Musk e STF: controlar as redes sociais ou limitar o exercício do poder?

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Existe um amplo consenso no sentido de que nenhuma democracia é perfeita e que a entrada das redes sociais no cenário político-eleitoral trouxe um incremento à complexidade já inerente a todos os sistemas democráticos. Afinal, trata-se de uma ferramenta que, até o início da década passada, ainda dava seus primeiros passos. São, portanto, pouco mais de 15 anos de amostragem, tempo esse em que as principais redes sociais se expandiram e sofisticaram seus respectivos papéis na arena pública.

Trata-se de algo que é ao mesmo tempo extremamente presente na realidade, mas ainda insuficientemente compreendido. O papel das redes sociais no jogo democrático é evidente, mas ainda não dispomos de dados suficientes para entender o real poder de influência das plataformas nos destinos das nações democráticas soberanas.

Assim, ao mesmo tempo em que a humanidade conquistou uma ferramenta, a democracia ganhou uma gama de desafios. Não apenas a disseminação de notícias falsas é problemática, mas a própria cacofonia que a presença massiva de usuários em um só espaço produz é também um fator que, a todo momento, amplifica certos cenários e muda alguns destinos.

O mais preocupante, no entanto, quando se fala em controle da livre manifestação do pensamento, é que ainda não se estabeleceram premissas sólidas sobre as quais iniciar este processo. A desinformação deve, sim, ser combatida, mas antes é preciso travar um debate muito mais profundo acerca do que, efetivamente, é a desinformação.

O articulista Marcello Enes Figueira, no artigo “O X da questão: democracia e limites à liberdade de expressão nas redes sociais”, publicado neste JOTA, procura delimitar o tipo de manifestação que considera prejudicial à democracia e que autorizaria a atuação do Judiciário. Segundo o autor, o problema é a “disseminação maliciosa de desinformação sobre o nosso processo eleitoral, para infundir desconfiança, afetando valores centrais da nossa democracia”.

Todavia, a par da ampla subjetividade que esse tipo de conceituação carrega, os principais problemas da atuação do Judiciário neste caso não foram sequer identificados pelo autor.

Primeiro, ele refere que “cabe ao Poder Judiciário fazer a ponderação dos valores envolvidos, para assegurar o exercício de um direito com a menor restrição possível ao outro. É trabalho do Judiciário construir as soluções em cada caso”.

Ocorre que, colocando desta forma, o texto parece argumentar que as constantes restrições à manifestação do pensamento e à liberdade de expressão oriundas do inquérito das fake news estariam obedecendo à lógica da dialeticidade, como em um processo judicial comum, onde duas partes litigam em torno de um determinado direito e, ao final – como não existe lei estabelecendo uma solução individual para aquele caso – o Judiciário aplica a técnica da ponderação para definir qual dos direitos em colisão deve ser preservado.

Este é o retrato do sistema funcionando em sua normalidade.

O detalhe capital que o autor não menciona – e que muda tudo – é o fato de que aqui não se trata do Judiciário agindo de forma provocada, mas de uma atividade sui generis, conduzida proativamente pelo Supremo Tribunal Federal, através do famigerado inquérito das fake news, no qual a própria corte exerce os papéis de vítima, investigadora, órgão de acusação e, por fim, decide em última instância.

Além disso, o objeto do inquérito – delimitado na Portaria/GP 69 de 2019 do STF – nunca foi a salvaguarda do sistema democrático brasileiro. Conforme mencionou o próprio ministro Alexandre de Moraes, em seu voto no julgamento da ADPF 572/DF, cuja decisão referendou a legalidade do referido inquérito, “a apuração (…) ocorre em relação a ofensas e agressões que caracterizem crimes contra a honra, contra a integridade física ou contra a vida dos ministros, além de crimes contra a lei de segurança nacional praticados contra o Poder Judiciário”.

Não haveria, portanto, sequer autorização ao uso de tal instrumento para além das finalidades definidas em sua Portaria de Instauração. E mesmo para o estrito cumprimento daquelas finalidades, ainda remanescem fortíssimos argumentos em defesa da ilegalidade do inquérito, notadamente aqueles elencados pelo ex-ministro Marco Aurélio Mello, ao votar pela inconstitucionalidade do inquérito na decisão da ADPF 572/DF. Embora vencidas, até hoje tais ponderações não foram superadas: “Foi o que eu disse: não pode a vítima instaurar inquérito. Uma vez formalizado requerimento de instauração de inquérito, cumpre observar o sistema democrático da distribuição, sob pena de passarmos a ter, como disse, juízo de exceção, em contrariedade ao previsto no principal rol das garantias constitucionais da Carta de 1988”.

De outro lado, o articulista cita que “a lei brasileira assegura recursos e outros meios de impugnação contra decisões judiciais. Mister X pode se valer deles, caso sinta-se prejudicado. Pode continuar operando aqui, com liberdade, mas sob as nossas leis”. Contudo, o autor esquece que a lei brasileira – notadamente a Constituição Federal, lei máxima – criou também instituições responsáveis por receber denúncias, identificar ameaças e lesões a direitos e, a partir daí, utilizarem-se do devido processo legal para fazer cessá-las e restaurar o status quo.

A lógica apresentada pelo articulista seria irretocável se o contexto fosse outro. Se as restrições à liberdade de expressão no Twitter (ou X) decorressem de decisões judiciais comuns, mediante controle a posteriori, exercido no âmbito do devido processo legal e respeitado o princípio da inércia da jurisdição, é evidente que o descumprimento da autoridade de tais decisões seria arbitrário. Mas não é esse o contexto. 

Figueira cita expressamente, ainda, que “o bilionário que controla a rede social X (antes Twitter) está em rota de colisão com o Brasil”. Longe de traduzir a verdade dos fatos e reduzindo a complexidade do embate travado na última semana, tal assertiva apenas reforça um viés e revela um ponto de vista individual do autor.

Por isso, cabe aqui estabelecer uma diferenciação que, embora óbvia, precisa ser colocada: o Brasil e o ministro Alexandre de Moraes não são a mesma coisa. Por enquanto, o bilionário vem antagonizando exclusivamente com o ministro do STF que preside o aludido inquérito e de quem partem as ordens de suspensão e derrubada de contas na plataforma X. E, acrescento: mesmo que Elon Musk estivesse em contenda com um presidente extremamente popular, ainda assim não seria possível sustentar que o bilionário americano está em rota de colisão contra o país inteiro. É um exagero que extrapola as raias da imprecisão e adentra o campo da injustiça.

Paradoxalmente, o artigo, que se propõe a fortalecer o caldo de cultura em torno do combate à desinformação, incorre em omissões que comprometem a avaliação do acerto e desacerto das posturas adotadas tanto por Musk quanto por Moraes.

Na verdade, a entrada do bilionário americano na discussão apenas revela que quando um agente decide cruzar certas linhas democráticas por tamanho período de tempo – como ocorre no inquérito das fake news – inimigos inesperados podem surgir. Qualquer poder que se expande uma hora ou outra vai encontrar os seus limites. E se o limite ao exercício arbitrário de um determinado poder estatal estiver nas mãos de um jogador de fora, que seja ele bem recebido no tabuleiro. Bem-vindo ao jogo, Elon Musk.

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