No mundo atual, a percepção das dificuldades não pode mais se dissociar do remanejamento dos quadros funcionais.
Pensando mais a longo prazo, a percepção das dificuldades possibilita uma melhor visão global dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

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Assim mesmo, a complexidade dos estudos efetuados ainda não demonstrou convincentemente que vai participar na mudança dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

Injustiça epistêmica e seu impacto no direito brasileiro

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A filósofa Miranda Fricker trouxe uma contribuição significativa para as teorias sociais e jurídicas ao cunhar o conceito de “injustiça epistêmica”, uma noção que vem sendo gradativamente incorporada na jurisprudência brasileira, em especial nos julgamentos criminais que envolvem grupos minorizados. Fricker destaca como o poder e os preconceitos de identidade influenciam a credibilidade das partes, afetando diretamente o processo e o julgamento de indivíduos nas instituições de Justiça.

Verifica-se um uso crescente do conceito em recentes decisões do Tribunais Superiores. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), exemplos de utilização do termo incluem os casos: AgRg no REsp 2049626 e AgRg no REsp 2137422, relatados pelo Ministro Antonio Saldanha Palheiro; HC 903268/SP, AgRg no HC 781990 e AgRg no HC 875737, relatados pelo Ministro Rogerio Schietti Cruz; AgRg no AREsp 2522930, sob a relatoria da Ministra Daniela Teixeira; REsp 2042215 e AgRg no HC 761921, relatados pelo Ministro Sebastião Reis; e AgRg no HC 784734 e AREsp 1940381, sob relatoria do Ministro Ribeiro Dantas. No Supremo Tribunal Federal (STF), destacam-se o AgRg no HC 224294 e HC 227026, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes e o RHC 247350, relatado pelo Ministro Edson Fachin.

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Fricker[1] examina como o poder e os preconceitos de identidade influenciam as relações de conhecimento e credibilidade. Esses preconceitos estruturam a maneira como julgamos e ouvimos uns aos outros, afetando diretamente os processos judiciais. Ela explora duas manifestações principais de injustiça epistêmica: a injustiça testemunhal e a injustiça hermenêutica. Ambas revelam formas sutis, mas profundas, de desvalorização de vozes e experiências, com implicações especialmente críticas para o campo do Direito.

A injustiça testemunhal ocorre quando a palavra de uma pessoa é desvalorizada devido a estereótipos ou preconceitos sobre sua identidade. Esse tipo de injustiça é recorrente em julgamentos em que a credibilidade de um depoente é questionada pela sua origem social, gênero, raça ou etnia. Fricker aponta que combater essa injustiça exige uma conscientização sobre as “virtudes epistêmicas”, ou seja, um esforço ativo para corrigir nossos preconceitos na avaliação da credibilidade dos depoimentos.

Já a injustiça hermenêutica se manifesta quando falta um vocabulário compartilhado para expressar determinadas experiências. Em sociedades marcadas por desigualdades, certos grupos têm menos recursos interpretativos para tornar suas vivências inteligíveis. Isso cria uma “lacuna hermenêutica” que impede o entendimento de experiências importantes, especialmente de minorias sociais, dificultando sua representação no discurso jurídico e político. Esses contextos desfavoráveis afetam desproporcionalmente os grupos marginalizados, que têm menos poder para definir os significados sociais.

Fricker também expande o conceito de poder social ao introduzir a noção de “poder identitário” – uma forma de poder que se baseia nas identidades sociais coletivamente imaginadas[2]. Por exemplo, ideias sobre o que significa ser mulher ou homem, jovem ou idoso, gay ou heterossexual, atuam na sociedade como expectativas que afetam as relações de poder. Quando a justiça não reconhece essa dinâmica, corre-se o risco de reproduzir desigualdades.

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A doutrina brasileira começa a debater a implicação dessa teoria no sistema de justiça. Juristas como o Ministro Messod Azulay Neto[3] vêm explorando o tema a partir de casos de injustiça epistêmica nos Estados Unidos, como o de Henrietta Lacks e o estudo de Tuskegee, em que vozes foram silenciadas pelo poder. Azulay Neto destaca que o “poder estatal” atuou ativamente para suprimir o conhecimento e o consentimento das vítimas nesses casos, representando um exemplo evidente de injustiça epistêmica sistêmica e institucionalizada. Azulay Neto propõe que mitigar essas injustiças demanda uma transformação na estrutura de poder dos Tribunais e a sensibilização dos atores processuais para a diversidade de perspectivas.

O sistema penal brasileiro enfrenta desafios similares, como observa Alex Sandro da Silveira Filho[4] ao examinar as dificuldades dos povos indígenas em processos judiciais. Barreiras linguísticas e culturais e diminuem a credibilidade dos indígenas perante a justiça, caracterizando injustiça testemunhal. Além disso, a injustiça hermenêutica se manifesta quando o sistema jurídico não dispõe de um repertório interpretativo para entender plenamente as vivências dos povos originários, o que contribui para sua marginalização.

Nessa linha, Samia Saad Gallotti Bonavides[5] propõe o modelo de justiça restaurativa como um caminho para incluir as vozes desses grupos marginalizados. Essa abordagem reconhece a complexidade das intersecções de gênero, etnia e classe, que muitas vezes passam despercebidas nos processos judiciais tradicionais. Bonavides defende que uma justiça sensível a esses aspectos pode corrigir falhas de credibilidade que afetam desproporcionalmente mulheres e minorias.

Por fim, Janaína Matida e Lívia Moscatelli[6] argumentam que a fase preliminar da investigação é crucial para evitar injustiças epistêmicas, especialmente em casos de violência de gênero em que vítimas são frequentemente desacreditadas por autoridades policiais, revelando o entrelaçamento das injustiças testemunhal e hermenêutica. Exemplos incluem uma adolescente vítima de estupro coletivo, interrogada sobre seu comportamento sexual; mulheres desestimuladas a formalizar denúncias de violência doméstica, aconselhadas a buscar reconciliação com o ex-companheiro; e uma mulher que hesitou em denunciar por receio de que o prestígio do agressor influenciasse sua credibilidade. Esses exemplos demonstram como as vítimas, ao buscarem ajuda, são muitas vezes confrontadas com estigmas que deslegitimam suas experiências, perpetuando injustiças epistêmicas estruturais no sistema policial.

Essas reflexões trazem uma provocação importante: como o sistema jurídico pode superar as barreiras epistêmicas que perpetuam desigualdades? A adoção de medidas para ampliar a representatividade e promover uma escuta ativa e informada é crucial. Promover a justiça epistêmica não é apenas uma questão de técnica jurídica, mas de compromisso ético com a dignidade e a igualdade.

Assim, a teoria de Fricker oferece uma base para pensarmos criticamente sobre o papel do Direito na transformação social. Em última análise, uma justiça epistêmica é aquela que, ao valorizar a pluralidade de vozes, torna-se mais legítima e equitativa.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZULAY NETO, Messod. Injustiça epistêmica é inevitável? Em: Ensaios em Direito Público: Os 10 anos da Ministra Regina Helena Costa no Superior Tribunal de Justiça. Londrina: Thoth Editora, 2023.

BONAVIDES, Samia Saad Gallotti. Algumas reflexões sobre mulheres, injustiça epistêmica e justiça restaurativa. In: A defesa dos direitos humanos na visão de mulheres do Ministério Público. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022

FRICKER, Miranda. Conceptos de injusticia epistémica en evolución. Revista internacional de filosofía política. Volume 10, N 09, 2021. Disponível em https://revistas.ucm.es/index.php/LTDL/article/view/76466/4564456558120 Acesso em 02.nov.2024.

FRICKER, Miranda. Injustiça Epistêmica: O poder e a ética do conhecimento. Tradução Breno R. G. Santos. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2023a.

FRICKER, Miranda. Injustiças Testemunhais Institucionalizadas: A Construção do Mito da Confissão. Revista Brasileira de Direito Processual Penal. Volume 9. N 01. jan/abr 2023b. Disponível em https://revista.ibraspp.com.br/RBDPP/article/view/820. Acesso em 02.nov.2024.

MATIDA, Janaína; MOSCATELLI, Lívia. Investigação preliminar e injustiça epistêmica. Em: Os fatos no processo penal. Vários autores. Coordenadoras Janaína Matida e Lívia Moscatelli. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2023.

SILVEIRA FILHO, Alex Sandro da. Encarceramento de indígenas no Brasil: uma análise a partir do conceito de injustiça epistêmica de Miranda Fricker. Revista de Direitos Humanos e Efetividade. e-ISSN 2526-0022. v.9. n. 1. Jan/Jul. 2023.

[1] FRICKER, Miranda. Injustiça Epistêmica: O poder e a ética do conhecimento. Tradução Breno R. G. Santos. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2023.

[2] FRICKER, Miranda. Conceptos de injusticia epistémica en evolución. Revista internacional de filosofía política. Volume 10, N 09, 2021. Disponível em https://revistas.ucm.es/index.php/LTDL/article/view/76466/4564456558120 Acesso em 02.nov.2024.

[3] AZULAY NETO, Messod. Injustiça epistêmica é inevitável? Em: Ensaios em Direito Público: Os 10 anos da Ministra Regina Helena Costa no Superior Tribunal de Justiça. Londrina: Thoth Editora, 2023.

[4] SILVEIRA FILHO, Alex Sandro da. Encarceramento de indígenas no Brasil: uma análise a partir do conceito de injustiça epistêmica de Miranda Fricker. Revista de Direitos Humanos e Efetividade. e-ISSN 2526-0022. v.9. n. 1. Jan/Jul. 2023.

[5] BONAVIDES, Samia Saad Gallotti. Algumas reflexões sobre mulheres, injustiça epistêmica e justiça restaurativa. In: A defesa dos direitos humanos na visão de mulheres do Ministério Público. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022.

[6] MATIDA, Janaína; MOSCATELLI, Lívia. Investigação preliminar e injustiça epistêmica. Em: Os fatos no processo penal. Vários autores. Coordenadoras Janaína Matida e Lívia Moscatelli. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2023.

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