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No último dia 10 de setembro terminou uma disputa homérica envolvendo a Apple, os Estados Unidos e a Irlanda, que resultou em uma conta de US$ 13 bilhões em tributos devidos – por conta de um sanduíche.
Em 1991 e em 2007, a Irlanda publicou duas tax rulings em favor de duas empresas pertencentes ao Grupo Apple (Apple Sales International – ASI e Apple Operations – AOE). Ambas empresas eram incorporadas na Irlanda, sem que ali residissem para fins fiscais. Tais rulings aprovaram os métodos utilizados pelas empresas para determinar a parcela de seu lucro que seria tributável na Irlanda em decorrência da atividade de suas respectivas filiais irlandesas.
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Os rulings estavam temperando o double Irish with a Dutch sandwich: uma técnica de economia fiscal que era legalmente permitida, envolvendo uma série de normativas e saltos transfronteiriços financeiros, empregados por algumas big techs, que envolve o uso de uma combinação de subsidiárias irlandesas e holandesas para transferir lucros para jurisdições com baixo índice de tributação.
Em resumo, o double Irish with a Dutch sandwich funcionava da seguinte forma: a “Apple Irlanda”, uma shell company, comercializava iPhones para outra empresa do grupo, a “Apple Holanda”, que, por sua vez, comercializava o produto aos clientes. A empresa holandesa, então, coletava a receita da venda, mas pagava o máximo possível de volta à shell company irlandesa por meio de taxas de licenciamento bastante altas.
Esse processo permitia que a Apple declarasse uma pequena receita na Holanda e fosse tributada sobre esse valor a uma menor carga tributária de 25% da Irlanda, quando comparada aos EUA. Era o sanduíche favorito das big techs: se a receita tivesse sido declarada nos EUA, a carga tributária seria de 39%. Em 2016, em razão de forte pressão internacional ao redor do BEPs, o ministro de Finanças da Irlanda aprovou medidas com objetivo de revisitar o regime de tributação, por meio das quais as empresas com estruturas estabelecidas poderiam se beneficiar do sistema antigo até 2020.
Em razão disso, no mesmo ano, a competition commissioner da União Europeia acusou a Irlanda de outorgar, de 1991 a 2014, benefícios fiscais abusivos às empresas pertencentes ao Grupo Apple, o que levou a transferências de investimentos injustas de outros países para a Irlanda. Em 2020, a General Court anulou a decisão da Comissão, entendendo que o órgão não teria comprovado de forma suficiente que tais empresas se aproveitavam de vantagem seletiva.
A União Europeia decidiu em setembro que a Apple se beneficiou indevidamente das regras fiscais da Irlanda e deve pagar € 13 bilhões em tributos ao governo irlandês. Isso faz parte da tentativa de repressão da UE aos preferential tax agreements. O fundamento da decisão foi que a General Court teria se equivocado ao consignar que a Comissão não teria comprovado que as licenças de propriedade intelectual detidas pela ASI e pela AOE e os lucros relacionados, gerados pelas vendas de produtos Apple fora dos Estados Unidos, deveriam ter sido alocados às filiais irlandesas para fins fiscais.
O governo irlandês declarou, em comunicado, que desde a ordem da UE em 2016, a Irlanda mudou suas regras sobre a residência fiscal de empresas, a atribuição de lucros de filiais de empresas não residentes e ajustou suas regras fiscais de acordo com acordos internacionais. Portanto, a decisão do tribunal da UE sobre a Apple seria “apenas de importância histórica”.
A decisão cita, ainda, o princípio Arm’s Lenght como um benchmark para avaliar se uma empresa está, ou não, recebendo vantagem seletiva de alguma jurisdição.
A análise de decisões europeias, especialmente no contexto atual, em que o Brasil se ajusta para integrar a OCDE, é importante por revelar tendências que podem ser adotadas pelo fisco brasileiro.
Aliás, as autoridades fiscais brasileiras já beberam de fontes estrangeiras em diversas matérias: a teoria do propósito negocial, por exemplo, que é largamente utilizada pelo Carf para avaliar a validade de planejamentos tributários, não possui previsão no ordenamento brasileiro – e se trata de teste introduzido pelo precedente norte-americano Gregory v. Helvering (293 U.S. 465) da década de 1930.
Assim, a decisão da União Europeia sobre a Apple, tal qual o bater de asas de uma borboleta, pode gerar grandes impactos em terras brasileiras – as quais, como se sabe, acabaram de adotar uma nova legislação para reger preços de transferência (e alocação de lucros a entidades de grupos multinacionais) que consagra o princípio Arm’s Lenght em seu artigo 2º, em consonância com a OCDE.
Aguardemos as cenas dos próximos capítulos – talvez com menos fast food e mais planejamentos tributários conscientes e preocupados com substância.