Norma jurídica e a ‘fusão de horizontes’ em Gadamer

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A norma jurídica não se confunde com o enunciado normativo.  

Esta lição de Friedrich Müller, tão elementar quanto profunda, ressoa nas aulas de Direito Constitucional I, e ecoa através da leva brasileira de autores de Direito Constitucional que trouxeram novos paradigmas, essencialmente alemães, para a metodologia jurídica nacional. O que parece simples na superfície se revela como um processo dinâmico de interpretação, onde o texto é apenas o começo de um percurso mais longo, em que a norma ganha corpo e significado.

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A semiótica, ciência que desvenda a dinâmica da comunicação, ensina que toda troca de informações se estabelece por meio de uma mensagem, que viaja do emissor ao receptor, carregada de signos que, por sua vez, representam algo além de si mesmos. Todo signo é um convite ao entendimento, e, no entanto, signo e significado não se confundem. Enquanto o primeiro é algo objetivo, algo que pode ser visto, ouvido ou sentido, o segundo é resultado da interpretação; é o sentido que o receptor, com sua bagagem pessoal, cultural e histórica, constrói a partir daquele signo. Assim, o signo é concreto; o significado, fluido e mutável, reflete o olhar do intérprete.

Aqui, o papel da linguagem se faz central. Ela não é meramente o meio pelo qual signos são trocados, mas o próprio cenário onde o significado se cria. Não se trata de extrair um sentido pré-existente da mensagem, mas o intérprete, inevitavelmente, cria um significado através da interação entre o signo e quem o interpreta. Este processo é como um campo de batalha silencioso, onde o passado e o presente se encontram, onde o horizonte do emissor e o horizonte do receptor se fundem em algo novo.

Hans-Georg Gadamer, em sua vasta reflexão sobre a hermenêutica, desenvolve essa ideia com maestria. Para ele, a compreensão humana é, desde o início, condicionada pela linguagem. Somos, em suas palavras, imersos em uma teia linguística que modela não apenas nossa comunicação, mas a própria forma como vemos e entendemos o mundo. A linguagem, segundo Gadamer, é mais do que um simples veículo de transmissão de informações; ela é o evento pelo qual o sentido emerge e onde a interpretação acontece1.

No diálogo entre texto e intérprete, na confluência de tradições e perspectivas, surge o conceito gadameriano de “fusão de horizontes”. Nesse processo, o intérprete, com seus preconceitos e pré-compreensões, encontra o texto, e, nesse encontro, o significado não é apenas desvendado, mas construído. A norma jurídica, pois, não consegue ser uma fórmula rígida, mas é algo vivo e contextual.

E é aqui que Friedrich Müller retorna à cena. Em sua Teoria Estruturante do Direito, ele afirma que a norma jurídica é o produto de um processo de concretização. O enunciado normativo, sozinho, é insuficiente; ele necessita de interação, de interpretação. A norma jurídica não existe antes de sua aplicação, mas surge quando o texto encontra os fatos, quando o juiz ou o advogado dialogam com o caso concreto. O enunciado normativo é, pois, o ponto de partida, mas a norma – como produto final – emerge desse encontro.

É dizer: a norma jurídica é produto da fusão de horizontes entre o texto normativo e o intérprete.

O que se tem por fatos2 são também interpretados pelo receptor da mensagem.

Ainda que o Direito tenha suas próprias peculiaridades e um sistema que, à primeira vista, parece autônomo, ele não está imune à hermenêutica geral. O texto normativo, como qualquer outro texto, é uma mensagem. E a norma jurídica, o significado, é o que dela se extrai — ou melhor, o que dela se constrói. O receptor é o intérprete. Cada sentença proferida, cada interpretação oferecida, é um reflexo da fusão entre os horizontes do texto e do intérprete, entre o enunciado normativo e o contexto fático, entre a lei e a vida.

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Tanto Müller quanto Gadamer descrevem a realidade por um caminho semelhante, embora traçado por vias diferentes: o sentido da norma jurídica, que se dá pela linguagem, não é estático. Ele se transforma à medida que a realidade se transforma, à medida que novas perspectivas se apresentam. A norma é, assim, um organismo em constante adaptação, nascido do diálogo entre o presente e o passado, entre o texto e a interpretação. Como na fusão de horizontes gadameriana, a interpretação jurídica, assim como qualquer processo de comunicação, é uma criação contínua, fluida e profundamente situada no tempo e no espaço.

É neste sentido, e apenas neste, que a norma jurídica não é desvelada, mas criada pelo julgador; não há como produzir um significado sem a colisão entre mensagem e intérprete. Todo e qualquer significado decorre da fusão entre mensagem e intérprete e, por silogismo, toda norma jurídica decorre da fusão entre texto normativo e hermeneuta.


[1] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 636.

[2] Os fatos são o objeto cognoscível limitado pela nossa linguagem, o que Kant chama de fenômenos. Kant argumenta que, embora a razão organize a experiência e seja essencial para o conhecimento, ela tem limites intransponíveis. A razão não pode ir além dos limites da própria percepção; ela não pode acessar a “coisa em si” (ou noumenon), a realidade última que está por trás das aparências e que não pode ser captada pelos sentidos humanos. Kant conclui que tudo o que conhecemos são os fenômenos – phaenomenon (KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 4ª edição. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 251-255).

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