O jogo não está feito

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Será possível que eu seja apenas uma criança? Será que não compreendo que sou um homem perdido? Mas… por que não poderei então ressuscitar? Sim! Bastará, uma vez em minha vida, ser prudente, paciente e… só isso!

(O Jogador, Fiódor Dostoiévski)

Mais de 24 milhões de brasileiros gastaram aproximadamente R$ 20 bilhões por mês em apostas e jogos de azar eletrônicos até agosto de 2024, segundo levantamento do Banco Central. Desse total, R$ 3 bilhões foram transferidos via Pix por 5 milhões de pessoas integrantes de famílias beneficiadas pelo Bolsa Família em agosto deste ano.

A possibilidade de utilização de outras formas de transferência de dinheiro e a ampliação do número de operadores de apostas pesquisados devem levar a um maior volume de recursos e de apostadores. A exposição desses números assusta, mas não esgota as complexidades do tema.

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O Brasil tem uma longa e incoerente disciplina legal sobre jogos de azar. Embora a sua exploração seja uma contravenção penal, a Constituição da República de 1988 dispõe sobre a competência privativa da União para legislar sobre “sistemas de sorteio e consórcios”, o que inclui bingos e as loterias.

As Leis 13.756, de 2018, e a Lei 14.790, de 2023, permitem operações de apostas por quota fixa (bets), nas quais o usuário pode saber quanto poderá ganhar se for vencedor quando faz a aposta. As apostas de quota fixa podem ter por objeto competições ou eventos esportivos reais e jogos online, e seus operadores devem receber autorização do Ministério da Fazenda para funcionamento no Brasil.

Porém, a popularidade das apostas eletrônicas não foi suficiente para eliminar a retomada da controvérsia sobre a operação dos jogos de azar sob diferentes perspectivas. Argumentos favoráveis à sua ampla legalização apontam o incentivo a novas vagas de emprego, à arrecadação de tributos e à possibilidade de controle da atividade e do destino de recursos que, de outro modo, seriam mantidos em operações ilícitas.

De forma enfática, argumenta-se que as pessoas têm liberdade para gerir seu patrimônio e que elas sabem melhor tomar as decisões sobre suas vidas, motivo por que lhes cabe escolher se devem fazer apostas, medir os riscos do jogo e racionalmente avaliar quando devem parar.

Em contrapartida, alegações favoráveis à proibição afirmam que o risco dos jogos de azar não é componente de uma forma de entretenimento, mas gatilho de compulsões, que comprometem o patrimônio dos jogadores, desviam tempo e recursos que poderiam ser usados em atividades mais produtivas e com maior relevância social.

Para alguns, a liberação dos jogos de azar seria um incentivo a comportamentos moralmente reprováveis, representativos de um desvio de caráter e de uma conduta moral inadequada com o conjunto de valores majoritariamente aceitos em uma comunidade. Mais: ao jogo estariam associadas outras atividades ilícitas desenvolvidas por organizações criminosas, que se valeriam da estimativa imprecisa da variação de ganhos e perdas para a lavagem de dinheiro.

A avaliação dos riscos associados aos jogos de azar ganha novos elementos no universo das apostas eletrônicas. O acesso a esses jogos é mais fácil por estar disponível em celulares e aparelhos eletrônicos, portado por milhões de brasileiros, o que elimina barreiras de acesso a locais reservados a apostas, como cassinos, sem o ônus da reprovação moral pública que muitos não estariam dispostos a suportar.

Os prejuízos associados à manipulação de resultado das apostas eletrônicas são maiores, pois não se conhece completamente o mecanismo de funcionamento dos programas, tampouco existe uma auditoria efetiva sobre notícias de fraudes em competições esportivas, havendo uma menor capacidade de controle de ações abusivas.

A autonomia das pessoas, argumento preferencial dos defensores da liberdade para jogar, é uma das premissas mais frágeis no debate sobre as apostas eletrônicas. A afirmação de que pessoas detêm capacidade epistêmica para melhor decidir sobre o que é melhor para si é uma descrição pouco precisa do processo de formação da vontade e dos elementos que concorrem para que as pessoas deliberem a respeito de suas vidas.

A prevalência do indivíduo como responsável por si mesmo deve observar que a autonomia se exerce em uma dinâmica relacional, na qual a propensão para vícios, pressões externas e a manipulação de informações se somam para a obtenção de um resultado final que muitas vezes se distancia do que se esperaria de um ser racional, idealmente capaz de avaliar abstratamente elementos positivos e negativos para escolher qual a melhor decisão a tomar.

Jogos eletrônicos de aposta se valem de uma agressiva e invasiva publicidade, intencionalmente dirigida de acordo com o histórico e as escolhas de pesquisa do usuário da internet. A propaganda é frequentemente feita por artistas ou esportistas com amplo acesso a camadas da população que poderiam ser mais propensas a esse tipo de aposta, bem como os meios de comunicação escolhidos buscam maior ressonância em apelos que contam com forte adesão popular, como hoje se vê no patrocínio de operadoras a times de futebol.

O meio em que o jogo é realizado é especialmente pensado para que o usuário se veja encorajado a continuar a apostar. Estímulos de cores e sons proporcionam uma interação fácil, com ganhos iniciais que não se repetem, a despeito da propagação de que a realização de subsequentes apostas acarretará uma maior probabilidade de ganho, fantasiosamente capaz de reparar o que já foi perdido.

Porém, o ardil das apostas eletrônicas é ainda mais perverso no Brasil. Os números que apontam o maior comprometimento proporcional da renda de brasileiros mais pobres permitem levantar a hipótese de que, em um país de elevada desigualdade social e econômica, as oportunidades de ganho rápido sejam mais ambicionadas, principalmente quando o acesso a faixas maiores de rendimento seja percebido como restrito ou mesmo insuperável.

Famílias mais pobres sofrem de forma mais intensa a pressão inflacionária, as dificuldades de um mercado de trabalho mais competitivo e os efeitos psicológicos associados ao sentimento de desprezo e exclusão pelas distinções de status e acesso restrito a bens de consumo.

A escolha publicitária de influenciadores facilmente identificados por esse segmento, por vezes com histórias de rápido sucesso em suas atividades profissionais, também deixa entrever que o jogo seria uma oportunidade de ganho imediato, em que assumir o risco seria um ônus menor em comparação ao lucro provável.

Os impactos negativos das apostas eletrônicas na vida de milhões de brasileiros são muitos e noticiados com frequência cada vez maior. Dívidas impagáveis, famílias separadas, empregos encerrados. Esses prejuízos repercutem nas famílias cujo maior responsável pelo pagamento das despesas compromete a renda com o jogo, ou mesmo nas demais atividades comerciais e de serviço cujo faturamento se reduz pelo desvio de recursos em atividades pouco produtivas e de repercussão negativa no meio social. A dependência psicológica gera um problema de saúde pública, cuja extensão ainda precisa ser conhecida, mas que provavelmente irá se somar à disputa pelos insuficientes recursos do orçamento do SUS.

A renovada discussão sobre as apostas eletrônicas deve levar a sociedade brasileira a debater se as vantagens obtidas com as suas operações superam os prejuízos individuais e sociais gerados por elas. Caso confirmada a opção pelo seu funcionamento, o legislador deve adotar medidas que possam inibir o uso frequente e se valer das bem-sucedidas experiências empregadas para restrições à publicidade e ao consumo de outros bens considerados prejudiciais à saúde, como o cigarro e bebidas alcoólicas.

Medidas de sanção aos usuários, como o cancelamento da inscrição no Bolsa Família, podem ser desproporcionais, ineficientes e indiretamente incentivadoras de padrões de moralidade alheios às finalidades dos programas de transferência direta de renda. A dependência psicológica, o endividamento e o comprometimento de orçamentos familiares merecem um olhar atento e uma reflexão profunda sobre quais riscos nossa sociedade aceita correr e quais políticas públicas devemos priorizar.

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