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Conforme abordado no texto anterior desta coluna, o projeto de lei complementar que regulamenta a reforma tributária (PLP nº 68/2024) prevê um imposto especial, chamado Imposto Seletivo (IS), que será cobrado sobre produtos que prejudicam a saúde ou o meio ambiente. O objetivo é modular a carga tributária, desestimulando o consumo de bens nocivos e incentivando práticas mais sustentáveis.
A lógica por trás do imposto seletivo é simples: ao aumentar o custo de produtos considerados nocivos à saúde ou ao meio ambiente, o consumo tende a diminuir. No entanto, assim como a estrutura tributária brasileira de forma geral[1], tal imposto não leva em consideração as particularidades de gênero e raça por ignorar a complexidade do comportamento do consumidor e as dinâmicas do mercado.
Os debates em torno dessa tributação são muitos: abordam desde a eficácia do ônus tributário na redução do consumo até o modelo mais adequado para essa tributação. Este texto, no entanto, irá se concentrar em lacuna na regulamentação, que possui impacto relevante da perspectiva de gênero e raça. Trata-se da ausência de previsão da incidência do IS sobre armas e munições.
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Sobre o tema, estudo recente realizado pelo Instituto Sou da Paz aponta que, em 2022, o Sistema Único de Saúde (SUS) desembolsou R$ 41 milhões em despesas relacionadas a vítimas de armas de fogo, o que corresponde a 17,1 mil internações[2]. Além disso, a pesquisa revelou que a taxa de mortalidade entre os feridos por armas de fogo é 3,4 vezes maior do que a registrada para outros tipos de ferimentos, evidenciando a gravidade dos impactos dessas armas na saúde pública.
Dados adicionais, divulgados pelo jornal O Globo, indicam que o Ministério da Saúde registrou a amputação de 2.044 pessoas em todo o país nos últimos anos como consequência da violência armada[3]. Comparativamente, nos últimos 15 anos, o número de amputações causadas por armas de fogo e explosivos no Brasil superou o número registrado pelo Exército dos Estados Unidos em 16 anos de conflitos bélicos.
Ademais, o Instituto Sou da Paz enfatiza que, desde 2019, a flexibilização da legislação sobre armas para Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs) resultou na aquisição, por civis, de armas de fogo e munições anteriormente restritas às forças policiais, além da diminuição da fiscalização sobre possíveis desvios desses armamentos[4].
Com a recente alteração legislativa introduzida pela Lei nº 13.945/2019, o prazo exigido para que os proprietários de armas de fogo apresentem atestados de antecedentes criminais e realizem testes psicológicos foi ampliado de três para dez anos. Como consequência, o número de armas de fogo de propriedade civil aumentou de 695 mil para 1,9 milhão. Paralelamente, dados de 2022 revelam que diversas armas foram desviadas ou furtadas de Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs), resultando em um aumento significativo do número de armas ilegais em circulação no país[5].
Embora restrições mais rigorosas ao armamento tenham sido implementadas desde 2023, é essencial considerar a necessidade contínua de regulamentação e limitação do acesso às armas. Nesse contexto, a extrafiscalidade associada ao IS pode ser uma ferramenta crucial para regular o acesso indiscriminado a esses itens.
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Em 2022, das 3.788 mulheres assassinadas no Brasil, 1.878 foram vítimas de armas de fogo. Ao analisar a série histórica de 2012 a 2022, verifica-se que, em média, 2.200 mulheres foram assassinadas anualmente no país, sendo que armas de fogo foram utilizadas em aproximadamente 50% desses casos. Isso corresponde a uma média de seis mulheres brutalmente assassinadas por dia, ou seja, uma a cada quatro horas. Ademais, outras 3.793 mulheres foram vítimas de violência armada não letal, das quais 28% sofreram agressões cometidas por parceiros íntimos. Esses dados, fornecidos pelo Instituto Sou da Paz, destacam a gravidade e o impacto das armas de fogo e munições, especialmente no contexto da violência contra as mulheres[6].
A tributação sobre armas e munições pode funcionar como um mecanismo eficaz para restringir o acesso da população a esses bens, ao aumentar seus preços e, consequentemente, reduzir sua circulação. Nesse sentido, é imperativa a alteração do PLP 68/2024, que se encontra em tramitação no Senado Federal, para a incidência do IS nas operações que envolvam armas e munições destinadas à segurança privada. O objetivo principal é desincentivar o consumo desses itens, que representam riscos significativos para a vida e a saúde, especialmente para as mulheres.
Vale destacar que essa alteração não afetará as armas e munições destinadas à segurança nacional e à segurança pública, responsabilidades constitucionais atribuídas aos entes federativos, conforme estabelecido nos artigos 37, 142 e 144 da Constituição. Assim, a modificação proposta assegurará a proteção do interesse público ao mesmo tempo que aborda questões críticas de segurança e saúde pública[7].
[1] A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou um relatório aprofundado sobre como as políticas fiscais dos países impactam a igualdade de gênero. A pesquisa, que abrangeu 43 nações, incluindo o Brasil, avaliou desde preconceitos explícitos e implícitos até reformas fiscais e processos políticos. Os resultados indicam que o Brasil se destaca pela ausência de reformas fiscais com foco na equidade de gênero, o que aponta para uma lacuna significativa na tomada de decisões políticas do país. O relatório está disponível em < https://www.oecd.org/en/publications/tax-policy-and-gender-equality_b8177aea-en.html >. Acesso em 07 nov. 2024.
[2] INSTITUTO SOU DA PAZ. Internação por armas de fogo custa R$ 41 milhões ao SUS. 2022. Disponível em: https://soudapaz.org/noticias/valor-economico-internacao-por-armas-de-fogo-custa-r-41-milhoes-ao-sus/. Acesso em: 08 set. 2024.
[3] O GLOBO. Mutilados pela guerra no Rio: assista a documentário com relatos de vítimas da violência. 2023. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2023/06/mutilados-pela-guerra-no-rio-assista-a-documentario-com-relatos-de-vitimas-da-violencia.ghtml. Acesso em: 07 nov. 2024.
[4] INSTITUTO SOU DA PAZ. Caneta Gatilho. Disponível em: https://soudapaz.org/canetagatilho/. Acesso em: 07 nov. 2024.
[5] SOU DA PAZ. O Globo: Política belicista: armamento em poder de civis ultrapassa 1 milhão. Disponível em: https://soudapaz.org/noticias/o-globo-politica-belicista-armamento-em-poder-de-civis-ultrapassa-1-milhao/. Acesso em: 07 nov. 2024.
[6] SOU DA PAZ. Folha de São Paulo: 43% dos autores de feminicídios cometidos com armas de fogo eram próximos da vítima. Disponível em: https://soudapaz.org/noticias/folha-de-s-paulo-43-dos-autores-de-feminicidios-cometidos-com-armas-de-fogo-eram-proximos-da-vitima/ . Acesso em: 07 nov. 2024.
[7] No dia 15 de agosto de 2024, o Grupo de Pesquisa Tributação e Gênero do Núcleo de Direito Tributário da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, sob a coordenação da Professora Tathiane Piscitelli, entregou a Emenda n. 00460-U (ao PLP 68/2024) à Senadora Zenaide Maia (PSD-RN), Procuradora da Bancada Feminina, a qual por legitimidade apresentou as emendas no Senado Federal. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9782074&ts=1725652411822. Acesso em: 07 nov. 2024.