O assédio processual contra jornalistas na pauta do STF

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Nesta quarta-feira (17), o STF deve julgar o tema do assédio processual contra jornalistas e comunicadores. A questão é discutida no âmbito de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs): a ADI 6792, proposta pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI) – que aborda também outros assuntos ligados à liberdade de expressão –, e a ADI 7055, ajuizada pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).

O julgamento conjunto tinha se iniciado em outubro do ano passado, com o voto da relatora, ministra Rosa Weber, que não admitira as ações nessa parte, mas foi interrompido por pedido de vista do ministro Luís Roberto Barroso, retornando agora para deliberação no plenário físico.

O assédio processual, também chamado de assédio judicial ou judicialização predatória, envolve o uso abusivo do direito de ação, por meio do ajuizamento orquestrado de grande número de demandas de reparação de danos relacionadas aos mesmos fatos – em geral, notícias ou manifestações desfavoráveis a pessoas, empresas ou instituições poderosas –, distribuídas por diferentes comarcas. A tática emprega a faculdade prevista na Lei dos Juizados Especiais Cíveis, que permite a propositura da ação no domicílio do autor (art. 4º, III, da Lei 9.099/1995).

Por meio dessas ações judiciais, cria-se gravíssimo ônus para os réus, que têm de se defender em múltiplos processos tramitando em diferentes localidades, o que consome recursos – muitas vezes escassos –, tempo para viagens e deslocamentos e muita energia. O objetivo principal das ações não é o êxito processual, mas a criação de um severo ônus pessoal para os réus, para desencorajá-los de prosseguir nas suas críticas e denúncias contra as práticas de alguma instituição, empresa ou pessoa poderosa.

A generalização dessa tática gera silenciamento, e a sociedade perde o acesso a informações e pontos de vista importantes sobre temas de interesse público. Ocorre o que a literatura da liberdade de expressão denomina de “chilling effect” (efeito resfriador): por temor, as pessoas deixam de se manifestar, o que gera o resfriamento da esfera pública, em detrimento da democracia.

Além de atentar contra a liberdade de expressão, o assédio processual viola também a ampla defesa, por criar dificuldades desproporcionais e injustificadas para que os jornalistas e críticos se defendam em juízo. Ninguém ignora que, no Brasil, o direito de acesso à justiça é amplamente assegurado. Contudo, os direitos não podem ser exercidos abusivamente. O assédio processual caracteriza clara hipótese de abuso de direito de ação, figura já reconhecida pela jurisprudência brasileira (veja-se STJ, REsp 1.817.845).

Um dos casos exemplares dessa prática envolveu a jornalista Elvira Lobato, que respondeu a 111 ações com pedidos de dano moral, propostas em diferentes estados da federação, em razão de matéria jornalística publicada em 2007 no jornal Folha de S.Paulo que denunciava o crescimento de negócios duvidosos da Igreja Universal do Reino de Deus. As ações, propostas por fiéis da Universal, foram todas julgadas improcedentes, mas o resultado intimidatório foi alcançado: a premiada jornalista não apenas parou de cobrir as atividades da igreja, como precipitou a sua aposentadoria.

Em outro caso de assédio judicial conhecido, a falecida cantora Rita Lee foi alvo de mais de 50 ações propostas por policiais militares do Sergipe, em razão de críticas que dirigiu à PM em show realizado naquele estado. Mais recentemente, o comentarista de TV Ricardo Sennes respondeu a mais de 90 processos, em 35 comarcas diferentes, após fazer críticas em programa televisivo contra a revogação de portarias do Exército que impunham controles sobre a aquisição de armamentos. Ele foi processado por membros de clubes de atiradores e colecionadores de armas, que, alegando terem se sentido ofendidos com os comentários, orquestraram o ajuizamento de uma avalanche de ações contra o comunicador.

Também ganhou repercussão o caso – especialmente chocante por ter como autores agentes do próprio sistema de justiça – envolvendo a propositura concertada de dezenas de ações individuais contra jornalistas da Gazeta do Povo, do Paraná, por juízes e promotores paranaenses, em diferentes comarcas daquele estado.

O motivo foi a publicação de matéria que denunciava a percepção de remunerações que ultrapassavam o teto constitucional dos servidores. Os jornalistas tiveram que se deslocar para inúmeras comarcas do interior para se defender, com os custos e desgastes daí decorrentes, apenas por terem cumprido o seu papel, noticiando criticamente um tema de evidente interesse público. Neste caso, porém, a manobra foi reprimida pelo STF, que, ao julgar a Reclamação 23.899, extinguiu todos os processos, registrando que tais ações consistiam em “abuso do direito de ação para obter, como vantagem colateral, o silenciamento (chilling effect) dos órgãos de imprensa”.

Tais casos não constituem singularidade brasileira. Pelo contrário, representam um fenômeno global, que vem sendo chamado de “litígio estratégico contra a liberdade de expressão” – em inglês, Strategic Litigation Against Public Participation (SLAPP) –, designação cunhada pelos professores norte-americanos George W. Pring e Penelope Canan.

A gravidade do problema em todo mundo foi destacada pela Relatora Especial sobre o Direito à Liberdade de Expressão e Opinião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em relatório intitulado Reinforcing media freedom and the safety of journalists in the digital age. Para combater o fenômeno, o Parlamento Europeu aprovou recentemente uma diretriz para orientar os poderes Legislativo e Judiciário dos Estados-membros a identificar, regular e julgar casos de SLAPPs.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), por sua vez, destacou, no julgamento do Caso Palatio Urrutia vs. Equador: “Esse tipo de processo, conhecido como ‘SLAPP’ (strategic lawsuit against public participation), constitui uso abusivo de mecanismos judiciais que devem ser regulados e controlados pelo Estado”.

No Brasil, ainda não há legislação específica acerca do tema. O CNJ, em tentativa de equacionar o problema, editou a Resolução 122/2022, recomendando aos tribunais “a adoção de cautelas visando a coibir a judicialização predatória que possa acarretar o cerceamento de defesa e a limitação da liberdade de expressão”. A iniciativa deve ser louvada, mas, como a recomendação não é de caráter impositivo, mesmo depois da sua edição continuam a surgir novos casos de assédio processual.

Há meios para combater essa prática antiética e inconstitucional, que estão em discussão nas ADIs 6792 e 7055. É necessário estabelecer que, sempre que se vislumbrar possibilidade de assédio processual, todas as ações devem ser reunidas no foro do domicílio do réu, o que reduzirá substancialmente o ônus para sua defesa. Ademais, caracterizado o assédio, o caso deve ser enquadrado como litigância de má-fé, dando ensejo ao pagamento da multa correspondente pelos autores das ações abusivas. E deve também ser reconhecido o cabimento da reparação dos danos morais e materiais gerados pelo assédio processual – o que envolve, inclusive, o pagamento de danos morais coletivos, já que toda a sociedade é prejudicada quando ocorre o silenciamento da imprensa e da esfera pública.

Desde pelo menos 2009 – quando foi julgada a ADPF 130, que reconheceu a invalidade da Lei da Imprensa do regime militar –, o STF é considerado um bastião de defesa da liberdade de expressão. A corte proferiu muitas decisões relevantes nessa matéria, construindo sólida jurisprudência em defesa das liberdades comunicativas.

Nos últimos anos, contudo, premido pela necessidade de conter ataques autoritários contra a democracia feitos sob o manto da liberdade de expressão, o tribunal parece ter feito uma inflexão nessa matéria. Atualmente, algumas vozes têm se erguido contra excessos nessa nova postura do STF, e elas não vêm apenas da extrema direita. Por isso, o julgamento das ADIs 6792 e 7055 representa uma excelente oportunidade não só para fortalecer a proteção da liberdade de expressão no país, como também para que a nossa Suprema Corte reafirme e demonstre a solidez do seu compromisso com esse direito fundamental, que é tão essencial para a vida democrática.

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Daniel Sarmento representa, em caráter pro-bono, organizações da sociedade civil que figuram como amici curiae nas ADIs 6.792 e 7.055

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