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O ‘Mágico’ de Orós: sobre a instrumentalização do processo eleitoral brasileiro

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O filme O Mágico de Oróz é uma comédia brasileira lançada em 1984 que mistura elementos de humor típicos das chanchadas brasileiras. A trama gira em torno de um homem que sofre com a seca. No caminho, ele encontra amigos que também buscam cada um por uma coisa diferente. Todos resolvem ir atrás do Mágico de Oróz para a solução de seus problemas.

Essa conhecida sátira de O Mágico de Oz utiliza uma narrativa que mescla realidade e fantasia. Mas, como “a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”[1], um certo realismo fantástico hoje está sendo vivido pela população de Orós, município do Ceará.

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Nas eleições de 2024, um candidato foi eleito em Orós com 58,41% dos votos válidos[2]. Porém, em 27 de dezembro de 2024, este mesmo candidato eleito (que era também suplente de deputado estadual) tomou posse como deputado efetivo na Assembleia Legislativa do Ceará (em razão da renúncia da titular) e comunicou que renunciaria à Prefeitura de Orós. Com isso, a mãe dele, vice-prefeita na chapa, acabou assumindo a gestão no último dia 1º de janeiro.

Sem maior constrangimento, o prefeito eleito (agora deputado estadual) disse que a renúncia já estava decidida e que também foi pensada de forma estratégica.[3] Como bem anota a imprensa estadual, faltou apenas combinar com o povo de Orós que votou em um candidato a prefeito e assistiu a renúncia dele ao mandato municipal no dia da posse.[4]

O presente artigo pretende analisar a instrumentalização do processo eleitoral, por meio de desvios éticos e políticos, a partir da traição ao pacto de confiança estabelecido com o eleitorado e suas consequências para a soberania popular e a democracia.

Instrumentalização do processo eleitoral: um desvio ético e político

No caso em questão, a renúncia imediata ao cargo de prefeito após a posse e a consequente transferência da administração municipal para a vice-prefeita, mãe do candidato, cria um cenário que sugere a instrumentalização do processo eleitoral.

Esse tipo de situação revela que o mandato eletivo foi tratado como um meio estratégico para a obtenção de vantagens pessoais ou familiares, em vez de ser encarado como um compromisso ético com os interesses coletivos que justificaram a candidatura e o voto popular.

A eleição, como se sabe, é um mecanismo essencial da democracia, que confere aos cidadãos a oportunidade de escolher seus representantes com base em propostas, ideias e compromissos apresentados durante a campanha.

A ética na disputa e no exercício de mandatos públicos representativos exige que o representante eleito atue com transparência, respeito à vontade do eleitor e compromisso com o interesse público. A partir do momento em que um candidato se propõe a ocupar determinado cargo, espera-se que ele tenha a intenção genuína de exercer a função para a qual foi escolhido pela população.

Nesse contexto, o mandato eletivo não é apenas um direito do candidato, mas também um dever para com a coletividade que confiou a ele a gestão da coisa pública. A renúncia imediata, sobretudo no contexto em que foi arquitetada – para servir como mero jogo de poder, sem real pretensão de exercício do poder – subverte a lógica constitucional, configurando um uso inadequado do processo eleitoral.

A narrativa em análise revela uma situação que, embora aparentemente legal à luz das normas constitucionais, eleitorais e administrativas, suscita questões principiológicas jurídicas, éticas e morais fundamentais sobre os limites da atuação de agentes públicos e candidatos eleitos. Vemos hoje em Orós um cenário de potencial violação de princípios constitucionais e éticos que regem a democracia e a administração pública.

A instrumentalização do processo eleitoral, em suma, gera impactos profundos no sistema democrático, pois mina a credibilidade das instituições e reforça o descrédito da população em relação aos políticos e à política em geral. Situações como essa alimentam a percepção de que os interesses pessoais prevalecem sobre o bem coletivo, fortalecendo a ideia de que o poder político é utilizado como um patrimônio familiar, e não como uma ferramenta de transformação social.

Traição ao pacto de confiança com o eleitorado

Ao renunciar ao cargo para o qual foi eleito, o político rompe um pacto implícito de confiança firmado com o eleitorado, que o escolheu com base em suas propostas e compromissos apresentados durante a campanha. Esse pacto reflete a essência da democracia representativa, onde o voto do cidadão constitui uma delegação de poder e confiança no representante escolhido.

Quando essa expectativa não é atendida e o mandato não é cumprido, os eleitores se sentem traídos, pois a decisão de renunciar contradiz os valores de compromisso e responsabilidade que sustentam a relação entre representantes e representados.

A quebra dessa confiança gera uma sensação de engano e desrespeito à vontade popular, ampliando o distanciamento entre a sociedade e as instituições políticas. Para os eleitores, a renúncia pode ser interpretada como uma desvalorização de suas escolhas e uma negligência em relação às demandas e expectativas coletivas. Além disso, tal ato pode desestabilizar o equilíbrio político da esfera de atuação do cargo renunciado, seja em nível municipal, estadual ou federal, causando transtornos administrativos e políticos.

Essa prática é especialmente grave porque o eleitor não é apenas um espectador do processo democrático, mas o protagonista da soberania popular, conforme estabelece o artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Portanto, quando um representante eleito abdica do mandato sem justificativa plausível e transfere o cargo a um parente próximo, ele desvirtua o propósito da escolha feita pelos cidadãos, frustrando as expectativas legítimas da população.

A prática de renunciar a um cargo público para favorecer um familiar, ainda que com aparência de legalidade, levanta questões morais significativas, como o favorecimento pessoal e o nepotismo indireto. Além disso, pode gerar repercussões jurídicas, especialmente se evidenciada a intenção deliberada de manipular o processo eleitoral.

Consequências para a democracia

Consoante declarado abertamente pelo hoje deputado estadual, a candidatura para a chefia do município foi utilizada como instrumento para um plano premeditado de transferência de poder entre familiares, o que deve ser interpretado como fraude eleitoral, pois viola os princípios da lisura e autenticidade do processo eleitoral previstos no artigo 14 da Constituição Federal.

Essa prática pode criar um precedente perigoso, normalizando comportamentos que contornam os limites éticos do processo eleitoral e promovendo um ambiente político que favorece o clientelismo, o nepotismo e o abuso de poder. Isso compromete a transparência e a imparcialidade que devem caracterizar a gestão pública.

Essa atitude não apenas mina a credibilidade do político, mas também enfraquece a percepção de seriedade e compromisso do sistema democrático como um todo. Em longo prazo, a repetição de renúncias não justificadas contribui para a erosão da confiança pública no sistema político, fortalecendo discursos de descrédito e aumentando o risco de apatia eleitoral, com consequências negativas para a legitimidade e a representatividade democrática.

Ainda que não haja uma previsão específica para casos como esse no Código Eleitoral, a interpretação sistemática da legislação sugere que situações dessa natureza podem ser consideradas fraudulentas, especialmente por meio da confissão de que a candidatura foi utilizada como estratégia para viabilizar a transferência de poder entre familiares.

Demais disso, a Constituição brasileira, em seu artigo 54, II, d, estipula que os deputados e senadores não poderão “desde a posse ser titulares de mais de um mandato ou cargo público eletivo”. Logo, a renúncia ao mandato de prefeito, quando já empossado deputado estadual dias antes, nem poderia alcançar o efeito pretendido.

Isso porque, em 16 de dezembro de 2024 ele foi diplomado prefeito de Orós. Em 27 de dezembro de 2024 tomou posse como deputado estadual. Logo, nos termos da regra constitucional não poderia sequer ser empossado prefeito. Todavia, no dia 1º de janeiro de 2025 ele tomou posse como prefeito de Orós para imediatamente renunciar.

É uma posse juridicamente inválida. Não se pode renunciar algo que a Constituição veda possuir (ainda que se trate de mandatos oriundos de pleitos eleitorais distintos). Nesse sentido, o deputado estadual deveria ter renunciado ao cargo antes de tomar posse como prefeito (ainda que sua pretensão fosse, ato contínuo, renunciar ao mandato municipal).[5]

O mandato como fim e não como meio: violação do princípio republicano

Quando o mandato é tratado como um meio e não como um fim, ele deixa de ser um instrumento de realização do bem comum para se tornar um mecanismo de viabilização de interesses privados ou familiares.

No caso específico, a sucessão familiar decorrente da renúncia pode ser interpretada como uma forma de garantir o controle político do município por um núcleo familiar, desconsiderando o objetivo maior do cargo público, que é atender às necessidades e demandas da sociedade.

A ética política exige que o mandato eletivo seja compreendido como um fim em si mesmo, ou seja, como uma oportunidade de promover o interesse público, implementar políticas públicas eficazes e atender às demandas da sociedade. Ao tratar o mandato como um meio para alcançar outros objetivos – no caso, a transferência de poder a um familiar –, o agente público compromete a essência do sistema representativo e os valores que sustentam a democracia.

Essa inversão de finalidade viola não apenas princípios éticos, mas também o sentido moral do serviço público, que deve estar fundamentado na impessoalidade, moralidade e compromisso com o bem-estar coletivo. No contexto brasileiro, esses valores são reforçados pelo artigo 37 da Constituição Federal, que estabelece os princípios básicos da administração pública.

A análise do caso permite identificar a violação de princípios fundamentais da Constituição Federal e da ética pública, vez que a gestão pública deve ser pautada por valores éticos e transparência, o que inclui evitar práticas que denotem desvio de finalidade (princípio da moralidade). Demais disso, a administração pública não deve privilegiar interesses particulares, especialmente familiares (princípio republicano e da impessoalidade).

Não bastasse, a soberania popular é desrespeitada quando o candidato não exerce o mandato para o qual foi eleito, desvirtuando o propósito do processo eleitoral (princípio democrático). Por fim, cumpre destacar que a relação entre o eleito e seus eleitores deve ser marcada pela confiança e honestidade, sendo certo que a manipulação do processo eleitoral para fins particulares contradiz esse princípio (princípio da boa-fé).

O impacto na soberania popular

A soberania popular, fundamento essencial do sistema democrático, é gravemente comprometida quando os eleitores se sentem enganados ou manipulados por práticas que violam a ética do processo eleitoral. A renúncia ao cargo de prefeito e a transferência do poder à vice-prefeita, mãe do titular, deslegitima a escolha dos eleitores, traindo a confiança depositada na urna.

Ao votar no candidato, a população não apenas concedeu a ele o mandato, mas também rejeitou outros postulantes que poderiam ter assumido o compromisso de representar a sociedade com maior responsabilidade e respeito à vontade popular.

Além disso, práticas como essa têm um impacto profundo na percepção da sociedade em relação à política, contribuindo para a apatia eleitoral e o desinteresse pela participação democrática. Esse descontentamento mina a disposição dos cidadãos de se envolverem em eleições futuras, enfraquecendo o próprio tecido democrático.

A longo prazo, a repetição de episódios similares gera um desgaste nas instituições democráticas e intensifica o ceticismo em relação à política. O distanciamento entre a sociedade e seus representantes aumenta, abrindo espaço para discursos de descrédito que fragilizam ainda mais o sistema. Proteger a soberania popular requer não apenas o cumprimento formal dos mandatos eleitos, mas também a preservação da ética e do respeito à confiança pública, indispensáveis para a saúde de qualquer democracia.

Conclusão

O caso apresentado evidencia a necessidade de um fortalecimento dos mecanismos de controle ético e jurídico no sistema político brasileiro. Embora a prática em si possa ter aparência de legalidade, é inegável que contraria os valores e princípios que fundamentam a democracia e a administração pública. Mais do que nunca, torna-se imprescindível fomentar uma cultura de ética, transparência e compromisso com o interesse público, para que situações como essa sejam evitadas e a confiança da população no sistema político seja preservada.

A atuação da Justiça Eleitoral em ações movidas contra indivíduos que cometem atos de tamanha gravidade é fundamental para coibir judicialmente condutas dessa natureza, claramente realizadas com má-fé. Será imprescindível que a Justiça Eleitoral se posicione de forma firme e pioneira diante dessas incongruências, em que o candidato utiliza sua imagem pessoal para conquistar votos, mas falha em cumprir o compromisso público assumido ao se candidatar, prejudicando a confiança e os direitos dos cidadãos que o elegeram.

O enredo de O Mágico de Oróz, com seu final feliz, carrega a esperança de que o município de Orós também alcance um desfecho próspero, mas desta vez sem depender de artifícios ou figuras simbólicas que escapem à realidade. Na vida política, não há espaço para mágicas, atalhos ou narrativas que distorçam os princípios democráticos

É necessário que o progresso e o bem-estar social sejam resultados de um compromisso verdadeiro com os valores republicanos, a ética e a representatividade. Assim como nas obras de realismo fantástico, a democracia brasileira muitas vezes parece povoada por eventos que desafiam a lógica e o senso de justiça, mas a política real precisa se pautar pela transparência e pela responsabilidade.

É fundamental dar um basta ao “realismo fantástico” que permeia a democracia brasileira, em que artimanhas, acordos de bastidores e desrespeito à vontade popular frequentemente tomam o protagonismo. Esse tipo de prática desvirtua o sentido da soberania popular e compromete a legitimidade do processo democrático, gerando frustração e desconfiança entre os cidadãos.

O Brasil precisa deixar para trás essa herança de narrativas políticas que mais se assemelham a fábulas e construir uma realidade em que as conquistas democráticas sejam sustentadas por compromissos reais e concretos. Para Orós e para o país, é hora de superar a fantasia e fazer da democracia um campo de ação sólida, onde os eleitos sirvam ao povo e não a interesses privados ou familiares.


[1] “Paradox though it may seem – and paradoxes are always dangerous things – it is none the less true that Life imitates art far more than Art imitates life.” Wilde, O. (2022). The decay of lying. Lindhardt og Ringhof, pg. 38. Disponível em https://archive.org/details/bwb_O7-BPF-111/page/6/mode/2up?q=art+imitates+life

[2] Disponível em: https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2024/12/28/prefeito-eleito-de-cidade-do-ceara-toma-posse-como-deputado-mae-dele-vai-assumir-prefeitura.ghtml; acesso em 31 de dezembro de 2024.

[3] Disponível em: https://youtu.be/BWtt_XBUsOI?si=CUkgmbgQdMREQoFo; acesso em 31 de dezembro de 2024.

[4] Disponível em: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/opiniao/colunistas/inacio-aguiar/eleicao-de-evandro-e-gabriella-aguiar-pode-deixar-municipio-do-interior-sem-prefeito-entenda-1.3577347; acesso em 31 de dezembro de 2024.

[5] Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/projeto-bula/reportagem/eleicao-de-deputado-para-o-executivo-renuncia-tacita-e-fraude-eleitoral/; acesso em 2 de janeiro de 2025.

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