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Os últimos textos desta série abordaram os deveres instrumentais que as pessoas físicas devem cumprir ao manter empresas offshore ou investimentos no exterior. Agora, é o momento de focar no regime de tributação estabelecido pela Lei 14.754/2023. Neste texto será feita uma breve exposição dos principais aspectos previstos pela lei e, em seguida, nos próximos artigos, serão apresentadas algumas reflexões e críticas sobre aspectos pontuais previstos pelo novo regime.
Apesar de a legislação não estar livre de lacunas e de pontos que podem ser aperfeiçoados, em um panorama geral, o legislador inaugurou um regime de tributação bastante equilibrado. A tributação automática dos resultados positivos verificados no exterior, já presente para controladas e coligadas detidas por pessoas jurídicas desde 2001[1], passou, com a vigência da lei, a ser uma realidade também para pessoas físicas.
O tema é polêmico. As regras anti-diferimento tributário não são novidade no Brasil, menos ainda na experiência internacional[2]. No país, a adoção da tributação em bases universais já foi amplamente discutida judicialmente — e parcialmente resolvida — com o julgamento da ADI 2.588. Especificamente para as pessoas físicas, foi objeto de diversas iniciativas legislativas anteriores. Vale lembrar que, em 2013, a presidente Dilma Rousseff editou a MP 627/2013, tentando alcançar esse objetivo. A medida encontrou certa resistência no processo legislativo e a tributação permaneceu restrita às pessoas jurídicas.
As normas de tributação de companhias estrangeiras (controlled foreign corporations – CFC) são adotadas há muito tempo, inclusive por diversos países da América Latina, em linha com o plano de ação 3 do BEPS, que busca combater certas estruturas offshore que resultam em não tributação ou em adiamento indefinido da tributação. Regras abrangentes e eficazes de CFC têm o efeito de reduzir o incentivo para transferir recursos de uma jurisdição para outra com a única finalidade de obter vantagens tributárias.
Para contextualizar, vale lembrar que uma CFC (Controlled Foreign Corporation) é definida como uma companhia situada no exterior, controlada direta ou indiretamente por um contribuinte residente. No exterior, as jurisdições aplicam diversos critérios para determinar o controle, tais como direitos de voto, valor das ações, operação em jurisdição de baixa tributação, e testes de tributação, por exemplo. A natureza dos rendimentos também entra na equação; alguns países aplicam as regras de CFC a qualquer tipo de rendimento, enquanto outros as aplicam somente a rendimentos passivos, como juros, locação, dividendos, royalties ou ganhos de capital.
Como mencionado, a Lei 14.754/2023 passou por um aperfeiçoamento no processo legislativo[3] e veio para acabar com as regras de anti-diferimento dos investimentos no exterior mantidos por pessoas físicas. Anteriormente, (i) os depósitos não remunerados no exterior tinham a variação cambial isenta, com alguns pontos controvertidos, (ii) aplicações financeiras eram tributadas pelas alíquotas progressivas (15% a 22,5%) pelo regime de caixa, (iii) fundos (15% a 22,5%) eram diferidos, (iv) offshores eram diferidas, sendo – até hoje – o regime de dividendos e retorno de capital objeto de intensas controvérsias entre o fisco e o contribuinte e, com relação ao (v) trust, também existia grande insegurança jurídica.
É uma mudança representativa no regime dispensado aos investimentos no exterior, desincentivando a prática de represamento dos recursos que permitia que os lucros fossem tributados somente quando da efetiva distribuição. Com isso, a legislação brasileira fica, especialmente quando se compara com o regime dispensado à tributação de rendimentos domésticos, mais coerente. Nos termos artigo 5º da Lei 14.754/2023, os resultados positivos das entidades controladas no exterior (personificadas ou não, incluindo fundos de investimento e fundações), deverão ser oferecidos à tributação tributados em 31 de dezembro.
Essas regras são aplicáveis a despeito de qualquer decisão sobre sua distribuição, incidindo na proporção da participação no capital social ou equivalente da offshore.
Em geral, o novo regime se aproxima das práticas internacionais e alinha a política fiscal brasileira com a prevista em outros países. Os próximos textos entrarão nos detalhes das normas previstas pela Lei 14.754/2023, mas, em linhas gerais, o que foi estabelecido é o seguinte:
Natureza do ativo
Momento da tributação
Alíquota
Depósito não remunerado
Variação cambial isenta
–
Aplicação financeira
Regime de caixa
15%
Offshore com renda passiva ou em país de baixa tributação (opaca)
Regime de competência
15%
Offshore com renda passiva ou em país de baixa tributação (transparente)
Regime de caixa
15%
Offshore com renda ativa e que não está em jurisdição de baixa tributação
Quando da disponibilização do lucro
15%
Trust
Transparente
Depende do bem/direito subjacente
Um avanço considerável deste novo regime é, sem dúvida, a segurança jurídica. Embora permaneçam algumas lacunas e pontos passíveis de controvérsias, a previsibilidade sobre o regime de tributação aplicável aos investimentos no exterior foi significativamente aumentada.
Sabendo que a norma tributária é indutora de conduta, o regime anterior estimulava o investidor a perpetuar o efeito “lock-in”, represando os recursos na offshore para postergar o pagamento do tributo e não corroer o poder de reinvestimento. Outro ponto digno de nota é que, anteriormente, existia um abismo entre a política fiscal aplicada aos investimentos no país e aos investimentos no exterior. Além disso, os veículos mais sofisticados — cuja implementação é mais onerosa —, como os fundos, possibilitavam um tratamento ainda mais vantajoso, gerando uma certa desigualdade entre os contribuintes.
Aprofundando os principais pontos do novo regime, vemos que as regras permitem compensar as perdas realizadas em aplicações financeiras com ganhos de aplicações financeiras, lucros e dividendos de offshore. A variação cambial é, para as aplicações financeiras, tributável a cada evento de realização. As offshores opacas são tributadas pelo regime de competência de forma definitiva, de modo que o resultado oferecido à tributação em moeda estrangeira não seja tributado novamente quando da distribuição ao titular no Brasil. Já os trusts possuem um regime específico conforme a definição do titular dos ativos, alinhado com a sua regra de tributação.
O legislador também previu a possibilidade de atualização do valor de bens e direitos no exterior com pagamento de alíquota reduzida, no montante de 8%, o que fez com que diversos contribuintes considerassem, de um lado, o desembolso de caixa (em contraposição aos 15% previstos para a regra geral), mas com segurança jurídica sobre a variação cambial e eventuais mudanças de alíquotas futuras.
Sobre a complexidade, as estruturas podem ficar mais complexas ou mais simples, dependendo do comportamento individual de cada contribuinte. Há, sem dúvidas, um maior rigor na informação transmitida anualmente ao fisco brasileiro sobre os recursos mantidos no exterior. É um novo regime que impacta consideravelmente a política fiscal brasileira. Feita essa introdução, vamos, nos próximos textos, adentrar em tópicos mais específicos.
[1] Medida Provisória 2.158-35 e posteriormente pela Lei 12.973/14
[2] MP 672/2023, PL 2.337/2021, entre outras.
[3] É o que se extrai da análise do processo legislativo da Medida Provisória 1.171, de 30 de abril de 2023, o Relatório da conversão em lei da Medida Provisória 1.172 e do Projeto de Lei 4.173.