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No contexto da administração pública, a estratégia de postergar ações concretas por meio de reuniões e regras provisórias é amplamente conhecida. Esse comportamento visa, em muitos casos, manter o status quo, o que invariavelmente gera benefícios para poucos em detrimento de muitos.
No que tange à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), tal prática se reflete de forma preocupante na condução da regulação do transporte rodoviário interestadual de passageiros. Apesar das reiteradas decisões de instâncias da mais alta relevância, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal de Contas da União (TCU), favoráveis à ampla abertura de mercado, a ANTT continua a adotar medidas que limitam a concorrência e protegem agentes estabelecidos.
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Para contextualizar: a discussão ora proposta se dá no âmbito da revisão do Marco Regulatório do Serviço de Transporte Regular Rodoviário Coletivo Interestadual de Passageiros (comumente conhecidos como “ônibus de linha”).
De acordo com o site da ANTT, o objetivo da revisão iniciada em dezembro de 2020 e finalizada no apagar das luzes de dezembro de 2023, por meio de deliberação tomada praticamente durante a comemoração do Natal, seria “ampliar a concorrência, melhorar a qualidade do serviço, simplificação dos processos de atos de outorga e liberação econômica, melhoria da transparência, governança e compliance”. O pretexto era esse, mas o acompanhamento do imbróglio e uma leitura atenta do texto final mostram que o que estava por trás era justamente o contrário.
O exemplo mais recente e emblemático dessa postura altamente restritiva aparece agora, dez meses depois de publicado o texto do marco, em que surge, pela primeira vez, a proposta de um modelo de pregão no âmbito da abertura da chamada “janela extraordinária” de 2024.
O comunicado oficial da ANTT, do último dia 27 de setembro, deixa claro que a seleção de operadores para essa primeira janela – a dos mercados desatendidos ou com presença de uma única transportadora – será feita com base no critério de “maior lance”, ao invés de um modelo de autorização livre, que seria mais coerente com os princípios de concorrência e eficiência.
Além disso, conforme detalhado no Comunicado de Abertura de Janela Extraordinária, a ANTT estipula que esses mercados – veja, ainda não estamos falando dos mercados principais e sim de linhas que nem atendimento têm hoje – poderão receber, no máximo, duas novas transportadoras. Nesse contexto, indaga-se: por qual motivo, razão ou circunstância as empresas incumbentes do setor, que já estão instaladas nessas linhas, não precisarão passar por esse leilão?
Esse critério de seleção, justificado pela agência como forma de evitar “aventureiros no processo”, é um flagrante desvio do modelo de autorização defendido pelo STF e pelo TCU. Conforme já assinalado no Acórdão 230/2023 do TCU e nas ADIs 5549 e 6270 do STF, o regime ideal para a regulação do transporte interestadual de passageiros deve ser o de ampla concorrência, sem a imposição de barreiras artificiais, como o limite de autorizações. Um processo de leilão, ao contrário, cria um obstáculo financeiro que favorece empresas com maior capacidade de oferecer lances mais altos, perpetuando uma situação de concentração de mercado.
Com o advento da Lei Federal 14.298, de janeiro de 2022, que ratificou a Lei 12.996/2014 e modificou a Lei 10.233/2001, a ANTT passou a contar com uma ferramenta importante para abertura do mercado de transporte coletivo em linha, na medida em que expressamente a lei determina que “não haverá limite para o número de autorizações para o serviço regular de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros” (art. 47-B).
Em fevereiro de 2023, por sua vez, o TCU proferiu o acórdão 230/2023, que, dentre outros temas, determinou: (i) que pedidos de transferência de mercados deverão ser analisados nos termos da Lei 14.298/2022, ou seja, considerando a ausência de limite para o número de autorizações, e (ii) que a lei em referência paute, também, a análise dos pedidos de novas autorizações. Medidas concretas deveriam ser informadas ao TCU no prazo de 90 dias.
Ainda sob esse contexto, cumpre destacar que o STF entendeu, por intermédio dos julgamentos das ADIs 5549 e 6270, ambos publicados em abril de 2023, que “o Poder Executivo e a ANTT devem providenciar as formalidades complementares introjetadas no acórdão do Tribunal de Contas da União e na Lei 14.298/2022, nos termos do voto do relator”, o ministro Luiz Fux.
Ao adotar um modelo de licitação – embora siga, erroneamente, classificando autorização –, a ANTT desrespeita o espírito da legislação e, em última análise, as próprias decisões judiciais do Supremo que visam abrir o mercado de maneira mais ampla. O critério financeiro de maior lance fere o princípio da impessoalidade e cria um ambiente de concorrência desigual, onde a capacidade financeira, e não a qualidade do serviço, torna-se o fator determinante.
Na prática, essa escolha regulatória injustificada traz sérios prejuízos ao consumidor final. A adoção do pregão limita a entrada de novos operadores menores ou inovadores, que poderiam trazer benefícios à qualidade do serviço prestado.
Em vez de ampliar a concorrência, a ANTT age de forma contrária ao interesse público, ao manter um mercado concentrado e ineficiente. É evidente que, ao impor o pregão, a agência reguladora está mais preocupada em criar uma reserva de mercado do que em garantir um serviço de transporte de qualidade para os brasileiros.
O pregão desvirtua completamente o conceito de “autorização”, que deve ser conferida de maneira ampla, sem a imposição de barreiras financeiras que restrinjam a entrada de novos players. Ao priorizar o critério do maior lance, a ANTT perpetua o domínio das grandes empresas, reforçando o monopólio no setor e ignorando a determinação do STF e do TCU de fomentar a concorrência.
Por sua vez, a limitação do número de novas transportadoras, prevista no item 2 do Comunicado, representa um retrocesso significativo no caminho para a abertura de mercado, cujos efeitos são sentidos diretamente pelo consumidor. Quanto maior o número de operadores, maior é a probabilidade de redução de preços e aumento da qualidade do serviço, já que as empresas passam a competir para conquistar usuários. Ao restringir a entrada de novos atores, a ANTT favorece os operadores já estabelecidos, que, historicamente, têm prestado serviços de qualidade questionável, conforme reconhecido por diversos estudos e relatórios.
Além disso, essa limitação contraria a lógica do modelo de autorização, que visa justamente permitir que qualquer operador que preencha os requisitos legais possa entrar no mercado. Ao impor um teto no número de novas operadoras, a ANTT fere a isonomia e a livre concorrência, princípios basilares do regime jurídico de autorizações públicas. O que se vê, na prática, é uma reserva de mercado disfarçada, mantendo os serviços nas mãos de poucos e, assim, frustrando o espírito de abertura defendido pela legislação e pelas cortes superiores.
Para além do processo seletivo e da limitação de operadores por linha, o que por si já seriam motivos de sobra para questionar a proposta da agência, há ainda incertezas sobre quais mercados serão afetados. Conforme consta no item 4, a Superintendência da agência deverá divulgar a relação dos mercados que deixaram de ser atendidos, bem como dos mercados atendidos por apenas uma transportadora apenas três dias antes do início do período de recebimento de solicitação de mercados. Diante disso, desse mistério, como é que os novos entrantes conseguirão se preparar para concorrer às novas linhas?
É inadmissível que, após tantos anos de decisões judiciais claras e contundentes, a ANTT continue a adotar modelos regulatórios que beneficiam poucos em detrimento da maioria. O pregão proposto para a janela extraordinária de 2024, aliado aos outros mecanismos de restrição criados, é um retrocesso que afronta o princípio da livre concorrência e impede o desenvolvimento de um mercado verdadeiramente aberto e competitivo.
Cabe à sociedade, e especialmente aos operadores do direito, questionar essas práticas e exigir que a ANTT cumpra o seu papel de reguladora com vistas ao bem comum, e não aos interesses de poucos. Não é necessário grande esforço para notar que a concentração dessa atividade econômica – o transporte coletivo de passageiros – prejudica severamente as pessoas que precisam utilizar o serviço.
Situações de reserva de mercado geram a cobrança de preços altos por serviços inadequados. Este é, precisamente, o panorama verificado por quem visita um terminal rodoviário, e a existência e sucesso de novos modelos, como o fretamento colaborativo, que funcionam a partir de plataformas tecnológicas, somente reforçam a constatação ora trazida ao conhecimento do leitor.
Como em outras oportunidades, identificar “para que serve” determinada deliberação nem sempre é uma atividade simples. Descobrir “a quem” ela serve, por outro lado, é uma tarefa que usualmente consome poucos instantes de pesquisa. É difícil entender qual a dificuldade para a abertura de um mercado pautado justamente pelo excesso de regulamentos, mas é muito fácil perceber quem são os beneficiados do resultado ocasionado pelas medidas restritivas adotadas pelo poder público.