Novo paradigma cooperativo na relação fisco-contribuinte

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Em meio a tantas iniciativas do governo estadual para romper a tradicional relação belicosa entre fisco e contribuintes (tais como as decorrentes do programa Nos Conformes, instituição da transação tributária, dentre outras medidas de autorregularização), o que podemos dizer sobre a atuação do TIT-SP?

O tribunal administrativo embarcou nessa mudança cultural e tem colaborado para a quebra de paradigma da relação entre administração e administrado ou persiste no caminho do rigor e incentivo à litigiosidade excessivos?

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Neste artigo, analiso o Acórdão proferido pela Câmara Superior do TIT-SP no julgamento do Recurso Especial interposto pela Fazenda Pública no Auto de Infração (AIIM) 4140357-5, ocorrido em 6 de junho, e traço um paralelo com manifestação do tribunal em julgamento ocorrido no passado em caso semelhante para avaliar se há alinhamento entre os novos anseios do Estado e sua atuação concreta.

Afinal, estamos conseguindo colocar em prática os ideais vislumbrados pelo Estado de quebra da dualidade fisco x contribuinte, aumento da confiança no poder público, promoção de segurança jurídica, melhora de ambiente de negócios? Veremos adiante.

No AIIM 4140357-5, que já foi objeto de análise em artigo do advogado Eduardo Suessmann, publicado neste JOTA em 5 de setembro, o contribuinte havia sido autuado por (i) se creditar indevidamente do ICMS destacado em nota fiscal emitida em hipótese não permitida pela legislação (item 1 do AIIM), e (ii) emitir nota fiscal sem a correspondente saída de mercadoria do estabelecimento (item 2 do AIIM).

O relatório do caso afirma que o contribuinte cometeu um erro de digitação na nota fiscal emitida para transferência de mercadoria para sua filial e, em razão da impossibilidade do seu cancelamento, a filial emitiu nota fiscal contra a matriz para anular os efeitos da nota fiscal originalmente emitida com erro. Não houve efetiva circulação de mercadoria, tampouco falta de recolhimento do ICMS. Tal fato restou incontroverso nos autos.

A DTJ-2/UJ-Campinas manteve o AIIM em primeira instância e, ao julgar o Recurso Ordinário do contribuinte, a 7ª Câmara Julgadora do TIT-SP reformou parcialmente a decisão recorrida para cancelar o item 1 do AIIM e reduzir a multa do item 2 do AIIM para 20% do valor originariamente exigido.

A Fazenda Pública recorreu dessa decisão alegando que a prática de uma irregularidade não poderia ser sanada por meio de outra irregularidade, não se admitindo que o contribuinte crie metodologia própria de escrituração de documentos, cancelamento ou “anulação de efeitos” de documentos fiscais emitidos, especialmente quando o procedimento já encontraria previsão na Portaria CAT 162/2008.

Ao apreciar o Recurso Especial da Fazenda Pública, o relator, juiz Alberto Podgaec, deu provimento ao recurso para restabelecer o item I do AIIM por entender que “não cabe ao contribuinte criar procedimentos para anular os efeitos da emissão errônea de um documento fiscal, mormente quando há disciplina normativa para tanto, prevista na Portaria CAT 162/2008”. Referido voto foi acompanhado por mais 6 juízes.

O juiz Edison Aurélio Corazza pediu vista dos autos e proferiu voto divergente argumentando que deveria ser aplicado ao caso concreto o entendimento firmado pela própria Câmara Superior no julgamento do Recurso Especial interposto pela Fazenda Pública no AIIM 4022090-4, que foi utilizado para justificar a decisão recorrida. Seu voto foi acompanhado por mais 6 juízes.

Vale esclarecer que o AIIM 4022090-4 mencionado pelo juiz Edison Aurélio Corazza discutia, dentre outros itens, infração consistente na falta de recolhimento do ICMS em função de escrituração irregular de nota fiscal de saída de mercadorias (o contribuinte escriturou nota fiscal como se tivesse sido cancelada, ao passo que a situação tratava de devolução de mercadoria).

Segundo o Acórdão proferido naqueles autos em 30.5.2019, por decisão unânime, a Câmara Superior do TIT-SP cancelou o item relativo à cobrança do imposto e manteve a cobrança de multa por descumprimento de obrigação acessória. Os fundamentos foram os seguintes:

“O procedimento adequado, à evidência, não foi observado pela autuada, que não emitiu a nota fiscal de entrada e praticou indevido “cancelamento” da nota fiscal de saída.

Houve, portanto, infração à legislação tributária.

Pondero, todavia, que o caso concreto encerra relevante particularidade. Na espécie, o próprio agente fiscal autuante assevera que não houve falta de recolhimento do ICMS, aspecto que motivou as decisões proferidas nas instâncias ordinárias. Ademais, cuidou-se de infração isolada, ao que parece motiva por desconhecimento da legislação, sem que houvesse intenção dolosa do sujeito passivo ou prejuízo financeiro ao erário.

Assim, se de um lado as particularidades do caso indicam que seria excessivo exigir da autuada imposto relativo à saída em questão, de outro não parece adequado que seja desconsiderada a prática de conduta objetivamente infracional.

Ante o quadro apresentado, a solução mais adequada me parece o provimento parcial do recurso especial da Fazenda, de modo a (a) manter a determinação do decisório recorrido que excluiu a exigência do ICMS, o que se justifica unicamente em função das peculiaridades do caso e (b) reformar a aludida decisão para restabelecer a exigência concernente à multa aplicada, dado que efetivamente ocorreu a infração à legislação tributária, passível de penalização conforme posto no AIIM exordial, anotando-se que a preservação da multa atende também ao caráter pedagógico que deve orientar a atuação da Administração Pública” (não destacado no original).

Como se nota do trecho acima, a Câmara Superior entendeu que a cobrança de imposto em hipótese de infração isolada, sem a prática de dolo ou qualquer prejuízo financeiro ao erário, seria excessiva e inadequada. A medida mais adequada seria aplicar multa pelo descumprimento da legislação tributária, inclusive com efeito pedagógico. Segundo o juiz Edison Aurélio Corazza, tal racional seria perfeitamente aplicável ao AIIM 4140357-5.

Carlos Afonso Della Monica também apresentou voto divergente pelo improvimento do Recurso Especial da Fazenda Pública, tendo sido acompanhado por uma juíza. No seu voto, o juiz ressaltou que o caso concreto trata de uma única ocorrência, em que as notas fiscais foram emitidas para cancelar a primeira operação, no mesmo período de apuração e com os mesmos valores, mercadorias e destinatário/remetente, sem a efetiva circulação de mercadoria e impacto no recolhimento de tributo.

Houve menção à decisão proferida pela Câmara Superior no AIIM 4022090-4 para justificar a proporcionalidade da punição aplicada vis-à-vis o caso concreto, de maneira a se evitar uma punição excessiva do contribuinte. Adicionalmente, deveria ser levado em consideração o disposto no artigo 63 do RICMS/00, que permite a tomada de crédito com vistas a anular os efeitos de uma saída tributada quando não houver a entrega de mercadoria ao destinatário.

O julgamento do AIIM 4140357-5 se encerrou de forma favorável ao contribuinte, por maioria, com um placar de 9 x 7. Dado esse contexto, o que os votos acima nos dizem sobre a atuação da Câmara Superior do TIT-SP? O placar apertado a favor do contribuinte deveria ser visto como uma vitória para os contribuintes ou um retrocesso em comparação à atuação pretérita do tribunal administrativo? Explico meu ponto de vista tendo como parâmetro a decisão proferida pela Câmara Superior no AIIM 4022090-4, usada como fundamento da decisão recorrida proferida no AIIM 4140357-5.

Como mencionado acima, há similitude fática entre os casos (prática isolada de infração à legislação tributária por descumprimento de procedimentos de cancelamento/escrituração de notas fiscais que não implicou falta de recolhimento de imposto).

O resultado do julgamento dos 2 AIIMs foi praticamente o mesmo: cancelado o item da autuação referente ao recolhimento do imposto por creditamento indevido e mantida a cobrança de multa por descumprimento de obrigação acessória (com uma pequena diferença referente à redução da multa no caso do AIIM 4140357-5 em virtude da aplicação do artigo 527-A do RICMS/00). O que causa surpresa, contudo, é a mudança na postura do Tribunal: a decisão proferida no AIIM 4022090-4 foi unânime, enquanto a decisão proferida no AIIM 4140357-5 foi por maioria (9 x 7).

Evidente que de 2019 para 2024 houve troca de juízes e mudança na composição da Câmara superior, o que possivelmente poderia levar ao placar discutido. O que merece atenção e ponderação, entretanto, é que 4 juízes que votaram no AIIM 4022090-4 (pela manutenção do cancelamento da cobrança do imposto por creditamento indevido) mudaram seu entendimento ao julgar o AIIM 4140357-5 (pelo restabelecimento da cobrança do imposto estadual decorrente de creditamento indevido). Apesar de não ser possível saber ao certo as razões dessa alteração, elas com certeza geram dúvidas, insegurança e possibilidade de aumento de litígio.

Se, a princípio, a decisão proferida no AIIM 4140357-5 poderia ser vista com bons olhos por ter aplicado a razoabilidade ao caso concreto, a mudança no entendimento dos juízes causa preocupação ou, ao menos, algum desconforto. Como mencionou o colega Eduardo Suessmann no artigo anteriormente publicado, “embora a irregularidade formal do procedimento acima tenha sido relativizada pela Câmara Superior, com o cancelamento da exigência fiscal, não é possível afirmar que se trata de um posicionamento consolidado do Tribunal”.

Vou além da questão sobre a pacificação do tema pelo TIT-SP para refletir se teremos um retrocesso na atuação do tribunal que promova a rivalidade entre fisco e contribuintes. Podemos ter segurança sobre a atuação do órgão julgador e confiança nos seus precedentes? A mudança de entendimento de alguns juízes resulta de uma alteração das suas convicções sobre a aplicação do direito ou é meramente circunstancial?

A incerteza sobre as respostas a estas perguntas certamente vai de encontro a todas as iniciativas propostas pelo governo de transparência, cooperação e criação de ambiente seguro de negócios. O TIT-SP avança no sentido da colaboração, segurança e prosperidade? Se analisarmos o recorte feito neste artigo, não.

Esta análise é, evidentemente, apenas um recorte da realidade. Mas, como “o diabo mora nos detalhes”, é preciso ter clareza de que o que pode passar despercebido por um olhar desatento focado no resultado (no caso concreto analisado, favorável ao contribuinte), pode acabar comprometendo seriamente a credibilidade do órgão julgador, a segurança jurídica e as metas de redução de litigiosidade do Estado.

Autoria:

Gabriela Conca – Mestre em Direito (LL.M.) pela Harvard Law School. Pós-graduada em Economia pela FGV. Bacharel em Direito pela PUC-SP). Pesquisadora do Projeto Repertório Analítico de Jurisprudência do TIT – NEF-FGV/SP. Sócia fundadora do escritório Conca Advogados

Coordenação:

Eurico Marcos Diniz de Santi
Eduardo Perez Salusse
Kalinka Bravo
Lina Santin

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