O começo do fim dos monopólios digitais?

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Em agosto deste ano, a justiça federal dos EUA, por meio do Tribunal Distrital de Columbia, decidiu que o Google é monopolista e agiu ilegalmente para manter a posição de dominância no mercado de busca online.

O julgamento — o primeiro desse tipo contra uma grande empresa de tecnologia — concluiu que as práticas comerciais da empresa violaram a lei antitruste estadunidense, o Sherman Act, por mais de uma década.

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Nos EUA, diferentemente do Brasil[1], a decisão sobre a aplicação da legislação antitruste se dá por meio da provocação do Judiciário em suspeita de violação da lei, seguindo os trâmites de um processo judicial. No caso, a ação foi movida pelo Departamento de Justiça dos EUA (Department of Justice – DOJ) e um grupo de procuradores-gerais do estado que contestava uma série de contratos de distribuição exclusivos com desenvolvedores de navegadores, fabricantes de dispositivos móveis e operadoras de telefonia móvel.

Esses contratos teriam impedido o acesso a partes significativas dos mercados de busca geral e anúncios de texto de busca geral por concorrentes do Google. Os acordos incluíam, por exemplo, a exigência de que navegadores adotassem o Google como ferramenta de busca padrão, que fabricantes de aparelhos móveis pré-instalassem aplicativos do Google e a proibição da instalação de aplicativos de empresas concorrentes. A justiça estadunidense considerou que tais acordos possibilitaram a monopolização ilegal desses mercados.

Mas qual o problema de apenas uma empresa fornecer o serviço de busca, se o serviço oferecido é eficiente e ofertado a custo monetário zero para os usuários, além de ser utilizado por bilhões de pessoas no mundo inteiro? E por que o direito econômico deve se preocupar com isso?

No caso de ferramentas de busca como o Google, há ganhos de qualidade com a escala, ou seja, quanto mais pessoas usam o serviço, mais informações alimentam o algoritmo de buscas, potencialmente levando a melhores resultados. Onde está, portanto, o problema que a concentração nesses mercados pode causar? E quem ganha e quem perde em função da falta de concorrência nesses mercados?

Esses questionamentos são mais fáceis de compreender em mercados analógicos, pois neles os problemas da concentração de mercado podem parecer mais palpáveis. Por exemplo, em uma cidade em que há apenas um posto de combustíveis, esse fornecedor poderia cobrar preços mais elevados, já que os motoristas não teriam opções para abastecer seus veículos. Também, o fornecedor poderia potencialmente oferecer um serviço de qualidade inferior, uma vez que não há pressão competitiva para melhoria do serviço.

No caso de monopólios digitais, principalmente quando não há necessidade de pagamento de mensalidade ou taxa toda vez que o serviço é utilizado – por exemplo, quando pesquisamos um termo na ferramenta de buscas do Google – quais os efeitos nocivos da concentração e como identificá-los?

A justiça federal norte-americana identificou três principais efeitos anticompetitivos nos acordos celebrados pelo Google em relação a buscas em geral. O primeiro foi o fechamento de mercado. A corte decidiu, com base na jurisprudência relevante, que há fechamento de mercado quando uma parte substantiva do mercado está sujeita a acordos de exclusividade.

A decisão considerou que o fato de 50% de todas as buscas nos Estados Unidos serem realizadas por meio de pontos de acesso padrão cobertos pelos acordos de distribuição do Google, evidenciaria o fechamento do mercado.

O segundo ponto examinado pela decisão foi o fato de os acordos de exclusividade terem impedido rivais de adquirirem a escala necessária para oferecerem produtos competitivos. Ferramentas de busca criam um ciclo virtuoso em que mais dados levam a uma melhor qualidade de busca, atraindo mais usuários, o que, por sua vez, atrai mais anunciantes e receita publicitária, permitindo maiores investimentos para alcançar ainda mais escala.

O terceiro problema identificado pela decisão diz respeito à redução dos incentivos dos rivais para investir e inovar no desenvolvimento de ferramentas de busca. O argumento, nesse caso, foi de que o fechamento de canais de distribuição de serviços de busca pelo Google teria desincentivado outros competidores a investirem em ferramentas de busca (incluindo a Microsoft e a Apple).

A corte também argumentou que não haveria nenhuma justificativa para esses efeitos anticompetitivos, uma vez que o caráter exclusivo dos acordos do Google não era necessário para alcançar benefícios relevantes para melhoria da experiência do usuário, a promoção da concorrência, ou benefícios para consumidores nos mercados de navegadores e dispositivos móveis.

A decisão concluiu que há, portanto, problemas graves na falta de competitividade do mercado de buscas, com impactos negativos para consumidores e para a economia digital. Os acordos celebrados pelo Google criaram barreiras à entrada para novos competidores, limitando a escolha dos consumidores e prejudicando a inovação no setor.

A ausência de competidores resultou em um mercado menos dinâmico e menos eficiente. Consequentemente poderia levar os consumidores a pagarem preços mais altos (mesmo que não sejam pagos diretamente em dinheiro), a terem acesso a serviços de menor qualidade e a menos opções, enquanto os potenciais competidores têm suas oportunidades de desenvolvimento limitadas. É por isso que o direito antitruste se preocupa e prevê sanções e formas de intervenção nos mercados atingidos em casos de condenação.

Dada a condenação do Google e a identificação dos danos decorrentes da monopolização do mercado, o próximo passo será identificar os remédios adequados. A justiça dos EUA agora decidirá quais medidas serão impostas à empresa para corrigir as condições de concorrência nos mercados monopolizados. Há várias propostas em análise, incluindo a  cessação dos acordos comerciais anticompetitivos, bem como remédios estruturais para a separação de partes do Google com a determinação da venda de seu navegador Chrome.

É relevante notar que, embora a decisão do caso se aplique apenas ao Google, os problemas relacionados à concentração de mercado em plataformas digitais vão muito além dessa empresa e do universo das ferramentas de busca online. De fato, apesar de histórica e paradigmática – por ter sido tomada na jurisdição onde a maior parte das grandes empresas de tecnologia são baseadas –, a decisão é pontual e se refere a uma situação específica, após os fatos terem se repetido por décadas.

Isso é consequência da natureza da intervenção antitruste, que se concentra em investigar condutas específicas, ex post, e demanda recursos e tempo para investigações aprofundadas que, quando levam a condenação, resultam apenas em remédios específicos, restritos às empresas condenadas.

Há um crescente entendimento na literatura e entre formuladores de políticas públicas de que o direito antitruste tradicional, com sua abordagem focada em casos individuais e investigações prolongadas, pode ser insuficiente para conter os riscos que a monopolização de mercados digitais e a concentração de poder econômico nas mãos de poucas empresas representam.[2]

É preciso, portanto, considerar a decisão do caso Google em um contexto mais amplo de adensamento do arcabouço jurídico-institucional em diferentes jurisdições ao redor do mundo, para responder de forma mais eficiente e tempestiva aos desafios dos mercados digitais.

O exemplo mais comumente mencionado é o Digital Markets Act da União Europeia, aprovado ao final de 2022 e já em vigor, mas as experiências internacionais recentes vão muito além desse modelo. As novas ferramentas do direito econômico vão além da lógica típica do direito antitruste. Apesar dos  instrumentos jurídicos adotados e do universo de empresas alvo variarem, essas iniciativas compartilham a característica de ampliar os mecanismos à disposição do poder público para fomentar mercados digitais mais competitivos, com ganhos para consumidores, para ecossistemas empresariais locais e para a produtividade como um todo.

No Japão, por exemplo, uma nova lei foi aprovada em junho deste ano introduzindo uma série de obrigações ex ante com foco em sistemas operacionais de smartphones e lojas de aplicativos, cuja aplicação ficará a cargo da Japan Fair Trade Commission (JFTC), autoridade antitruste japonesa.

No Reino Unido, a lei Digital Markets, Competition and Consumers Act 2024 (DMCC), aprovada em maio de 2024, estabelece regras para designação de empresas com posição de mercado estratégica (strategic market status) em atividades digitais, que poderão ser sujeitas a requerimentos de condutas específicos, designados ex ante pela autoridade de defesa da concorrência daquele país, a Competition and Markets Authority (CMA).

Também no Brasil há iniciativas similares em curso. Em outubro deste ano, a Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda publicou o relatório “Plataformas Digitais: aspectos econômicos e concorrências e recomendações para aprimoramentos regulatórios no Brasil”, elaborado com base na revisão da literatura recente, experiência internacional, e contribuições recebidas via uma tomada de subsídios conduzida no início do ano.

No documento, a SRE sugere não apenas medidas para tornar a aplicação da lei de defesa da concorrência brasileira (Lei 12.529/2011) mais eficiente, como também a criação de um novo arcabouço regulatório, complementar ao antitruste tradicional, para identificação de agentes econômicos de relevância sistêmica, que poderão ser sujeitos de obrigações específicas. Com isso, o Brasil também busca ampliar o leque de ferramentas de direito econômico disponíveis para responder de forma tempestiva e eficiente aos novos desafios colocados pelas dinâmicas competitivas das plataformas digitais.

Essas experiências revelam que diferentes países não têm ignorado o desafio imposto à legislação antitruste pela concentração de poder das empresas de tecnologia. A decisão do juiz Amit P. Mehta, do Tribunal Distrital de Columbia, nos apresenta novas lentes e fôlego para refletir que a dominância de mercados por uma empresa ou outra não deve ser considerada um produto espontâneo do mercado e tampouco ser confundida com eficiência.

Dela decorre também o reconhecimento de que práticas e padrões típicos do antitruste clássico já são insuficientes e demandam a construção de novas respostas institucionais.


[1] No Brasil, a autoridade competente para analisar questões de defesa da concorrência é o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), uma autarquia federal, podendo o Judiciário ser acionado ao longo do processo administrativo para questionamentos processuais ou para revisão das decisões administrativas.

[2] Ver, por exemplo, Diane Coyle, “Practical competition policy implications of digital platforms.” Antitrust Law Journal 82.3 (2019): 835-860, https://www.bennettinstitute.cam.ac.uk/media/uploads/files/Practical_competition_policy_tools_for_digital_platforms.pdf; Jean Tirole, “Competition and the industrial challenge for the digital age.” Annual Review of Economics 15.1 (2023): 573-605, https://doi.org/10.1146/annurev-economics-090622-024222. Para uma síntese de alguns relatórios internacionais sobre o tema, ver Fillipo Lancieri & Patrícia Alessandra Morita Sakowski. “Documento de Trabalho 05/2020-Concorrência em mercados digitais: uma revisão dos relatórios especializados.” Documentos de Trabalho 2020050 (2020), https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/documentos-de-trabalho/2020/documento-de-trabalho-n05-2020-concorrencia-em-mercados-digitais-uma-revisao-dos-relatorios-especializados.pdf

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