O caso Khelif e a participação de atletas intersexo no desporto de elite

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Nos últimos dias ganhou amplo espaço na mídia a luta de boxe da categoria até 66 kg entre a argelina Imane Khelif e a italiana Angela Carini, nos Jogos Olímpicos de Paris 2024. Carini abandonou a luta em menos de 50 segundos após o seu início. A polêmica reside na suposta superioridade física de Khelif, que seria atleta intersexo, autorizada pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) a competir, ainda que tivesse sido reprovada nos testes de sexo.

De acordo com o Escritório do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), “pessoas intersexo” são aquelas que “nascem com características sexuais físicas (como anatomia sexual, órgãos reprodutivos, padrões hormonais e/ou padrões cromossômicos) que não se enquadram nas definições típicas para corpos masculinos ou femininos”[1]. Verifica-se, portanto, que intersexo é o indivíduo que apresenta, biologicamente, características de ambos os gêneros, não se enquadrando integralmente, do ponto de vista fisiológico, no sexo feminino ou masculino.

A discussão tornou-se ainda mais complexa por conta da exclusão da boxeadora argelina do Campeonato Mundial de Boxe Feminino em Nova Déli, que ocorreu em março de 2023, em virtude da presença de cromossomos XY nos seus exames pré-campeonato realizados pela Associação Internacional de Boxe (IBA).

A exclusão foi amparada pelo item 4.2.1 das Regras Técnicas e de Competição do IBA[2], o qual dispõe que “os boxeadores competirão contra boxeadores do mesmo gênero, ou seja, Mulheres contra Mulheres e Homens contra Homens, de acordo com as definições destas Regras”, sendo estes, para tanto, submetidos a testes de gênero aleatórios e/ou direcionados, conduzido pela IBA. Em caso de resultado adverso, o boxeador será imediatamente notificado pela entidade e desqualificado da competição, tal como ocorreu com Khelif.

Assim, considerando que o mesmo regulamento preconiza que “mulher” é a pessoa que possui cromossomos XX e “homem” aquele que apresenta cromossomos XY[3], e, diante da presença de cromossomos XY nos testes de Khelif, ela acabou desclassificada do Mundial do ano passado. Outro caso bastante parecido é o da boxeadora chinesa Lin Yu-ting, excluída do Mundial de Boxe pelo mesmo motivo, embora também tenha sido autorizada pelo COI a competir nas Olimpíadas de Paris 2024.

Após a luta protagonizada por Khelif e Carini, o IBA publicou, no último dia 1º, uma nota[4] ratificando a sua posição contrária quanto à participação da atleta argelina nas competições femininas, visando a proteção da integridade do esporte feminino e das atletas em face da superioridade física de outras competidoras. No dia seguinte, a entidade anunciou[5] que concederá o prêmio financeiro de campeã olímpica à boxeadora italiana que competiu com Khelif, no montante de US$ 100 mil, conforme decidido pelo presidente Umar Kremlev, em manifesto apoio à atleta.

Em 2009, um notório caso pautado na intersexualidade de uma competidora foi o protagonizado pela corredora sul-africana Caster Semenya, à época com 19 anos. Na véspera da final da competição de 800 m do Campeonato Mundial de Atletismo, sediado na Alemanha, a Associação Internacional de Federações de Atletismo (IAAF) solicitou que ela se submetesse ao teste de sexo, no qual se constatou uma produção muito superior de testosterona com relação ao geralmente observado em mulheres.

De 2011 a 2019, Semenya enfrentou uma série de processos judiciais até que o Tribunal Arbitral do Esporte (CAS) endossou as regulamentações da IAAF, que havia implementado regras oficiais que restringem a participação de atletas femininas com níveis elevados de testosterona, alegando que essa condição proporciona uma vantagem injusta.

As referidas regras exigem que atletas femininas com diferenças de desenvolvimento sexual (DSD) utilizem medicamentos para reduzir a testosterona se quiserem competir em provas de pista que vão de 400 m a 1 milha. [6]

No cenário esportivo brasileiro, a temática das atletas intersexo gerou amplo debate com a judoca Edinanci Silva, que neste ano passou a integrar o Hall da Fama do Comitê Olímpico do Brasil. Nascida em 23 de agosto de 1976 em Sousa (PB), Edinanci é uma judoca brasileira com vasta experiência. Sua carreira inclui participações em quatro edições dos Jogos Olímpicos, duas vitórias nos Jogos Pan-Americanos e dois pódios em campeonatos mundiais, realizados em Paris 1997 e Osaka 2003.

Ela ganhou destaque nas Olimpíadas de Atlanta 1996, quando sua condição intersexo gerou ampla discussão. O episódio foi marcado pela exposição de exames médicos, que deveriam ter sido mantidos em sigilo, e pela cobertura sensacionalista da mídia, que frequentemente a chamava de forma pejorativa de “hermafrodita”.[7]

Observa-se, portanto, uma problemática comum entre os casos de Khelif e Silva: a mídia sensacionalista. Após a luta contra Carini, diversos veículos midiáticos foram autores de matérias infundadas que preconizavam que a argelina seria uma atleta trans, incitando o discurso de ódio e a discriminação em face dela, em um comportamento essencialmente inconsequente e irresponsável enquanto encarregado pela disseminação de informações.

O episódio evidenciou ainda mais a relevância quanto à cautela que o público em geral deve ter ao ler uma notícia com palavras exageradamente agressivas, ou que careça de qualquer amparo fático em suas colocações, sob pena de acarretar consequências inimagináveis na vida daqueles que se tornaram alvo de matérias falaciosas.

Ressalta-se que, em novembro de 2021, o COI emitiu uma nova diretriz[8] atribuindo às Federações Internacionais a tarefa de determinar os requisitos de elegibilidade de um(a) atleta, de modo a atender de modo mais específico as necessidades e particularidades de cada uma das modalidades. Tem-se, contudo, que essas organizações deverão observar dez princípios basilares, quais sejam: inclusão, prevenção de danos, não discriminação, justiça, ausência de presunção de vantagem, abordagem baseada em evidências, primazia da saúde e da autonomia corporal, abordagem centrada nas partes interessadas, direito à privacidade e revisões periódicas.

Nessa esteira, diante do mais recente ocorrido com a boxeadora argelina, o porta-voz do COI, Mark Adams, em entrevista coletiva realizada no último dia 2, ratificou a decisão do Comitê quanto à inclusão de Khelif nos Jogos de Paris, explicando que “a boxeadora argelina nasceu mulher, foi registrada como mulher, viveu sua vida como mulher, lutou boxe como mulher, tem um passaporte feminino”[9], frisando que as duas atletas (Imane Khelif e Lin Yu-ting) sempre competiram nas categorias femininas, inclusive em competições sancionadas pela IBA, tendo sido ambas vítimas de uma decisão repentina da associação que não visou o devido processo legal para tanto.

Em nota[10], o COI explicou que o regramento médico estabelecido pela Unidade de Boxe de Paris 2024 (PBU), que organizou a competição, foi baseado nas regras de boxe dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, as quais já estavam em vigor antes mesmo da suspensão da IBA pelo COI em 2019, e da retirada de seu reconhecimento em 2023.

A Federação deixou de ser considerada regular pelo COI em razão da falta de transparência financeira e sustentabilidade, a persistência de processos antigos relacionados a árbitros e juízes, e a não implementação das medidas propostas pelo Grupo de Reforma de Governança do COI, conforme decisão regularmente publicada pelo CAS[11].

Por fim, o Comitê explicou que, diante da ausência de uma Federação Internacional de Boxe devidamente reconhecida, a modalidade permanece, até o momento, fora do programa esportivo dos Jogos Olímpicos de Los Angeles 2028, devendo as Federações Nacionais e Confederações apresentarem uma Federação Internacional do esporte para que o boxe passe a integrar as próximas Olimpíadas.

Diante do exposto, nota-se que o episódio protagonizado por Imane Khelif e Angela Carini nos Jogos de Paris em nada se relaciona à suposta transexualidade da boxeadora argelina, conforme disseminado por alguns veículos de mídia, sendo em verdade, algo relacionado à um aspecto fisiológico – não de gênero. Ademais, o caso tornou ainda mais evidente o caráter eminentemente político das Olimpíadas, ao passo que o ocorrido tomou uma proporção muito mais elevada em razão da discussão pública entre o COI e a IBA, que não é reconhecida pelo Comitê.

Por fim, também foi possível atestar os impactos da mídia sobre o esporte, uma vez que ela exerceu um importante papel para a incitação das ondas de ódio contra Khelif, que contava com regular participação nos Jogos Olímpicos, uma vez que o boxe não é coordenado pelo IBA, e sim pelo próprio COI, órgão que autorizou a sua inclusão diante do correto cumprimento de todos os requisitos para tanto.

CNN BRASIL. O que diz o COI sobre as boxeadoras reprovadas em teste de gênero. 02 de agosto de 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/olimpiadas/o-que-diz-o-coi-sobre-as-boxeadoras-reprovadas-em-teste-de-genero/. Acesso em 03 de agosto de 2024.

INTERNATIONAL BOXING ASSOCIATION. IBA is to award Angela Carini of Italy with Olympic champion prize money. 02 de agosto de 2024. Disponível em: https://www.iba.sport/news/iba-is-to-award-angela-carini-of-italy-with-olympic-champion-prize-money/. Acesso em 03 de agosto de 2024.

INTERNATIONAL BOXING ASSOCIATION. IBA reaffirms the position and removal of boxers from all events, aims to protect female boxers, and condemns both the International Olympic Committee and World Boxing for allowing ineligible athletes to compete. 01 de agosto de 2024. Disponível em: https://www.iba.sport/news/iba-reaffirms-the-position-and-removal-of-boxers-from-all-events/01. Acesso em 03 de agosto de 2024.

INTERNATIONAL BOXING ASSOCIATION. IBA TECHNICAL & COMPETITION RULES. 03 March 2024. Disponível em: https://www.iba.sport/wp-content/uploads/2023/04/20240303-IBA-Technical-Competition-Rules-v7-clean.pdf. Acesso em 03 de agosto de 2024. P. 17.

INTERNATIONAL OLYMPICS COMMITEE. Caster Semeya. Disponível em: https://olympics.com/pt/atletas/caster-semenya. Acesso em 03 de agosto de 2024.

PIRES, B. G.. As políticas de verificação de sexo/gênero no esporte: Intersexualidade, doping, protocolos e resoluções. Sexualidad, Salud y Sociedad (Rio de Janeiro), n. 24, p. 215–239, set. 2016. Acesso em 03 de agosto de 2024.

INTERNATIONAL OLYMPICS COMMITEE. IOC framework on fairness, inclusion and non-discrimination on the basis of gender identity and sex variations. Disponível em: https://stillmed.olympics.com/media/Documents/Beyond-the-Games/Human-Rights/IOC-Framework-Fairness-Inclusion-Non-discrimination-2021.pdf#_ga=2.219716894.621299853.1686571450-594927581.1678187184 . Acesso em 03 de agosto de 2024. 

INTERNATIONAL OLYMPICS COMMITEE. IOC Statement on CAS decision regarding withdrawal of recognition of IBA. 03 de abril de 2024. Disponível em: https://olympics.com/ioc/news/ioc-statement-on-cas-decision-regarding-withdrawal-of-recognition-of-iba. Acesso em 03 de agosto de 2024.

INTERNATIONAL OLYMPICS COMMITEE. Joint Paris 2024 Boxing Unit/IOC Statement. 01 de agosto de 2024. Disponível em: https://olympics.com/ioc/news/joint-paris-2024-boxing-unit-ioc-statement. Acesso em 03 de agosto de 2024.

NAÇÕES UNIDAS. Violações de Direitos Humanos das Pessoas Intersexo: Nota Informativa. Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Disponível em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/documents/issues/discrimination/lgbt/BackgroundNoteHumanRightsViolationsagainstIntersexPeople_PR.pdf. Acesso em 03 de agosto de 2024.

[1] NAÇÕES UNIDAS. Violações de Direitos Humanos das Pessoas Intersexo: Nota Informativa. Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Disponível em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/documents/issues/discrimination/lgbt/BackgroundNoteHumanRightsViolationsagainstIntersexPeople_PR.pdf. Acesso em 03 de agosto de 2024.

[2] INTERNATIONAL BOXING ASSOCIATION. IBA TECHNICAL & COMPETITION RULES. 03 March 2024. Disponível em: https://www.iba.sport/wp-content/uploads/2023/04/20240303-IBA-Technical-Competition-Rules-v7-clean.pdf. Acesso em 03 de agosto de 2024.  P. 17.

[3] INTERNATIONAL BOXING ASSOCIATION. IBA TECHNICAL & COMPETITION RULES. 03 March 2024. Disponível em: https://www.iba.sport/wp-content/uploads/2023/04/20240303-IBA-Technical-Competition-Rules-v7-clean.pdf. Acesso em 03 de agosto de 2024. P. 08 e 09.

[4] INTERNATIONAL BOXING ASSOCIATION. IBA reaffirms the position and removal of boxers from all events, aims to protect female boxers, and condemns both the International Olympic Committee and World Boxing for allowing ineligible athletes to compete. 01 de agosto de 2024. Disponível em: https://www.iba.sport/news/iba-reaffirms-the-position-and-removal-of-boxers-from-all-events/01. Acesso em 03 de agosto de 2024.

[5] INTERNATIONAL BOXING ASSOCIATION. IBA is to award Angela Carini of Italy with Olympic champion prize money. 02 de agosto de 2024. Disponível em: https://www.iba.sport/news/iba-is-to-award-angela-carini-of-italy-with-olympic-champion-prize-money/. Acesso em 03 de agosto de 2024.

[6] INTERNATIONAL OLYMPICS COMMITEE. Caster Semeya. Disponível em: https://olympics.com/pt/atletas/caster-semenya. Acesso em 03 de agosto de 2024.

[7] PIRES, B. G.. As políticas de verificação de sexo/gênero no esporte: Intersexualidade, doping, protocolos e resoluções. Sexualidad, Salud y Sociedad (Rio de Janeiro), n. 24, p. 215–239, set. 2016. Acesso em 03 de agosto de 2024.

[8] INTERNATIONAL OLYMPICS COMMITEE. IOC framework on fairness, inclusion and non-discrimination on the basis of gender identity and sex variations. Disponível em: https://stillmed.olympics.com/media/Documents/Beyond-the-Games/Human-Rights/IOC-Framework-Fairness-Inclusion-Non-discrimination-2021.pdf#_ga=2.219716894.621299853.1686571450-594927581.1678187184 . Acesso em 03 de agosto de 2024.

[9] CNN BRASIL. O que diz o COI sobre as boxeadoras reprovadas em teste de gênero. 02 de agosto de 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/olimpiadas/o-que-diz-o-coi-sobre-as-boxeadoras-reprovadas-em-teste-de-genero/. Acesso em 03 de agosto de 2024.

[10] INTERNATIONAL OLYMPICS COMMITEE. Joint Paris 2024 Boxing Unit/IOC Statement. 01 de agosto de 2024. Disponível em: https://olympics.com/ioc/news/joint-paris-2024-boxing-unit-ioc-statement. Acesso em 03 de agosto de 2024.

[11] INTERNATIONAL OLYMPICS COMMITEE. IOC Statement on CAS decision regarding withdrawal of recognition of IBA. 03 de abril de 2024. Disponível em: https://olympics.com/ioc/news/ioc-statement-on-cas-decision-regarding-withdrawal-of-recognition-of-iba. Acesso em 03 de agosto de 2024.

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