas, a “gamificação” da advocacia pública relega tais abordagens a um segundo plano, perpetuando uma cultura de litigância desnecessária e onerosa para todas as partes envolvidas.

Urge, portanto, uma reflexão profunda e uma ação imediata para reverter esse quadro. É imperativo que sejam implementadas medidas que garantam aos procuradores do Estado de São Paulo as condições necessárias para exercerem plenamente suas funções. Isso inclui a criação de uma carreira de apoio sólida, o investimento em tecnologia e infraestrutura adequadas e o estabelecimento de políticas que valorizem a análise individualizada e estratégica dos casos.

Somente assim poderemos romper com a “gamificação” da advocacia pública e promover uma atuação mais eficaz, justa e alinhada com os anseios da sociedade contemporânea.

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