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As sazonalidades da atividade rural não são surpresa para ninguém. Quem atua no setor sabe que as culturas apresentam ciclos de alta e de baixa de preços, em função de problemas climáticos, retração ou expansão da demanda ou qualquer outro evento que impacte os preços da produção no cenário global. Assim, preparar-se nos tempos de bonança para os períodos de dificuldades é fundamental para a condução, a boa gestão e, principalmente, a perenidade e sustentabilidade dos agronegócios.
Em um momento de ligeira tensão no setor, algumas medidas de mitigação de riscos têm sido implementadas. No final de março, o Conselho Monetário Nacional (CMN) autorizou as instituições financeiras a renegociarem até 100% dos débitos decorrentes de operação de crédito rural. Essa medida abrange os produtores de soja e milho e o segmento de bovinocultura de carne e leite, nas regiões brasileiras mais afetadas por intempéries climáticas e onde as quedas de preço foram mais acentuadas. Uma medida emergencial que visa conceder maior fôlego à parcela de produtores rurais.
Tal medida, embora excepcional e pontual, também mira os produtores que, por desespero, desconhecimento ou esperteza, estão buscando soluções heterodoxas e, na maior parte dos casos, inadequadas para a mitigação de riscos e contenção de perdas. Há casos em que produtores rurais estão se valendo da suspensão e renegociação forçada de dívidas através do instituto da recuperação judicial. Esse remédio amargo, muito útil em determinadas situações, pode se tornar um perigoso veneno quando utilizado desnecessária ou inadequadamente.
A recuperação judicial é regrada, no Brasil, pela Lei 11.105/2005. Através da edição da Lei 14.112/2020, o produtor rural pessoa física passou, também, a ser elegível ao pedido de recuperação judicial, desde que cumpra determinados requisitos: esteja inscrito na Junta Comercial e comprove atuação regular há, ao menos, dois anos, indicados através do Livro Caixa Digital, da Declaração de Ajuste Anual do Imposto sobre a Renda ou de balanço patrimonial. Importante destacar, também, a possibilidade da apresentação do plano especial de RJ, cujo rito é mais simples e que dispensa a aprovação prévia em assembleia de credores.
Tal medida é muito útil para a economia como um todo, pois permite ao empresário – no caso, o produtor rural – a renegociação de dívidas, visando a recuperação da capacidade de pagamento e, consequentemente, preservando a empresa, os empregos por ela gerados e o pagamento de tributos para o Poder Público. Mais do que um negócio, uma empresa ou uma atividade profissional movimentam a economia, geram postos de trabalho e renda e mantém viva a atividade produtiva e econômica do país, num ciclo virtuoso que gera benefícios para todos.
Nesse sentido, o instituto da RJ possibilita que negócios em dificuldade vislumbrem a possibilidade de continuidade, e aos credores, mantêm viva a esperança de receberem os valores que são seus por direito, ainda que com algum desconto – é melhor receber menos do que receber nada, em determinadas situações. Assim, quando bem empregada, a RJ possui especial relevância para a atividade econômica, para o mercado e para os empreendedores em geral.
Ocorre que, quando utilizada de maneira incorreta ou inadequada, a RJ pode mais prejudicar do que favorecer a recuperação do empresário do campo. A eventual aceitação, pelo Poder Judiciário, de um pedido desnecessário, única e exclusivamente para postergar o cumprimento de obrigações financeiras em função de má-gestão ou como oportunidade de financiamento indireto do negócio e seus sócios através da suspensão de pagamentos, pode conferir um alívio momentâneo para as dívidas de curto e médio prazos do produtor rural, porém prejudicam a perenidade do negócio no longo prazo, em total contrassenso ao espírito da lei da recuperação judicial.
Isto porque, no futuro, as negociações do produtor rural que utilizou indevidamente o instituto da RJ podem envolver, com os credores, taxas mais caras de crédito, elevando de maneira perigosa o custo do capital, ou podem simplesmente fechar a torneira do financiamento para esse produtor em determinadas instituições financeiras e cooperativas que se sentiram lesadas ou que sabem do histórico de mau pagador do produtor, sufocando ou até inviabilizando o negócio agropecuário. Um risco tremendo para uma atividade que, no geral, demanda alto investimento e necessita de recursos de terceiros para se manter viável.
Nesse sentido, o próprio Ministério da Agricultura e Pecuária já alertou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no sentido de que seja garantido o cumprimento das regras que preservam da RJ as Cédulas de Produto Rural (CPR), as alienações fiduciárias e os contratos decorrentes de atos cooperativos. Eventuais descumprimentos a essas regras, que, infelizmente, já vêm sendo observados Brasil afora, prejudicam os produtores rurais em futuras negociações com financiadores privados, enfraquecem o importante instituto da RJ e causam instabilidade sistêmica e encarecimento do crédito para toda a cadeia de produtores rurais do Brasil.
Ademais, as importantes alterações efetivadas na Lei de RJ e Falências pela Lei 14.112/2020 já correm o risco de serem revistas, poucos anos após sua implementação, dados os variados abusos cometidos em processos de recuperação de negócios no país, o que eleva a insegurança jurídica no campo e no Brasil e força a movimentação desnecessária da máquina estatal para lidar com pedidos indevidos e a correção de excessos na letra da recente legislação sobre o assunto.
Vale ressaltar, contudo, que o que se busca não é criticar de forma generalizada a utilização da via da RJ para produtores rurais. Em alguns casos, é a única opção para profissionais que erraram a mão na esperança de acertar e querem regularizar a situação o mais rápido possível. O que se combate é a utilização indevida do instituto da RJ como planejamento financeiro ou como mero instrumento de postergação de prazo para cumprimento de obrigações de natureza financeira quando há condições para esse pagamento. Esse uso indevido do instituto gera consequências para todos os produtores rurais e turva o relacionamento desse público com as instituições financeiras e cooperativas de crédito, já que, em futuras negociações, parte-se do princípio de que há risco de descumprimento contratual, encarecendo o custo de capital e gerando desconfiança prévia entre as partes.
Assim, nesse cenário, ficam algumas observações: a gestão de riscos, especialmente os de natureza financeira, é fundamental para a saúde e perenidade dos agronegócios; a utilização indevida do instituto da recuperação judicial prejudica diretamente o produtor rural e, indiretamente, toda a cadeia produtiva, já que resulta em maior insegurança jurídica e encarecimento do crédito; e não há solução mágica para má gestão dos negócios e das finanças no campo, independentemente dos fatores externos, razão pela qual não se deve acreditar em falsas promessas de recuperação rápida ou em oportunidades imperdíveis de renegociação de dívidas – todas têm consequências sistêmicas sérias. Pense nas próximas safras.