ITCMD: dividendos em reserva de lucros não configura doação

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Em meados de 2024, a Secretaria da Fazenda de São Paulo deflagrou a Operação Loki, com o objetivo de fiscalizar operações e, se constatadas situações consideradas irregulares, promover a cobrança do ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação).

Mas não se pode perder a orientação de que, embora a fiscalização tributária seja um poder-dever das autoridades administrativas, deve-se observar os princípios constitucionais, ainda que se busque uma maior efetividade aos objetivos arrecadatórios.

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No presente artigo, analisaremos o caso em que a Sefaz/SP, tendo finalizado um processo fiscalizatório, procedeu à lavratura de auto de infração e imposição de multa (AIIM) 4.129.976-0, no apagar das luzes de dezembro de 2019, cobrando o ITCMD relativamente aos períodos de 2014 e 2015, no valor de R$ 33 milhões, bem como multa de 100% do valor do imposto, além dos acréscimos legais.

O pano de fundo ensejador da autuação consiste em suposta omissão em operação de doação de valores oriundos de dividendos mantidos ocultos em conta ilegal de reserva de lucros da empresa donatária (holding), criada em 2002, para planejamento sucessório envolvendo a pessoa física considerada como responsável solidária, na qual houve a integralização, por parte da mesma, de praticamente todo o capital social da empresa e, na sequência, foi doada a nua-propriedade das ações a seus sucessores, com reserva de usufruto de 100% do poder de voto e 20% dos frutos das ações.

Embora apresentadas as razões de defesa em fase de impugnação, a Delegacia Tributária de Julgamento de Bauru julgou procedente a autuação e manteve integralmente o AIIM, mantendo, inclusive, a responsabilidade atribuída à pessoa física envolvida, levando os inconformados (autuada e a responsável solidária) a recorrerem ao Tribunal de Impostos e Taxas (TIT/SP), com seus argumentos.

De maneira resumida, de acordo com o relatório constante da decisão de segunda instância administrativa, em razões recursais, com a finalidade de demonstrar a complexa inteligência do fato gerador do ITCMD, pugnou-se contra a inobservância de alguns pontos fulcrais: a) inexistência de caixa nas empresas doadoras para realizar a distribuição de dividendos referentes aos lucros apurados; b) inobservância quanto à regularidade da formação da reserva; e, c) inexistência de contrato ou ato de doação.

Por envolver empresa donatária do tipo sociedade anônima, o recurso aduz que a fiscalização não observou os necessários procedimentos constantes na Lei nº 6.404/76 (Lei das S/A) e mais, a suposta doação apontada pelo fisco paulista não admitiria prova por presunção, não se podendo presumir o recebimento de dinheiro nunca recebido e que, admitir o que a fiscalização teria apontado como descrição da autuação, seria equivalente a tributar o aumento de capital mediante incorporação da reserva de lucros, algo juridicamente impossível.

Fora aduzido, ainda, que a autoridade fiscal cometera outros equívocos na interpretação e aplicação da legislação do ITCMD, chegando ao ponto de confundir o direito dos acionistas a participar dos lucros sociais, com a efetiva ocorrência da distribuição de dividendos, além da Sefaz/SP juntar decisão judicial, para apoiar suas razões de manter a autuação, relacionada a jurisprudência sequer aplicável à questão.

Por outro lado, a Fazenda Pública alegava que a decisão recorrida partia de premissa equivocada e que o procedimento de aumento do capital social mediante conversão das reservas de lucros seria uma doação, considerando a ideia de distribuição mínima dos dividendos prevista no artigo 202 da Lei das S/A.

Argumentou ainda, que a doação dos valores eram mantidos ocultos em conta de reserva de lucros, levando a sustentar a acusação em duas grandes premissas: a) os valores declarados em “reserva de lucros” pela holding, na verdade, seriam de propriedade da pessoa física, por se tratar de dividendos mínimos obrigatórios que deveriam ter sido distribuídos a ela e não o foram; e b) que os aumentos de capital realizados a partir de tais valores, em verdade, se caracterizam como doação da pessoa física à holding, tudo a ensejar a incidência do ITCMD.

No julgamento do TIT, o Juiz Relator Flavio José Sanches Arantes, integrante da 6ª Câmara Julgadora, destacou em seu voto datado de 09/12/2021, devidamente seguido por unanimidade pelos demais juízes, o importante elemento de que a empresa donatária, durante sua existência, acumulou os lucros obtidos em conta de “reserva de lucros” e, nos anos fiscalizados de 2014 e 2015, tais reservas foram utilizadas para o aumento do capital social da holding, não tendo ocorrido nenhuma operação que pudesse ser considerada como doação. Portanto, a Câmara decidiu conhecer os Recursos Ordinários apresentados, para dar provimento e para cancelar o AIIM.

No julgado houve a citação de caso análogo em que o Juiz Dr. Flávio Nacimbem de Freitas, em data de 27/05/2021, por ocasião do julgamento Recurso Ordinário do AIIM 4.129.980-2, decidiu que por se tratar a autuada de uma sociedade anônima, ainda que sobre tais operações possa ter ocorrido eventual não observância dos ditames da Lei das S/A em relação à forma ou sistemática da distribuição de dividendos, não tem o fisco estadual competência para determinar qual seria o valor destes dividendos, tampouco para presumir sua ocorrência, sob pena de usurpação de competência e casual predominância da autoridade fiscal sobre outras autoridades.

É o que preceitua o art. 116 do Código Tributário Nacional (CTN):

Art. 116 – Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos:

I – tratando-se de situação de fato, desde o momento em que o se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios;

II – tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos têrmos de direito aplicável.

Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. 

Com base no supracitado artigo 116, tem-se que eventual desconstituição do quanto tenha sido deliberado em assembleia realizada, deveria ter sido objeto de contundente demonstração da Sefaz/SP, provando suposta finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do ITCMD, o que não é o caso, pois além de nada ter sido provado, o procedimento de formação das reservas foi realizado conforme autoriza o artigo 202, § 3° da Lei das S/A, abaixo transcrito:

Art. 202 – Os acionistas têm direito de receber como dividendo obrigatório, em cada exercício, a parcela dos lucros estabelecida no estatuto ou, se este for omisso, a importância determinada de acordo com as seguintes normas:

(…)

  • 3º – A assembléia-geral pode, desde que não haja oposição de qualquer acionista presente, deliberar a distribuição de dividendo inferior ao obrigatório, nos termos deste artigo, ou a retenção de todo o lucro líquido, nas seguintes sociedades:

(…)

I – companhias abertas exclusivamente para a captação de recursos por debêntures não conversíveis em ações;

II – companhias fechadas, exceto nas controladas por companhias abertas que não se enquadrem na condição prevista no inciso I.       

Para o presente caso analisado, aplica-se o teor do art. 202, § 3°, inciso II, da Lei das S/A, por se tratar de companhia fechada, onde a assembleia geral pode deliberar a distribuição de dividendo inferior ao obrigatório ou ainda reter o lucro líquido, desde que não haja oposição de qualquer acionista, o que restou comprovado nos autos do processo administrativo.

Embora possa parecer de simples compreensão o fato de que, se o lucro for destinado à conta de reserva, não sendo distribuído aos sócios, não há que se falar em acréscimo patrimonial, esta não foi a conclusão da Sefaz/SP na lavratura do AIIM.

Outro importante ponto é o critério quantitativo da autuação, que tomou como base o valor do lucro apurado para a distribuição de dividendos. Questões distintas, lucro apurado não representa saldo de caixa disponível, e aumento do capital social da empresa não se confunde com disponibilidade em caixa para o pagamento de dividendos, de forma ser impossível tributar referidas operações, tal como pretendida pela Sefaz/SP.

Com todos estes elementos, a 6ª Câmara do TIT/SP, considerando a regularidade das reservas de lucro da forma como constituídas, entendeu não ter ocorrido nenhuma hipótese de doação, nem a prática de ocultação de valores para posterior doação, de modo que a acusação inicial não se sustentaria, dando provimento ao recurso da autuada para cancelar o auto de infração, inclusive em relação à pessoa física envolvida, na condição de responsável solidária.

A Representação Fiscal ainda suscitou a tentativa de manejar seu inconformismo através de Recurso Especial, alegando, em síntese, (i) nulidade por não enfrentamento de argumentos relevantes postos pela Representação Fiscal, (ii) nulidade por ofensa ao contraditório e ao Princípio da Não Surpresa, (iii) nulidade por decisão extra petita, (iv) nulidade por uso de premissa equivocada e (v) legalidade da responsabilidade solidária. Todavia, sequer foi conhecido, pois não foram vislumbradas as nulidades alegadas quanto ao mérito da decisão recorrida, mantendo-se o correto cancelamento do AIIM realizado pela Câmara Julgadora.

Autoria:

Marcelo Bolognese – Pesquisador do Projeto Repertório Analítico de Jurisprudência do TIT – NEF-FGV/SP. Doutor em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC-SP. Mestre em Direito pela Escola Paulista de Direito (EPD). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Professor de graduação e pós-graduação. Sócio do Escritório Bolognese Sociedade de Advogados e juiz do Tribunal de Impostos e Taxas (TIT)

Coordenação:

Eurico Marcos Diniz de Santi
Eduardo Perez Salusse
Kalinka Bravo
Lina Santin

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