(Im)possibilidade de múltiplas interrupções da prescrição nos Tribunais de Contas

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O Supremo Tribunal Federal, em recentes decisões, vem reconhecendo a prescritibilidade da pretensão de ressarcimento de dano ao erário a ser exercida pelo Tribunal de Contas em processo de controle externo da gestão pública (ADIs 5509/CE e 5384/MG).

Diante da ausência de lei tratando especificamente do tema, o STF tem aplicado o regime de prescrição previsto na Lei 9.873/99, sob o fundamento de que a “atividade de controle externo equipara-se, para fins de contagem do prazo prescricional, ao poder de polícia do Estado” (ADI 5509).

Neste sentido, as pretensões ressarcitória e punitiva no âmbito do Tribunal de Contas ficam sujeitas ao prazo prescricional de 5 (cinco) anos definido no art. 1º da Lei 9.873/99, bem como às causas legais de interrupção previstas no art. 2º do referido diploma legal.

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Após a consolidação da nova orientação jurisprudencial, o Tribunal de Contas da União (TCU)  editou a Resolução 344/2022, regulamentando a prescrição com base nas disposições da Lei 9.873/99. Diversos Tribunais de Contas de entes subnacionais seguiram o mesmo caminho.

A despeito do esforço das Cortes de Contas em aprovar atos regulamentares com o objetivo de aumentar a segurança jurídica na aplicação do instituto da prescrição, há questões que têm suscitado intensa controvérsia.

Um dos pontos de maior dissenso interpretativo diz respeito à (im)possibilidade de múltiplas interrupções do prazo de prescrição, tendo em vista o regime definido no art. 2º da Lei 9.873/99.

É possível identificar duas correntes interpretativas prevalecentes na jurisprudência, que adotam posicionamentos radicalmente opostos, e uma terceira possibilidade de interpretação que parece ser a mais acertada.

Da possibilidade de múltiplas interrupções por uma mesma causa legal

A Resolução 344/2022 do TCU adota o posicionamento de que a “prescrição pode se interromper mais de uma vez por causas distintas ou por uma mesma causa desde que, por sua natureza, essa causa seja repetível no curso do processo” (art. 5º, § 1º).

A mesma orientação interpretativa vem sendo adotada em diversas decisões da 1ª Turma do STF (MS 38.232, MS 37847, MS 36905, dentre outros).

Sucede que, ao admitir que uma mesma causa interruptiva incida múltiplas vezes em relação a um mesmo fato, tal interpretação acaba por conduzir, potencial e veladamente, a situações de imprescritibilidade, tendo em vista a possibilidade de interrupções indefinidas e ilimitadas do prazo prescricional. Subverte-se, assim, o instituto da prescrição e a norma-princípio que lhe fundamenta (segurança jurídica), contrariando a essência do sentido normativo que o próprio STF atribuiu ao art. 37, §5º, parte final, da CF.

Além disso, a interpretação merece crítica por possibilitar, em desarrazoada medida, o controle da fluência do prazo prescricional pelos órgãos estatais incumbidos do exercício da pretensão, permitindo que atos por estes praticados possam ensejar sucessivas e indefinidas renovações do prazo de prescrição em relação a uma mesma irregularidade.

Embora se reconheça o indiscutível interesse público na recomposição do patrimônio público lesado, bem como na aplicação de sanções aos agentes que atuem em desconformidade com os padrões de conduta normativamente exigidos, o exercício das pretensões estatais (ressarcitória e punitiva) deve se sujeitar a um limite temporal claro e definido, por imperativo de previsibilidade e de estabilidade das relações jurídicas, ressalvadas as excepcionais hipóteses de imprescritibilidade previstas no texto constitucional.

Da incidência do “Princípio da unicidade da interrupção prescricional”

Em sentido diametralmente oposto, a 2ª Turma do STF vem adotando, em recentes decisões, o entendimento de que o prazo de prescrição para o exercício das pretensões punitiva e ressarcitória pelos Tribunais de Contas somente pode ser interrompido uma única vez, tendo em vista a incidência do “princípio da unicidade da interrupção prescricional”, previsto no art. 202, caput, do Código Civil.

A interrupção da prescrição apenas ocorreria, de acordo com precedentes que adotam esta orientação interpretativa, com a citação do responsável acerca da conduta ilícita que lhe é individualmente imputada (MS 37941, MS 38627 AgR, e MS 38223 AgR).

Ocorre que, ao reconhecer a citação do responsável como única causa de interrupção do prazo prescricional, referida interpretação acaba por esvaziar a eficácia dos dispositivos da Lei 9.873/99 que preveem outras causas interruptivas (art. 2º, II, III e IV). Contraria-se, assim, o clássico brocardo hermenêutico segundo o qual não se pode atribuir ao enunciado normativo interpretado um sentido que subtraia por completo a sua eficácia, ou, em outros termos, não se pode presumir na lei palavras inúteis (verba cum effectu sunt accipienda).

De fato, se a prescrição pode ser interrompida uma única vez, e apenas com a citação do responsável acerca da conduta ilícita que lhe é atribuída, os atos apuratórios anteriormente praticados pelos órgãos do sistema de controle, no sentido de confirmar a materialidade e identificar a autoria da infração (pressuposto para a citação do responsável), jamais incidiriam como causa interruptiva do prazo prescricional, tornando letra morta o enunciado normativo previsto no art. 2º, II, da Lei 9.873/99.

De igual modo, a decisão condenatória recorrível (art. 2º, III, da citada lei) em nenhuma hipótese incidiria como causa interruptiva da prescrição, tendo em vista a interrupção anteriormente operada pela imprescindível citação do agente responsabilizado.

Trata-se, pois, de exegese incompatível com o modelo normativo de incidência de múltiplas causas interruptivas adotado pela Lei 9.873/99.

Este modelo, aliás, não é novidade em nosso ordenamento jurídico. O Código Penal, por exemplo, prevê diversas causas interruptivas da prescrição (art. 117) cuja incidência ocorre de modo sucessivo, renovando mais de uma vez o prazo prescricional para o exercício da pretensão punitiva estatal em relação a uma mesma infração.

Não se afigura hermeneuticamente adequada, portanto, a invocação de norma de direito privado (art. 202, caput, do Código Civil) para subsidiar interpretação inconciliável com o regramento de direito público (Lei 9.873/99) que o STF entende aplicável às pretensões exercidas pelos Tribunais de Contas.

Da interrupção única do prazo prescricional por cada causa legal

Outra possibilidade interpretativa é a de considerar que a interrupção da prescrição somente pode ocorrer uma única vez por cada causa legal.

Por esta linha de compreensão, o prazo de prescrição, uma vez iniciado, seria interrompido por qualquer ato inequívoco de apuração do fato (art. 2º, II, da Lei 9.873/99), assim entendido aquele que deflagrar a apuração da irregularidade no âmbito do sistema de controle da gestão pública, rompendo a inércia estatal. Os atos apuratórios posteriores, por representarem mero desdobramento de uma investigação já iniciada, não teriam o condão de gerar novas (e sucessivas) interrupções do prazo prescricional.

O Tribunal de Contas teria, portanto, cinco anos após o início da apuração do fato para identificar todos os responsáveis, individualizar as respectivas condutas e promover as citações para o exercício do contraditório. Com a citação ocorreria nova interrupção da prescrição (art. 2º, I, da Lei 9.873/99).

Por fim, o prazo de prescrição sofreria mais uma interrupção pela decisão condenatória recorrível proferida pelo Tribunal de Contas (art. 2º, III, da Lei 9.873/99), havendo, também, a possibilidade de renovação do fluxo prazal por qualquer ato inequívoco que importe em manifestação expressa de tentativa de solução conciliatória (art. 2º, IV, da Lei 9.873/99).

Trata-se, a nosso sentir, da solução interpretativa mais adequada, porquanto preserva o modelo de incidência de múltiplas causas interruptivas previsto na Lei 9.873/99, sem, contudo, deixar de atender ao legítimo anseio de garantia da segurança jurídica, impedindo-se que o prazo prescricional possa ser interrompido por um número indeterminado de vezes em relação a uma mesma infração.

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