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O golpe de 1964 e a bandeira da legalidade

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O argumento de defesa da legalidade ocupou um lugar central na legitimação do golpe civil-militar que depôs João Goulart em 1964.[1]

Um primeiro elemento desse argumento é o anticomunismo, que cresceu no contexto da Guerra Fria, quando os países do “mundo livre”, forçosamente reunidos sob a capitania dos Estados Unidos, se viram alarmados ante a expansão do modelo soviético. Nessa conjuntura, o governo norte-americano envidou um esforço enorme no enfrentamento ideológico dos “inimigos vermelhos”. Esse esforço se projetou, em diversos lugares, mediante apoio logístico, financeiro e político a grupos que, envolvidos na geopolítica local, se mostrassem inclinados a refutar e combater o perigo comunista.[2]

No Brasil dos anos 1960, o sentimento anticomunista funcionou para convencer as pessoas de que medidas contra as esquerdas, ainda que ilegais, se faziam necessárias. Isso se justificava, contraditoriamente, na alegação de que o comunismo professava, em suas manifestações e em seu modo de agir, uma incompatibilidade essencial e inevitável com a democracia e a Constituição.

No entanto, a ideia não prevaleceu de imediato. Nos primeiros anos do governo de João Goulart, não obstante a conexão histórica do presidente com o trabalhismo, o sindicalismo e o espólio de Vargas, as elites não professavam, a sério, a perspectiva de que Jango era comunista. Esse cenário mudou lentamente. Isso aconteceu, em primeiro lugar, porque o próprio Goulart, pressionado por uma ala mais radical das esquerdas, assumiu posturas e praticou atos que robusteceram a campanha crítica ao PTB e ao governo. Além disso, enquanto a imagem do presidente era desestabilizada, um complexo golpista, armado em torno do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), ocupou-se de disseminar o discurso anticomunista e de posicioná-lo contra Jango.[3]

A bomba estourou de fato em março de 1964. Em um comício ocorrido na Central do Brasil, o presidente assinou o decreto da Superintendência da Política Agrária, que declarava de interesse social para fins de desapropriação, entre outros terrenos, as áreas rurais às margens das rodovias federais. Dias depois, Jango enviou ao Congresso uma mensagem propondo, entre outras medidas, a instituição do voto dos analfabetos; a realização da reforma agrária, sem o pagamento de indenizações prévias em dinheiro; a permissão de os alistáveis se elegerem; a supressão das cátedras vitalícias nas universidades; a delegação de poderes do Legislativo ao Executivo e a realização de um plebiscito sobre as reformas de base. A iniciativa foi recebida com assombro pelo PSD e pela UDN.[4]

O golpe se consolidou nos dias seguintes. Dele participaram não só as Forças Armadas, mas também parte importante do empresariado, da elite política conservadora e do capital internacional atuante no Brasil. A caserna levantou a bandeira da legalidade – transformando-a, como dissemos, em argumento para justificar o arbítrio –, porém o debate sobre a constitucionalidade do golpe resultou mais amplo e capilarizado. Nesse debate, a contribuição de juristas e instituições jurídicas foi fundamental para garantir o repertório e o vocabulário necessários à construção da ideia de um “golpe constitucional”.

Com relação às Forças Armadas, o que orientou a tomada de uma posição contra o que se entendia como a ameaça do comunismo soviético foi a doutrina da segurança nacional. Segundo essa doutrina, para assegurar o bem-estar nacional, a sociedade como um todo precisaria se mobilizar em prol de uma vitória na guerra contra o comunismo. Sob a gestão da Escola Superior de Guerra, campanhas, publicações e cursos ajudaram a disseminar o prisma de uma luta entre as “nações livres”, lideradas pelos Estados Unidos, e o totalitarismo comunista, alimentado pela União Soviética. O discurso anticomunista cresceu, dentro e fora da caserna, com o fomento da Escola.

No meio civil, a conexão entre oposição ao governo e atos conspiratórios não se fez tão cristalina. No caso do Poder Judiciário, o apoio à conspiração se deu, inicialmente, mediante uma aceitação tácita. Após a deposição de Jango, porém, o STF aderiu abertamente ao golpismo. Quando o presidente do Senado, senador Auro de Moura Andrade, declarou vaga a Presidência da República – providência sem respaldo na Constituição, já que Jango ainda estava no Brasil –, o presidente do Supremo, ministro Ribeiro da Costa, acompanhou presencialmente o ato de posse de Ranieri Mazzilli como presidente. Depois disso, alguns integrantes do tribunal aplaudiram publicamente o golpe.

O Conselho Federal da OAB, por sua vez, adotou postura menos reticente. A partir de 1962, em pronunciamentos publicados nos principais jornais do país, o Conselho salientou seu temor ao perigo comunista; manifestou sua contrariedade à proposta de reforma agrária defendida pelo governo, classificando-a como atentatória ao direito de propriedade e desnecessária ao fim de proporcionar o acesso dos trabalhadores rurais às terras; condenou a revolta dos sargentos, os ataques ao Supremo e a atitude dúbia do presidente; e aplaudiu o golpe, proclamando-o como uma afirmação de “sobrevivência da Nação Brasileira (…) sob a égide intocável do Estado de Direito”.[5]

Por fim, é importante mencionar o apoio que juristas, professores e estudiosos do Direito deram à intervenção militar contra João Goulart. Esse apoio se fez decisivo não apenas antes dos acontecimentos da madrugada de 31 de março, mas especialmente nos dias seguintes, em que a atuação de personalidades como Francisco Campos e Carlos Medeiros Silva, posteriormente referendada por uma enxurrada de palestras e publicações acadêmicas, buscou estabelecer uma justificativa convincente para as violações à Constituição.

Em resumo, o argumento da constitucionalidade do golpe é um elemento central no esforço civil-militar de fundamentar ética e moralmente o arbítrio. Muitas vezes negligenciado pela historiografia, tal argumento permeia todas as possíveis leituras sobre o que aconteceu no cenário político brasileiro entre os anos 1950 e 1960.

Seja para as teses tradicionais – que variam entre três principais argumentos: o “esgotamento do populismo”,[6] uma “grande conspiração” contra o governo[7] e um “colapso institucional” alimentado pela “radicalização circunstancial dos atores”[8] –, seja para teorias mais recentes, que enfocam o processo de desestabilização de João Goulart,[9] é certo que a tensão da legalidade – uma distensão entre honrar a saída prevista na Constituição e apropriar-se do discurso do direito para a construção de soluções pragmáticas – mostra-se crucial para compreender as idas e vindas que desaguaram em março de 1964.

[1] DILLY PATRUS, Rafael. O manto diáfano da fantasia: o discurso moderno da legalidade e o Brasil de João Goulart (1955, 1961 e 1964). Dissertação de mestrado. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, 2022, capítulo 4.

[2] MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “perigo vermelho”: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Fapesp, 2002.

[3] SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Maria Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 443.

[4] FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, pp. 364-365.

[5] Ordem dos Advogados do Brasil. Ata de sessão do Conselho Federal. Brasília, 7 de abril de 1964.

[6] IANNI, Octavio. O colapso do populismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

[7] DREIFUSS, René A. 1964: a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981; BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil (1961-1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

[8] FIGUEIREDO, Argelina Cheibub. Democracia ou reformas?: alternativas democráticas à crise política (1961-1964). São Paulo: Paz e Terra, 1993.

[9] FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004.

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