No mundo atual, a percepção das dificuldades não pode mais se dissociar do remanejamento dos quadros funcionais.
Pensando mais a longo prazo, a percepção das dificuldades possibilita uma melhor visão global dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

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Assim mesmo, a complexidade dos estudos efetuados ainda não demonstrou convincentemente que vai participar na mudança dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

Menos litigância, mais justiça

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O elevado número de processos judiciais no Brasil não é uma novidade. Em um sistema jurídico profundamente influenciado pela cultura da sentença[1], o excesso de ações — muitas vezes movidas de forma desmedida ou irresponsável — impõe um desafio relevante à prática contenciosa atual: a litigância predatória.

O combate a esse fenômeno, além de um passo essencial para assegurar um sistema judicial mais eficiente e célere, também deve ser compreendido sob a ótica de uma análise econômica e comportamental das causas e consequências das decisões judiciais que tocam este assunto.

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Nesse cenário, em 23/10/2024, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou, por unanimidade, a Recomendação 159/2024, dando um novo passo ao combate dessa epidemia[2]. Em resumo, a recomendação tem por objetivo a identificação, o tratamento e a prevenção de condutas processuais que sobrecarregam o Judiciário e comprometem o acesso efetivo à justiça – prática que já vinha sendo implementada por iniciativas das corregedorias estaduais e centros de inteligência de diversas cortes nacionais –, incluindo o Superior Tribunal de Justiça (STJ)[3].

A cartilha se apoia na criação do Painel de Informações da Rede, uma iniciativa que integra dados das corregedorias dos tribunais e estimula a troca de boas práticas entre si, além de facilitar a fiscalização de processos e o monitoramento de comportamentos que possam ser considerados abusivos. Ao centralizar informações e contatos estratégicos, a ferramenta contribuirá para uma atuação ágil e eficaz dos órgãos, impulsionando-os a adotar práticas e protocolos específicos para o tratamento dos casos com indícios de litigância predatória.

Não se deve confundir: as boas práticas previstas na resolução não podem ser entendidas e aplicadas como limitadoras do acesso à justiça pela sociedade, mas importantes balizadores para a busca de uma justiça mais célere e efetiva.

Como dito nas primeiras linhas deste artigo, a litigância abusiva não é novidade, assim como as suas principais causas e, como é cediço, a indiscriminada concessão da benesse da gratuidade de justiça e a quase destituição automática do ônus probatório do litigante são alguns alicerces dessa cultura[4]. A proposta do CNJ não é bloquear a sociedade de buscar a tutela de seus direitos, mas eliminar excessos cometidos de forma indiscriminada.

Todavia, se a resolução acerta em reforçar e constituir práticas que confrontam essas já conhecidas condutas, não aproveita a oportunidade para encaminhar uma discussão sobre novos pontos de atenção. O viés econômico das empresas acionadas judicialmente e a padronização cognitiva das decisões judiciais são a bola da vez.

De um lado, o alto volume de processos gera um aumento no provisionamento de valores para cobrir possíveis perdas ou acordos, bem como eleva os custos operacionais e causa impactos sobre os resultados financeiros (cost of doing business[5]). Por outro, também enseja uma padronização e repetição de julgados genéricos, fundamentados quase que exclusivamente no Código de Defesa do Consumidor, presumindo-se o estado de vulnerabilidade e a hipossuficiência técnica da parte.

Do ponto de vista comportamental, a padronização de decisões surge como subterfúgio para o emprego de uma escolha racional falaciosa: argumentos jurídicos também envolvem simplificações da realidade e partem de determinadas premissas convenientemente assumidas como verdadeiras[6]. Em outras palavras, é mais fácil adotar preferências e padrões decisórios já estabelecidos na massificação de determinados processos do que os individualizar.

Tal postura agrava os impactos às empresas demandadas, em razão da imprevisibilidade do provisionamento de valores, decorrentes tanto da irrazoabilidade quanto da falta de parâmetros adequados para a fixação de indenizações – com destaque para a vulgarização dos danos morais no Brasil[7].

Nessa linha, a economista Luciana Young aborda a necessidade de se considerar o consequencialismo das decisões judiciais nos impactos do desenvolvimento econômico do país, o que é ilustrado pela figura do bumerangue:

[…] uma decisão judicial não impacta somente as partes que trouxeram o litigio, elas são sinalizações para outros indivíduos e empresas, que por sua vez, tomarão decisões que refletirão igualmente em outras pessoas. E a insistência em ignorar as externalidades de suas decisões que faz com que a dogmática jurídica, e as decisões judiciais, acabe gerando o que chamamos de efeito bumerangue. Este acontece, por exemplo, quando um juiz profere uma decisão (normalmente com muito boas intenções) para proteger uma pessoa, por exemplo, um hipossuficiente. Mas, pela ignorância de seus efeitos, a decisão acaba voltando e gerando resultados que prejudicam a própria pessoa que se quis inicialmente proteger — tal qual o bumerangue, que após lançado, volta e pode cortar a cabeça do lançador incauto.[8]

Com efeito, os custos e os impactos imprevisíveis das demandas predatórias causam um cenário de insegurança nos resultados das companhias que operam no país, inviabilizando negócios e diminuindo a atratividade para investimentos[9].

Assim, o bumerangue se volta contra a própria sociedade, uma vez que a majoração dos gastos e a restrita margem de lucro de alguns setores econômicos, se não inviabilizam a continuidade e diminuem a competitividade do mercado, tornam-se um ônus à própria sociedade, a partir da incorporação destes custos pelos preços de produtos e serviços.

Assim, torna-se indispensável uma abordagem que concilie o rigor técnico na aplicação dos institutos jurídicos nas suas decisões com uma análise crítica tanto de sua própria fundamentação, quanto de seus impactos econômicos e sociais, coibindo incentivos para práticas processuais predatórias.

A Recomendação 159/2024 do CNJ representa, sim, um avanço significativo na definição de diretrizes para garantir o equilíbrio entre o direito de ação com o combate às práticas abusivas de litigiosidade.

No entanto, o alcance de resultados efetivos e justos para todos os atores deste cenário deve ser lido em conjunto com uma análise econômica e comportamental, considerando os impactos sistêmicos das decisões judiciais e o seu papel na fomentação da litigância predatória – o que, infelizmente, ainda não foi realizado.


AGUIAR, Márcio. A epidemia da Litigiosidade no Brasil – Interesse (mesmo) de agir? Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/420035/a-litigiosidade-no-brasil-ha-interesse-em-resolver. Acesso em 15 dez. 2024.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS EMPRESAS AÉREAS (ABEAR). Desde 2020, número de processos contra companhias aéreas aumentou, em média, 60% ao ano. ABEAR, 16 dez. 2023. Disponível em: https://www.abear.com.br/imprensa/agencia-abear/noticias/desde-2020-numero-de-processos-contra-companhias-aereas-aumentou-em-media-60-ao-ano/. Acesso em: 18 dez. 2024.

CONJUR. Face jurídica dos negócios: leis e decisões limitam atuação empresarial. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-out-03/face-juridica-negocios-leis-decisoes-limitam-atuacao-empresarial/. Acesso em: 19 dez. 2024.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Estatísticas Processuais de Direito à Saúde. Disponível em: https://justica-em-numeros.cnj.jus.br/painel-saude/. Acesso em: 18 dez. 2024.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Rede de Informações sobre a Litigância Abusiva. Link: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/litigancia-predatoria/. Acesso em: 08 nov. 2024.

FUX, Luiz; BODART, Bruno. Processo Civil e Análise Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 11/12.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Nota Técnica nº 01/2022. Belo Horizonte: TJMG, 2022. Disponível em: https://www.tjmg.jus.br/data/files/49/80/E5/70/DF212810B8EE0B185ECB08A8/NT_01_2022%20_1_%20_1_.pdf. Acesso em: 17 nov. 2024.

WATANABE, Kazuo. Cultura da sentença e cultura da pacificação. In: YARSHELL, Flávio Luiz; ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Estudos em Homenagem à Professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Editora DPJ, 2005, p. 685.

YEUNG, Luciana L. Comportamento Judicial, Decisões Judiciais, Consequencialismo e “Efeitos Bumerangues”. In: YEUNG, Luciana. Análise Econômica do Direito – Temas Contemporâneos. São Paulo: Editora Almedina Brasil, 2020, p. 337-338.

[1] Para o Professor Kazuo Watanabe, ex desembargador do e. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, “toda a ênfase é dada à solução de conflitos por meio de processo judicial, em que é proferida uma sentença, que constitui a solução imperativa pelo critério do certo ou errado, do preto ou branco, sem qualquer espaço para a adequação da solução, pelo concurso da vontade das partes, à especificidade da cada caso.” WATANABE, Kazuo. Cultura da sentença e cultura da pacificação. In: YARSHELL, Flávio Luiz. ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Estudos em Homenagem à Professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Editora DPJ, 2005, p. 685.

[2] Segundo dados analíticos do CNJ, datados de 2023, o Brasil recebeu 35,3 milhões de novos casos, extraídos da “Justiça em Números”. AGUIAR, Márcio. A epidemia da Litigiosidade no Brasil – Interesse  (mesmo) de agir?. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/420035/a-litigiosidade-no-brasil-ha-interesse-em-resolver. Acesso em 22.11.2024.

[3] Dos 57 que compõem a Rede, 17 já possuem algum sistema de monitoramento, embora o acesso e as informações ainda sejam, majoritariamente, restritos aos seus servidores. Além disso, a matéria se encontra em discussão avançada na Corte Especial do STJ que, no julgamento de Tema Repetitivo 1.198, busca definir, dentre outras questões, os poderes cautelares dos magistrados para a proteção do sistema público de justiça contra o uso abusivo ou predatório.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – Rede de Informações sobre a Litigância Abusiva. Link: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/litigancia-predatoria/. Acesso em 08.11.2024

[4] O Centro de Inteligência da Justiça de Minas Gerais, por meio da Nota Técnica nº 01/2022, estimou um prejuízo de mais de dez bilhões para o Estado com relação às demandas abusivas, “pois quase 100% dessas ações é movida sob justiça gratuita”, somente em relação às duas matérias de maior incidência de litigiosidade irresponsável: (i) a “responsabilidade do fornecedor/danos morais”, que ostenta a posição de primeiro lugar de tema mais recorrente nos juizados especiais (8,87% do total) e segundo nas demandas da justiça comum (3,15% do total); e (ii) “obrigações/espécies de contrato”, que ostenta o quinto lugar de tema mais recorrente nos juizados especiais (2,93% do total) e primeiro lugar na justiça comum (5,08% do total). TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Nota Técnica nº 01/2022. Belo Horizonte: TJMG, 2022. Disponível em: https://www.tjmg.jus.br/data/files/49/80/E5/70/DF212810B8EE0B185ECB08A8/NT_01_2022%20_1_%20_1_.pdf. Acesso em: 17.11.2024.

[5] Em dois dos setores econômicos mais atingidos em matéria de consumo, aviação e saúde, o cenário no país é um entrave para novos investimentos e para o desenvolvimento das empresas que já operam no país.

Na área da aviação, segundo a Associação Brasileira de Empresas Aéreas (ABRAER), o Brasil tem 5 mil vezes mais processos judiciais que os Estados Unidos. O Mapeamento sobre Litigância Predatória no Setor Aéreo do Brasil, produzido pela ABRAER, revelou que 98,5% das ações contra companhias aéreas no mundo foram ajuizadas no Brasil. Para o diretor da Para o diretor da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), Ricardo Catanant, “esse é um problema que não afeta só o transporte aéreo nacional, mas também internacional. Empresas deixaram de operar aqui devido a esse alto custo com processos. Companhias estrangeiras já mapeiam esse tema e não querem se estabelecer aqui.”

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS EMPRESAS AÉREAS (ABEAR). Desde 2020, número de processos contra companhias aéreas aumentou, em média, 60% ao ano. ABEAR, 16 dez. 2023. Disponível em: https://www.abear.com.br/imprensa/agencia-abear/noticias/desde-2020-numero-de-processos-contra-companhias-aereas-aumentou-em-media-60-ao-ano/. Acesso em: 18 dez. 2024.

Com relação à saúde suplementar, Dados do painel Estatísticas Processuais de Direito à Saúde, disponibilizado pelo Conselho Nacional de Justiça, apontam um crescimento expressivo nas demandas judiciais relacionadas à saúde privada. Entre 2020 e 2023, o volume de novos processos aumentou cerca de 63,8%, passando de aproximadamente 141 mil para 231 mil registros. Apenas no período de janeiro a setembro de 2024, já foram contabilizados cerca de 215 mil novos casos.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Estatísticas Processuais de Direito à Saúde. Disponível em: https://justica-em-numeros.cnj.jus.br/painel-saude/. Acesso em: 18 dez. 2024.

[6] FUX, Luiz. BODART, Bruno. Processo Civil e Análise Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 11/12.

[7] Nas palavras do Professor Dr. Carlos Alexandre Pereira, em entrevista ao caderno de Direito e Cidadania do Jornal do Brasil, em 15.11.2003: “a dita indústria do dano moral seria a percepção equivocada dos fatos ocorridos em sociedade, que não lesam bens juridicamente protegidos, distorcidamente, com intuito de enxergar-se a lesão moral onde não há, com o objetivo de enriquecimento sem causa.”

[8] YEUNG, Luciana L.. Comportamento Judicial, Decisões Judiciais, Consequencialismo e “Efeitos Bumerangues”. In: YEUNG, Luciana. Análise Econômica do Direito – Temas Contemporâneos. São Paulo: Editora Almedina Brasil, 2020, p. 337-338.

[9] Nesse sentido, “No Brasil, os litígios se sobressaem quando comparados com outros países, seja em número de processos, seja quanto ao valor discutido em juízo em relação ao faturamento da empresa. Em resposta a consulta feita pelo CNJ, empresas transnacionais mostraram a desproporcionalidade entre o número de processos tributários e o montante em discussão. Uma das empresas apontou ter 90% dos processos no Brasil, que representavam 75% do valor em discussão, enquanto o restante do percentual é diluído nos demais países em que atua.

De acordo com essa pesquisa, enquanto o percentual de valores em litígio no Brasil chegaria a 57% do faturamento anual das empresas, nos outros países em que atuam ficaria em 3,3%. Do total de processos tributários das empresas, 98,7% são brasileiros e somente 1,3% é de outros países.”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-out-03/face-juridica-negocios-leis-decisoes-limitam-atuacao-empresarial/. Acesso em 19.12.2024.

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