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Recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu que, em sanções administrativas (como no caso de multas impostas por órgãos e agências reguladoras) a eliminação da norma que prevê a penalidade ou o seu abrandamento por alteração normativa posterior não podem mais ser usados como matéria de defesa.
Ou seja, para a conduta X, a norma (por exemplo, uma Portaria) Y prevê a multa Z; sendo revogada a norma Y e passando a conduta X a ser lícita, ainda assim, quem a tiver realizado no passado permanece sujeito à multa Z.
O entendimento do STJ é contraintuitivo, fugindo às regras gerais do direito sancionatório (isto é, do direito penal), e terá enorme impacto sobre o dia a dia das indústrias que atuam em setores altamente regulados, como a de alimentos, rações e saúde animal na sua relação com o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA).
Vejamos abaixo, no detalhe, o impacto desse novo cenário jurisprudencial sobre as principais teses de defesa que essas indústrias utilizam nos processos sancionatórios do MAPA e como a discussão do tema ainda pode ter novos desdobramentos nos Tribunais Superiores.
Íntima relação entre o direito penal e o direito administrativo sancionador
“A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” assegura a Constituição Federal Brasileira em seu Artigo 5º, inciso XL. Tal direito, incluído no rol de fundamentais, extrapolou a esfera criminal para passar a ter a sua aplicação no âmbito do direito administrativo sancionador, seguindo a lógica do quem pode mais (penal é o principal e mais repressivo ramo do direito punitivo, podendo, inclusive, privar o agente da sua própria liberdade), pode menos (a pena administrativa constitui-se, em regra, com a imposição de advertência, sanção pecuniária ou a privação do exercício da atividade econômica).
Portanto, entre uma pena prevista na lei penal para determinado crime e as sanções administrativas de multa e de interrupção das atividades impostas por órgão administrativo ou agência reguladora em decorrência do julgamento de um Auto de Infração, existem apenas diferenças quantitativas ou de grau, nunca de essência.
O julgamento do Recurso Especial 2.103.140/ES
No MAPA, apoiado no brocardo tempus regit actum (o tempo rege o ato) que encontra fundamento no Art. 24 do Decreto-lei 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), no Art. 2º, § único, XIII, da Lei 9.784/1999, no Art. 14 do Código de Processo Civil e no Art. 521, § único, do Decreto Federal 9.013/2017 (Regulamento de Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal – RIISPOA), há o entendimento de que a lei não retroage em nenhuma hipótese, sendo aplicada sempre a norma vigente na época do fato gerador. Entretanto, o Judiciário posicionava-se em sentido contrário, permitindo às empresas, em muitos casos, buscar a nulidade de sanções administrativas por via judicial.
O recém-julgado da 1ª Turma do STJ que deu provimento ao recurso especial (REsp 2.103.140/ES) interposto pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) mudou esse cenário. Esse julgamento representa uma inovação no posicionamento do STJ que anteriormente inclinava-se a decidir a favor da retroatividade.
Potencial de novos desdobramentos nos Tribunais Superiores
A decisão é fruto do item 2 da Tese de Repercussão Geral 1.199 do Supremo Tribunal Federal segundo o qual “a norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é irretroativa, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes”.
Contudo, na mesma Tese 1.199, o próprio STF também já reconheceu, conforme item 3, que, em determinados casos, a norma retroage: “A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativas culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente”.
O Pleno do STF até mesmo já chegou a decidir no ARE 803568 que “As alterações promovidas pela Lei 14.231/2021 ao art. 11 da Lei 8.249/1992 aplicam-se aos atos de improbidade administrativa praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado”.
Isso indica que não há um posicionamento judicial definitivo do STJ quanto à questão já que um alinhamento perfeito do tema com a Tese 1.199 do STF dependeria de ajustes que apontassem circunstâncias específicas em que, sim, é possível a retroação da norma mais benéfica – por exemplo, para processos administrativos sem julgamento de recurso. Mas o novo e atual posicionamento do STJ reforça, desde já, o argumento do MAPA e enfraquece a tese favorável à retroatividade da norma administrativa mais benéfica de que comumente se socorre a indústria regulada.
Vejamos algumas implicações imediatas e atuais disso.
A sanção pecuniária oriunda da fiscalização agropecuária federal
Os estabelecimentos que fabricam produtos de origem animal depararam-se, nos últimos anos, com alguns valores distintos de multa. Os mais recentes são: após a revogação expressa do antigo RIISPOA (Decreto 30.691, de 29/03/1952), pelo Art. 541, I, do Decreto 9.013/2017, este, em seu Art. 508, II, “b”, cumulado com o Art. 2º, II, da Lei 7.889/1989, fixou valores de multa de acordo com a gravidade da infração, sendo 100% do valor máximo o montante de R$ 15.648,52 para infrações de natureza gravíssima.
O Decreto 9.013 não teve seus valores de multas aplicados imediatamente porque, na mesma data de publicação do Decreto (30/03/2017), entrou em vigor a MP 772 que elevou o teto do Art. 2º, II, da Lei 7.889/1989 para R$ 500 mil.
Mesmo com a revogação da MP 772 pela MP 794, de 09/08/2017, o MAPA segue com a pretensão de aplicação dos valores da MP 772 para fatos geradores ocorridos durante a sua vigência. O tema está sob discussão judicial, já tendo havido decisões liminares favoráveis à retroatividade dos valores limitados ao teto de R$ 15.648,52. Essas decisões possivelmente serão afetadas pelo novo precedente do STJ.
Após a revogação da MP 772, os valores de multa do Art. 508 sofreram nova alteração, mas dessa vez não substancial, sendo apenas alterado, pelo Decreto 10.468, de 18/08/2020, os percentuais para infrações leves (de 1% a 15% passou-se a 10% a 20%) e moderadas (de 15% a 40% passou-se a 20% a 40%), mantido o teto de R$ 15.648,52.
Foi em 30 de dezembro de 2022 que, com a publicação da Lei 14.515 (Lei do Autocontrole), revogou-se expressamente (Art. 50, VII) o Art. 2º da Lei 7.889/1989 e os valores de multa voltaram a sofrer aumento significativo como não se via desde a MP 772.
No caso, os valores da Lei do Autocontrole estão atualmente vigentes e foram fixados de acordo com o porte do agente regulado, bem como mantendo-se a classificação (natureza) da infração em leve, moderada, grave ou gravíssima, de modo que, para esta última, os “demais” estabelecimentos com porte acima da “média” irão arcar com o valor máximo de R$ 150 mil, que pode, inclusive, ser majorado de acordo com o entendimento do MAPA acerca da reincidência específica (Art. 28, § 1º, da Lei).
Os novos valores de multa são de tal forma abrangentes que incluem não só os estabelecimentos de produtos de origem animal, como também os estabelecimentos de produtos destinados à alimentação animal. No caso destes, a multa do antigo Decreto 6.296/2007 era aplicada no máximo no valor de 10 salários-mínimos (vigente no momento da aplicação).
Agora, ela é aplicada conforme Tabela Anexo à Lei 14.515/2022, tal como preceituam o Art. 121 do Decreto 12.031 de 28/05/2024 – que entrará em vigor em 08/07/2024 – e o Art. 122 (Ato do Ministro de Estado da Agricultura e Pecuária atualizará anualmente os valores das multas de que trata a Lei nº 14.515, de 2022, com base na variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor – INPC).
Para as multas administrativas impostas pelo MAPA, portanto, não é interessante aos estabelecimentos a aplicação da retroatividade dos valores atualmente praticados. É no tocante à interrupção de atividades econômicas que interessa aos agentes fiscalizados pelo MAPA o retroagir das normas.
A sanção de interrupção de atividades econômicas aplicada pelo MAPA
O RIISPOA estabeleceu em 2017 duas modalidades de suspensão de atividades: quando causar risco ou ameaça de natureza higiênico-sanitária ou quando causar embaraço à ação fiscalizadora (Art. 508, IV) e duas modalidades de interdição total ou parcial do estabelecimento: quando a infração consistir na adulteração ou na falsificação habitual do produto ou quando se verificar, mediante inspeção técnica realizada pela autoridade competente, a inexistência de condições higiênico-sanitárias adequadas (Art. 508, V).
As sanções de suspensão e de interrupção das atividades por questão sanitária são menos gravosas, podendo ser levantadas após o atendimento das exigências que as motivaram (Art. 517-A, caput), inclusive não sendo aplicadas novamente ao fim do processo quando já tiverem sido aplicadas por medida cautelar (Art. 517-A, § 3º). Já a suspensão por embaraço e a interdição por adulteração ou falsificação habitual são aplicadas ao término do processo administrativo em regra pelo prazo mínimo de 07 (sete) dias (Art. 517, caput).
Independentemente da gravidade dessas sanções, fato é que ambas foram revogadas com a edição da Lei 14.515/2022 tal como reconhecido pela Diretora do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal (DIPOA, a 2ª instância administrativa do MAPA) em Ofício-Circular. Não obstante, o MAPA permanece aplicando as penas de interrupção de atividades aos estabelecimentos – especialmente a de suspensão – sob a justificativa de que estas medidas punitivas estavam vigentes à época dos fatos.
Somente durante a pandemia da Covid-19 que o MAPA chegou a suspender a aplicação das penas de interrupção de atividades por meio de despacho do Secretário de Defesa Agropecuária e de Ofício-Circular. A suspensão, todavia, não teve como fundamento a discussão a respeito da retroatividade da Lei 14.515/2022 mais benéfica (que sequer existia na época), mas sim a tentativa de evitar o desabastecimento alimentício da população num cenário de crise sanitária mundial sem precedentes.
Encerrada a pandemia, o MAPA retomou a execução das sanções de interrupção das atividades econômicas, inicialmente por meio da Portaria SDA/MAPA 1.091, de 11 de abril de 2024 e atualmente por meio da Portaria SDA/MAPA 1.118, de 20 de maio de 2024 que revogou a anterior.
Não satisfeito, o MAPA ainda está atualmente se valendo das figuras já revogadas da suspensão por embaraço e da suspensão sanitária para, por analogia, sustentar a aplicação da suspensão de registro, de cadastro ou de credenciamento prevista no Art. 27, IV, da Lei 14.515/2022. Isto é, o MAPA, de um lado, afirma que a Lei 14.515/2022 revogou tacitamente algumas disposições do art. 508 do Decreto 9.013/2017, pois suprimiu do mundo o seu fundamento de existência e ainda estabeleceu disposições com elas completamente incompatíveis; mas, de outro lado, adota os dispositivos legais revogados para servir de fundamento análogo para a aplicação da nova penalidade administrativa.
Perspectivas
A suspensão de registro tal como vem sendo aplicada é uma combinação de leis no tempo na qual o MAPA criou uma terceira lei ao extrair alguns dispositivos, de forma isolada, de um diploma legal já não mais aplicáveis (Art. 514 a 518 do RIISPOA) e outro dispositivo de outro diploma legal (Art. 27, IV, Lei 14.515/2022), alterando por completo o espírito normativo desta Lei Federal, criando um conteúdo diverso do previamente estabelecido pelo legislador.
Tratando-se de suspensão de atividade empresarial, a penalidade só se sustenta se o empreendimento não atender às determinações legais expedidas pelos órgãos regulamentares e tem a finalidade maior de adequação da atuação do estabelecimento em seu nicho de mercado.
Com isso, não é coerente aplicar a uma empresa a grave penalidade de suspensão de atividade, se não for constatado pela Administração que, passados tantos anos, o substrato fático que deu suporte à penalidade ainda persiste. A presunção é de que as falhas outrora ocorridas, diga-se uma vez mais, anos atrás, já tenham sido reparadas e não atentam mais contra direitos de terceiros.
Em casos como esse, a guinada jurisprudencial do STJ pode levar a distorções relevantes, com impactos catastróficos no dia a dia de empresas e na economia brasileira. Espera-se que o Superior Tribunal de Justiça, na oportunidade em que provocado sobre este tema, confirme que o caso da suspensão é uma exceção à irretroatividade da norma mais benéfica – e que passe a mapear outras circunstâncias em que essa regra geral de irretroatividade produz distorções deletérias.