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Inexiste violação à separação dos Poderes na iniciativa executiva ou parlamentar de PECs sobre o Judiciário. Isso já tinha sido afirmado em coluna passada, en passant. O caso é de desenvolver a questão sobre a constitucionalidade formal desse tipo de PEC, insistindo em que – ao menos no plano federal, e de acordo com a própria jurisprudência do STF – não existem matérias de iniciativa privativa para a reforma constitucional.
O texto de hoje volta ao assunto em razão do avanço da PEC 8/2021 na Câmara dos Deputados, conforme noticiado aqui. Não se discutem os aspectos materiais da referida PEC, só os formais. Além da iniciativa, outro suposto vício formal da proposta – que vem circulando entre alguns juristas, com destaque para o ex-ministro do STF Celso de Mello – consiste em que tal PEC trataria de matéria sob reserva constitucional material do regimento interno do STF.
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Como se explicava no texto passado, o argumento no sentido da inconstitucionalidade da iniciativa executiva ou parlamentar para PEC sobre o Judiciário se fez presente por força da decisão monocrática nunca submetida a referendo tomada na ADI-MC 5017, sobre a EC 73/2013.
A decisão é frágil e ainda mais preocupante é a defesa que alguns vêm fazendo da ideia que lhe subjaz (inconstitucionalidade formal da iniciativa parlamentar em PEC sobre o Judiciário), ignorando as consequências absurdas do argumento, dado que o art. 60 da CF não colocou o próprio Judiciário como legitimado para a propor PEC. Se os indicados do art. 60 CF não pudessem apresentar propostas sobre o Judiciário, esse seria um assunto “intocável”, não passível de reforma constitucional, por falta de legitimado para desencadear a discussão.
Essa seria uma limitação ainda mais severa do que a colocada nas cláusulas pétreas, pois essas “não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege”, conforme o entendimento do próprio STF na ADI 2024. Parece claro que não foi essa a ideia de constituinte.
E não custa lembrar que a EC 45/2004 (Reforma do Judiciário) foi de iniciativa parlamentar. Inclusive, no detalhado resgate que Maria Tereza Sadek e Rogério Bastos Arantes fazem a respeito da tramitação da PEC 96/1992, por mais de uma década, não figura tal controvérsia sobre a iniciativa da proposta.
Levado ao extremo, esse argumento conduziria à inconstitucionalidade de outras ECs, como a recém promulgada EC 134/2024, que altera o art. 96 da CF para fixar que, nos TJs compostos de mais de 170 desembargadores, a eleição para os cargos diretivos será realizada entre os membros do Pleno, por maioria absoluta e por voto direto e secreto, para um mandato de 2 anos, permitida só uma recondução sucessiva.
Essa EC teve origem na PEC 26/2022, de autoria do deputado federal Christino Aureo (PP-RJ), em cuja justificação consta o propósito de incrementar a racionalidade na gestão das justiças estaduais. Destaca-se, ainda, o seguinte trecho: “Em diversas ocasiões, ao longo dos anos, o Congresso Nacional interveio profundamente no regramento constitucional da Justiça, realizando modificações nos campos da jurisdição política constitucional, da existência e da eficácia de mecanismos de controle e fiscalização dos órgãos jurisdicionais, como também dos aspectos organizacionais e estruturais para ampliar o acesso ao Judiciário e democratizar seu funcionamento”. Os assuntos mencionados, de fato, estão ao alcance da reforma constitucional por iniciativa de quaisquer dos legitimados.
Pode-se citar, ainda, o exemplo da EC 88/2015, que aumentou de 70 para 75 anos a idade de aposentadoria compulsória dos servidores públicos, e estabeleceu regra de transição do art. 100 do ADCT para que tal medida alcançasse imediatamente os ministros do STF, dos tribunais superiores e do TCU. Essa EC proveio da PEC 42/2003, que ficou popularmente conhecida como “PEC da Bengala” e foi de autoria do então senador Pedro Simon (MDB-RS). À época, não se cogitou de qualquer vício na iniciativa parlamentar para editar normas referentes à aposentadoria dos membros do Judiciário.
Trata-se da mesma lógica pela qual o STF assentou o entendimento de que, no plano federal, as matérias de iniciativa privativa do presidente da República previstas no art. 61, § 1º, da CF, não se aplicam às PECs.
Nesse sentido, por exemplo, cite-se a ADI 5296, em que se discutia a constitucionalidade da EC 74/2013, que conferiu às Defensorias Públicas da União e do DF a autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária, nos termos em que já se assegurava às Defensorias Públicas Estaduais desde a EC 45/2004. Na referida ADI, o STF afastou a ocorrência de afronta ao art. 61, § 1º, inciso II, alínea c, da CF, pelo fato de a EC resultar de PEC de iniciativa parlamentar.
Da ementa desse acórdão, destaca-se o seguinte trecho: “No plano federal, o poder constituinte derivado submete-se aos limites formais e materiais fixados no art. 60 da Constituição da República, a ele não extensível a cláusula de reserva de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, prevista de modo expresso no art. 61, § 1º, apenas para o poder legislativo complementar e ordinário – poderes constituídos”.
A lógica desse entendimento está em que, se uma PEC pode alterar até mesmo as regras de iniciativa privativa (já que não constituem cláusula pétrea), a fortiori, não poderia estar a elas submetida. Além disso, como já mencionado, se as PECs se sujeitassem às regras de iniciativa privativa, haveria imutabilidade quanto às normas sobre o Poder Judiciário e o MP, que não podem propor PECs.
É bem verdade que, no plano estadual, o entendimento do STF é diferente e depende de se está diante do poder constituinte decorrente originário ou do poder constituinte decorrente reformador. Diante da primeira situação, o STF vem reiterando que não se aplicam as regras de iniciativa privativa às normas originárias das constituições estaduais, ou seja, o primeiro tratamento dessas matérias na Constituição do Estado não está sujeito à iniciativa do chefe do Poder Executivo. O assunto já foi levado ao STF em diversas ocasiões, por exemplo, ADI 1167, ADI 2581, etc.
Entretanto, para segunda situação, isto é, para a reforma da Constituição estadual, o STF entende que as regras de iniciativa privativa são, sim, aplicáveis para a propositura de emendas às Constituições estaduais, sob a justificativa de que, do contrário, haveria, na iniciativa parlamentar sobre esses assuntos, usurpação da competência privativa do chefe do Poder Executivo para iniciar projeto de lei (ordinário ou complementar) sobre a matéria.
Tratam dessa questão as ADIs 2966, 3930, 5075, 2616, 3644, 4154, 858, 1746, etc.
A preocupação nesses julgados vai no sentido de evitar uma espécie de “entrincheiramento” de certas matérias no texto constitucional estadual, retirando-os do alcance da legislação ordinária, o que dificultaria o arranjo democrático e de governabilidade local por parte do governador do Estado, pois a modificação de tais assuntos com status constitucional exigiria a articulação de 3/5 dos votos do Legislativo e não o quórum referido no art. 47 da CF.
É curioso notar que o mesmo tipo de argumento poderia justificar a adoção do mesmo entendimento no plano federal. Entretanto, o fato é que o STF distingue as situações, entendendo que não é pertinente aplicar às propostas de emenda à CF sua jurisprudência quanto à inconstitucionalidade de emendas às Constituições estaduais sem observância da reserva de iniciativa do chefe do Poder Executivo.
Por essa lógica, se não há iniciativa reservada em PEC para o Executivo, com ainda mais razão jamais se poderia cogitar da impossibilidade de tratamento dos assuntos do Poder Judiciário, que sequer pode propor PEC.
Visto isso, passa-se ao argumento quanto à suposta reserva constitucional de regimento.
Primeiramente, registra-se que o poder do STF de editar seu próprio regimento interno é matéria de clara importância, relacionada à sua autonomia organizacional e à prerrogativa de disciplinar seu funcionamento, como prevê o art. 96, inciso I, alínea a, da CF. Essa atribuição se produz em atenção, não a um interesse privado dos tribunais ou de seus membros, mas em razão de um interesse geral: assegurar seu funcionamento de forma independente.
Entretanto, isso não significa que essa prerrogativa, ou melhor, a produção normativa dela advinda não esteja submetida a um controle, no que pode se incluir seu eventual tratamento no plano constitucional.
Ao fixar a tese de julgamento no Tema 1.120 da repercussão geral, por exemplo, o STF admitiu a possibilidade de controle das normas interna corporis do Poder Legislativo. Para seguir o paralelismo, é necessário admitir que tal reciprocidade, no que não se vislumbra necessariamente uma ofensa, desaforo ou ato injurioso à Corte.
Inclusive, o próprio STF realiza o controle dos regimentos internos dos demais tribunais. No RE 405031, por exemplo, declarou a inconstitucionalidade dos arts. 190 a 193 do regimento interno do TST, que criavam instrumento processual (reclamação) no processo trabalhista, o que dependeria de previsão em lei no sentido formal e material. Depois, com base no art. 52, inciso X, da CF, o Senado suspendeu a execução dessas normas regimentais do TST pela Resolução nº 4/2012. Ou seja, o controle dos regimentos internos dos tribunais é possível e necessário.
Em síntese, a questão a ser respondida é: existem matérias sob reserva constitucional material de regimento interno do STF que não podem ser disciplinadas por emenda constitucional? A resposta é indubitavelmente negativa. Há uma clara diferença entre a prerrogativa de elaborar o próprio regimento e a criação de uma reserva em seu favor. Da primeira atribuição não se pode deduzir que existam matérias cuja regulação correspondam exclusivamente ao STF, da mesma forma que as demais atribuições de poderes normativos não criam uma reserva material correspondente.
A essa mesma conclusão (sobre a inexistência de uma “reserva de regimentalidade” do tribunal constitucional) chegam Patricia Rodríguez-Patrón[1], analisando o ordenamento espanhol, e Antonio Ruggeri e Antonino Spadaro,[2] em relação ao ordenamento italiano. Na Espanha, de modo especial, a Constituição de 1978, em seu art. 165, prevê textualmente que “uma lei orgânica regulará o funcionamento do Tribunal Constitucional, o status de seus membros, o procedimento perante ele e as condições para o exercício das ações.”. A competência da lei para disciplinar a matéria reforma a negativa de uma reserva do próprio tribunal constitucional.
Voltando para o Brasil, a inexistência de “reserva de regimentalidade” (ou seja, a possibilidade de a Constituição incorporar matérias sobre o tribunal) não significa que eventual EC não encontre limites ao disciplinar o funcionamento e a organização do STF. É necessário, por exemplo, respeitar a independência da Corte e se abster de criar embaraços ao cumprimento de suas competências. Entretanto, como se vê, essa discussão já seria de cunho material, e não formal, o que, reitere-se, foge ao escopo deste texto.
O fato é que não se pode subtrair dos parlamentares a possibilidade de debater sobre o funcionamento de um órgão constitucional. Nem se pode determinar a priori a inconstitucionalidade de uma PEC sem que suas discussões se desenvolvam.
[1] RODRÍGUEZ-PATRÓN, Patricia. La potestad reglamentaria del tribunal constitucional. Madrid: Iustel, 2005, p. 87 e ss.
[2] RUGGERI, Antonio; SPADARO, Antonino. Lineamenti di giustizia costituzionale. Settima Edizione. Torino: Giappichelli, 2022, p. 39 e ss.