No mundo atual, a percepção das dificuldades não pode mais se dissociar do remanejamento dos quadros funcionais.
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Assim mesmo, a complexidade dos estudos efetuados ainda não demonstrou convincentemente que vai participar na mudança dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

Mediação e ausência de escuta prévia das vítimas

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Há uma intensa discussão doutrinária sobre a necessidade de controle judicial da representatividade adequada das partes nos processos estruturais, inclusive na fase de homologação dos acordos. Tratamos desta temática na obra “Novos Horizontes do Processo Estrutural”[1]. Todavia, a questão ainda não começou a ser observada na prática e nem discutida nos processos judiciais de forma metodológica.

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Processo estrutural[2] é um litígio judicial em que se veicula um problema estrutural, com vistas a alterar um estado de desconformidade substituindo-o por um estado de coisas ideal. Trata-se de um sub-ramo do processo coletivo[3].

Referente ao desastre ambiental de Mariana[4], o Plenário do Supremo Tribunal Federal referendou a homologação de acordo de grande abrangência para a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana/MG (Petição 13.157/DF). Este acordo, que denominamos “acordo de abrangência nacional”, estabelece um marco para a reparação dos danos ambientais e sociais em escala nacional, fornecendo uma estrutura jurídica robusta que permite que as vítimas do desastre, incluindo comunidades indígenas e quilombolas, optem por uma adesão voluntária.

Esse modelo de resolução de conflitos, amplamente explorado no nosso livro “Mediação nas Cortes Superiores: Da Teoria à Prática”[5], demonstra a importância da celebração de acordos nacionais para a eficiente resolução de demandas coletivas. Perante o STJ um acordo semelhante está sendo elaborado nas ações de seguro habitacional do SFH[6].

A homologação pelo STF garante segurança jurídica especialmente para as fontes pagadoras das indenizações. Aqueles que aderirem ao acordo nacional, terão suas demandas individuais resolvidas sem a necessidade de estabelecer tentativas de acordos individualizados e muitas vezes desconexos com outros acordos envolvendo questão jurídica semelhante. A unificação de um acordo, por meio de um acordo global, garante padronização, governança e previsibilidade para as partes, desde que tenha especificidades para que seja personalizado para cada situação jurídica. O STF, ao chancelar essa solução coletiva, reafirma o valor do diálogo e da autocomposição na jurisdição constitucional, para questões de interesse público, especialmente em casos de grande impacto social e ambiental.

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Um acordo bem equilibrado, que inclua a escuta prévia e eficaz de todas as classes de vítimas, não apenas acelera o processo de reparação e promove uma alta taxa de adesão ao “acordo nacional”, mas também institui um sistema de monitoramento conduzido pela governança judicial. Esse mecanismo é crucial para garantir transparência e a correta aplicação dos recursos, assegurando que as decisões sejam implementadas efetivamente, tal como observado no Supremo Tribunal da Índia[7].

No entanto, se as vítimas não forem previa e efetivamente ouvidas por meio de representação adequada, o acordo em questões envolvendo as comunidades afetadas pelo acordo pode ser alvo de críticas.

No acordo homologado pelo STF, pelo que constam das petições protocoladas e relatadas na própria decisão homologatória, não houve uma consulta apropriada às comunidades indígenas e quilombolas durante as negociações. Esses povos não foram ouvidos para a construção do acordo[8]. Para essas comunidades, o que foi apresentado não configura um acordo, mas sim uma oferta pública de pagamento estipulada sem sua participação.

A participação do Ministério Público Federal e das Defensorias Públicas não legitima a representação dos indígenas e dos quilombolas porque não se pode confundir legitimidade de parte, com representação adequada, conforme esclarece Sérgio Arenhart[9].

Realizar a consulta às comunidades indígenas e quilombolas apenas depois de o acordo estar homologado é inadequado, pois se limita a checar se elas aceitarão uma negociação da qual não fizeram parte ativamente. As evidências apresentadas mostram que não houve uma consulta prévia adequada a estas comunidades. Assim, ouvi-las somente após o acordo estar formado transforma o processo em uma formalidade de aceitação, o que não representa um verdadeiro diálogo necessário para a autocomposição efetiva na jurisdição constitucional[10]. Uma autêntica autocomposição exige que haja envolvimento ativo e significativo das comunidades desde o início das negociações, e não apenas uma participação posterior à conclusão do acordo[11].

A alegação de que o acordo só terá efeito para aqueles que aderirem voluntariamente não considera o impacto mais amplo que tais acordos podem ter sobre a comunidade em geral. Esse modelo de acordo pode ser apresentado como uma “solução para o problema”, contudo, ele não se fundamenta em uma negociação direta e justa com todas as partes envolvidas. A situação é ainda mais problemática porque diversas associações que representam essas comunidades vulneráveis se manifestaram contrariamente à homologação do acordo, mas suas petições foram negadas, resultando na validação do acordo sem um processo de consulta efetivo.

A pressão exercida pela mídia para a aceitação de um acordo muitas vezes mascara a intenção de realizar pagamentos inferiores ao devido. Esse cenário se evidencia, por exemplo, no caso dos prédios-caixão em Pernambuco, onde o acordo foi homologado sem a devida consulta às vítimas e estabeleceu indenizações abaixo dos valores previstos para a faixa 1 do programa Minha Casa Minha Vida, comprometendo a recuperação patrimonial dos afetados[12].

O acordo celebrado só produzirá efeitos sobre ações judiciais em que pessoas atingidas (ou associações que as representem) postulem a indenização de danos individuais, se os titulares dos direitos aderirem às cláusulas pactuadas voluntariamente[13]. Isto não significa uma legitimação diferida do acordo, mas, sim,  um teste de adesão do acordo. Tal processo mascara a pressão psicológica subjacente que incentiva a aceitação do acordo, potencialmente levando as partes afetadas a concordarem sem uma negociação plenamente informada e equitativa.

Em contraste, no contexto da mediação da ADC 87, o cacique Raoni Metuktire, líder indígena do povo Kayapó, tem tido uma participação ativa nas discussões sobre a demarcação de terras indígenas no Brasil. Em 2 de outubro de 2024, ele esteve presente na audiência de mediação no Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da Lei do Marco Temporal (Lei 14.701/2023), acompanhado pela ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e outros líderes indígenas, todos com lugares efetivos na mesa de negociação. A escuta ativa e a consulta prévia para construir soluções dialogadas são essenciais neste processo.

A homologação pelo Supremo Tribunal Federal do acordo de reparação do desastre de Mariana representa um marco significativo na aplicação da mediação e autocomposição em conflitos de grande impacto social e ambiental. No entanto, as críticas sobre a efetiva participação prévia das comunidades afetadas nas negociações destacam a necessidade de uma evolução metodológica que assegure o controle efetivo da legitimidade das vítimas e a equidade nos processos de construção de acordos.

A homologação pelo Supremo Tribunal Federal do acordo de reparação do desastre de Mariana marca um ponto significativo na utilização da mediação e autocomposição em conflitos de grande impacto social e ambiental. Todavia, a necessidade de uma metodologia mais aprimorada que garanta a efetiva participação das comunidades afetadas nas negociações antes da conclusão dos acordos é evidenciada pelas críticas relativas à falta de consulta adequada e representação legítima dessas comunidades durante o processo. Essas críticas destacam a importância de desenvolver processos que não apenas formalizem acordos, mas que também assegurem um diálogo verdadeiro e equitativo, sustentando a legitimidade e a justiça das resoluções alcançadas, em especial em situações que envolvam grupos vulneráveis e questões de interesse público amplo.

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[1] VEIGA, Guilherme. A Representação Adequada Nos Processos Estruturais in. In BALAZEIRO, Alberto B; ROCHA, Afonso de Paula; VEIGA, Guilherme. Novos horizontes do processo estrutural. Editora Thoth, 2024. p. 291-301.

[2] VITORELLI, Edilson. Levando os conceitos a sério: processo estrutural, processo coletivo, processo estratégico e suas diferenças. In: Revista de Processo. 2018. p. 334.

[3] VEIGA, Guilherme. A Representação Adequada Nos Processos Estruturais in. In BALAZEIRO, Alberto B; ROCHA, Afonso de Paula; VEIGA, Guilherme. Novos horizontes do processo estrutural. Editora Thoth, 2024. p. 292.

[4] O desastre ambiental de Mariana ocorreu em 5 de novembro de 2015, quando a Barragem do Fundão, localizada no município de Mariana, Minas Gerais, se rompeu. Essa barragem, administrada pela mineradora Samarco — uma parceria entre a brasileira Vale e a anglo-australiana BHP Billiton —, armazenava resíduos da extração de minério de ferro. O colapso resultou na liberação de cerca de 62 milhões de metros cúbicos de lama tóxica, que devastou o distrito de Bento Rodrigues e outras comunidades ao longo do Rio Doce.

[5] VEIGA, Guilherme. Mediação nas cortes superiores: da teoria à prática. Editora Thoth, 2023.

[6] Ver em https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/26112021-Decisao-do-STJ-leva-a-mutirao-de-mediacao-em-Natal-que-deve-beneficiar-mais-de-800-familias.aspx Acesso em 11/11/2024.

[7] CASIMIRO, Matheus; LOPES FILHO, Juraci Mourão. Processos estruturais para além da retórica: contribuições indianas para o monitoramento de decisões judiciais. Revista Direito e Práxis, v. 14, p. 1027-1051, 2023: “O caminho trilhado pelo Supremo Tribunal da Índia mostra a importância de ampliar a utilização de comissões técnicas de investigação e monitoramento no Brasil.”

[8] Conforme item 5  e 173 da decisão homologatória do acordo consta que: “5. Em 28.10.2024, a Associação Indígena Tupinikim da Aldeia Areal-Aitaa, a Associação dos Remanescentes dos Quilombos de Produtores e Produtoras Rurais da Agricultura Familiar da Comunidade Quilombola de São Domingos Sapê do Norte, Conceição da Barra – ES (ARQCSAD) e a Associação dos Remanescentes dos Quilombos de Produtores Rurais da Agricultura Familiar e Pesqueira da Comunidade Morro da Onça – Sapê do Norte, Conceição da Barra – ES (ARMO) ressaltam a necessidade de consulta prévia às comunidades indígenas, quilombolas e populações tradicionais para que o acordo tenha eficácia em relação a eles. Pedem que o acordo não seja homologado antes da sua oitiva.”

[9] ARENHART, Sergio Cruz. O Ministério Público e a tutela coletiva: o advogado que queria ser juiz. MPMG Jurídico, 2008.

[10] Verifica-se pelo item 176 da decisão homologatória do acordo que a escuta prévia das comunidades será para fins de implementação do acordo e não para a sua construção: “176. Assim, constato que o acordo só produzirá efeitos em relação às populações representadas pelas associações requerentes mediante sua oitiva prévia e concordância expressa”. Ou seja, reconhece-se que a homologação do acordo foi antes de ouvir das comunidades e que eles serão ouvidos apenas para informar se aceitam ou não ao acordo. Logo, não é acordo. Trata-se de uma oferta pública de pagamento.

[11] No item 179 da decisão homologatória do acordo verifica-se que na petição nº 144.255/2024 (doc. 82), a Associação Nacional dos Atingidos por Barragens (ANAB) também questiona o acordo, pedindo emendas aos termos pactuados e a oitiva prévia dos atingidos, o que foi indeferido, conforme item 181 da decisão homologatória.

[12] Vide em “Proprietários de prédios-caixão da RMR realizam protesto no Recife Manifestantes reivindicam valores de indenizações a serem recebidas”. Disponível em https://www.folhape.com.br/noticias/predios-caixao-protesto/342925/ Acesso em 10/11/2024. Ver também “Donos de apartamentos em prédios-caixão fazem protesto no Recife: ‘querem nos dar esmola’ Eles contestam as medidas anunciadas pelo Governo do Estado para tentar resolver o problema das indenizações”. Disponível em https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/vidaurbana/2024/06/donos-de-apartamentos-em-predios-caixao-fazem-protesto-no-recife-qu.html Acesso em 10/11/2024.

[13] Item 206 do voto de homologação da Pet. de acordo.

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